É pior do que estar sozinho. Sou um homem viajando com seus piores inimigos, que acontece de serem do seu círculo familiar mais íntimo © DAN CLOWES_CONDÉ NAST PUBLICATIONS_WWW.CARTOONBANK.COM
Terra dos vivos
Sempre sinto que vou morrer quando entro num avião. Aí, depois de pousar, de volta à terra firme, parece que passei por uma espécie de morte e consegui sair do outro lado. É por isso que tomo Xanax e é por isso que digo que estou feliz por estar vivo.
Sam Shepard | Edição 39, Dezembro 2009
“Éincrível como a gente fica sociável tomando Xanax”, ela diz. Estamos de pé há mais de uma hora, debaixo do calor tórrido de Cancún, esperando na longa e sinuosa fila da alfândega. Somos conduzidos como manada, roçando os ombros com outros “fugitivos do frio” de Minnesota que agitam freneticamente os formulários de emigração como leques.
“Eu sei”, digo a ela. “Também fiquei impressionado.”
“Você, impressionado?”
“Sim, fiquei.”
“E por que você deveria ficar impressionado?”
“Bom, é que sinto essa pessoa amistosa se apoderando de mim e me pergunto se não seria essa, talvez, minha verdadeira natureza. Sabe, o meu verdadeiro eu.”
“O que é que muda, exatamente?”
“Estou sob efeito de Xanax.”
“Isso eu sei”, ela diz. “Mas o que é que te faz mais sociável do que antes de tomar Xanax?”
“Bom, não sou uma pessoa particularmente antissocial, sou?”
“Neste momento, não, você não está sendo.”
“Não, quero dizer, normalmente não me vejo como aquele tipo de cara taciturno, mal-humorado.”
“Não falei em taciturno.”
“Bom…”
“Geralmente você fica ensimesmado e não é muito falante. Digamos assim.”
“Falante?”
“Você anda conversando sobre o clima com gente totalmente desconhecida. Nunca faz isso. Pelo menos desde que conheço você.”
“Achei meio que interessante. Você não?”
“O quê?”, ela diz.
“O clima. A mudança. A diferença extrema daqui para St. Paul em apenas três horas e meia.”
“É por isso que as pessoas vêm de St. Paul para cá. A mudança de clima. É por isso que estamos aqui.”
“É, eu sei, mas ainda assim é interessante, não é? Mais de 40 graus aqui e menos 1 lá.”
“Ah, esquece”, ela diz, e se volta para o ventilador de teto que gira em câmera lenta.
Bem à nossa frente há um grupo de professoras primárias de Duluth que de repente se precipita numa cantoria em uníssono, mas sem a menor noção de harmonia, na música The bear went over the mountain. Acho que o calor escaldante e a espera tinham levado o pessoal à beira do delírio. Os funcionários mexicanos, em seus uniformes de SWAT, observam num silêncio de pedra, braços cruzados atrás das costas, os negros olhos maias impassíveis diante da demonstração de fanfarronice nórdica. Nossos filhos adolescentes se renderam ao calor, amontoados no chão de concreto, as cabeças apoiadas sobre as mochilas. Desistiram de qualquer conversa.
“Na verdade, só estou feliz por estar vivo”, confesso, depois de um momento de estupor como que hipnotizado pela cantoria das professoras.
“Você está feliz por estar vivo?”, ela repete admirada. “Foi o que acabou de dizer?”
“Sim, estou. Que nem Arnold Palmer.”
“Arnold Palmer?”
“Não é o que ele anda dizendo? Agora que é um ancião, andando para cima e para baixo nos campos? ‘Só estou feliz por estar vivo. Feliz por estar vivo, só isso.’ É o que diz quando correm para ele com microfones e câmeras de tevê. Você sabe, naquelas entrevistas nos programas especializados. Mesmo quando ele tem dificuldade para acertar o buraco ou dar a primeira tacada. Não é o que sempre diz ultimamente?”
“Não faço ideia. Pensei que ele já tivesse morrido.”
“Arnold Palmer? Não. Está bem vivo. É um ícone.”
“Tanto faz”, ela diz, virando as costas de novo.
“Bom, é verdade”, continuo. “Me sinto privilegiado por ainda estar aqui, de volta à ‘terra dos vivos’.”
“Não reparei que você tinha nos deixado”, ela diz.
“É como me sinto toda vez que sobrevivo a uma viagem de avião.”
“Sobrevive?”
“Sempre sinto que vou morrer quando entro num avião. Como se fosse o fim da linha – inevitável. Aí, depois de pousar, de volta à terra firme, parece que passei por uma espécie de morte e consegui sair do outro lado. É por isso que tomo Xanax e é por isso também que digo que estou feliz por estar vivo.”
Ela olha para mim por um momento com um espanto absoluto, como se olhasse para a cara de um estranho, então se volta outra vez para a longa e cansada fila de humanos no limbo.
“Meu Deus”, ela diz. “Que é que há com essa alfândega? Nunca tivemos que esperar tanto assim.” Logo adiante das professoras cantoras (que agora passaram a entoar a música em jogral, feito escoteiras) está um casal soturno que reconheço do Aeroporto Lindbergh, em St. Paul. O homem, numa cadeira de rodas, um pouco mais velho do que a mulher – beirando os 60 anos, talvez –, tem um cobertor no colo e usa um cachecol xadrez de lã, apesar do calor sufocante, e um chapéu alpino esquisito com uma escovinha enfeitando a circunferência da cabeça. A mulher (esposa?) está de pé, atrás dele, muito ereta, com as mãos a postos nos pegadores cinza da cadeira de rodas, como se responsável por uma vigília lúgubre e permanente. Ela tem uma beleza simples, com um rosto franco e inocente do Meio-Oeste, e veste um terno leve de linho e sapatos brancos de salto – não exatamente o figurino adequado para as praias de Yucatán. Os dois parecem completamente alheios ao que se passa ao redor: a cantoria idiota e o abanar constante de todos, que a essa altura se tornou uma espécie de demonstração coletiva de ódio contra a burocracia mexicana. Nada parece afetar o profundo estoicismo do casal. De vez em quando a mulher tira do bolso um lenço branco que passa gentilmente sobre a testa e os cantos da boca do homem, embora eu não consiga perceber qualquer tipo de secreção. Ele não parece sofrer das sequelas de um derrame ou de uma doença neurológica, e sim de um processo de debilitação muito mais lento e gradual. Seja o que for, claramente afetou ambos.
Finalmente, a fila começa a se arrastar. Tiramos as crianças do chão e conduzimos a bagagem por um labirinto de alamedas isoladas por cordas até os inspetores da alfândega. O fluxo repentino e abrupto da fila parece pegar as professoras de surpresa. Elas se atrapalham com as malas. O casal austero desliza silenciosamente. A cabeça pálida do homem se ergue lentamente, atraída pelo sol tropical que atravessa as janelas altas do terminal principal. Cada uma delas emoldura uma palmeira absolutamente imóvel. Ondas de calor se insinuam através dos vidros como lençóis de vapor. Um solitário periquito verde se alterna desesperado de uma árvore a outra, dando todas as vezes a impressão de que não conseguirá completar o trajeto, como se o calor selvagem fosse capaz de derrubá-lo no meio do voo.
Tendo perdido a reserva do Chevy Suburban por conta do atraso na fila da alfândega, terminamos amontoados num jipe Wrangler vermelho muito menor, com uma capota frouxa de lona. (O México não espera por ninguém.) Meu filho cai no sono imediatamente, seu mais de 1,80 metro de magreza e altura encolhido entre as bagagens. Nossa filha apoia a cabeça numa das barras do jipe, uma camiseta ajustada entre a superfície de aço e a testa macia. O ar denso da selva lhe inunda o rosto. Minha mulher, absolutamente calada agora, observa um cartaz gigante no qual morenas gêmeas seminuas, com ar tímido, escondem os seios com garrafas geladas de Corona.
“Você arrumou uma namorada?”, ela pergunta sem mais nem menos.
“Namorada?”, digo, conferindo se nossa filha entreouviu aquilo, mas ela também tinha embalado no sono com o calor.
“É, isso mesmo. Uma namorada”, minha mulher repete.
“De onde você tirou isso?”
“Não finja esse espanto todo. Você poderia facilmente ter uma namorada e eu nunca saberia, certo? Como poderia saber?”
“Tenho 60 anos. Esse tempo já passou.”
“Há um monte de moças que gostam. Ficou chique ou algo do tipo.”
“Gostam do quê?”
“Homens mais velhos. Homens influentes.”
“Influentes?”
“Não ria. Você sabe do que estou falando.”
“Não, não tenho uma namorada.”
“Por que será que eu sabia que você ia dizer exatamente isso?”, ela abafa um risinho, mordendo o lábio inferior.
“Podemos conversar sobre isso depois?”, sugiro, baixando a voz.
“Quando?”, ela diz.
“Quando não estivermos de férias. Não enquanto estivermos rodando a península de Yucatán com nossos filhos bem aqui, atrás de nós.”
“Você tem, não é?” Ela sorri devagar, lançando-me um olhar de superioridade, e então se vira para a selva em movimento. Passamos por um curral de pedra abandonado no qual cavalos magricelas fuçam a poeira e os próprios excrementos. Têm os olhos vendados de azul por enxames de moscas varejeiras.
“Isso significa que vamos passar o resto da viagem de mau humor e sem falar um com o outro?”, pergunto para a nuca dela.
“Como você quiser”, ela diz.
“De onde diabos saiu essa ideia, afinal?”
“Que ideia?”
“De que tenho uma namorada?”
“Do teu celular, na verdade.”
“Do meu celular?”
“É, isso mesmo.”
“Do meu celular?”
“Você vai continuar se repetindo?”
“Estou repetindo você.”
“É, porra, saiu do teu celular!”, ela explode. As crianças se remexem e resmungam sem abrir os olhos.
“Podemos conversar sobre isso depois?”, eu digo.
“Isso também você já disse.”
“Falando sério.”
“Nem quero mesmo falar disso na verdade. É ridículo. Não há nada para falar”, ela tenta dar a última palavra.
“Quer dizer que você vai insistir em acreditar numa fantasia maluca, numa ideia precipitada que você botou na cabeça? É isso?”
“Não ‘botei’ a ideia na cabeça. Ela saiu do teu celular.”
“O que saiu?”
“Uma voz de mulher.”
“Ah, bom, você perguntou quem era? Podia ser alguém do escritório.”
“Não era alguém do escritório. Conheço todo mundo do escritório e não era ninguém de lá.”
“Podia ser qualquer pessoa.”
“Ah, por favor…”
“É, podia ser mesmo.”
“Certo, claro – é, tá certo –, podia ser qualquer pessoa do mundo inteiro, mas não era.”
“Só estou dizendo que…”
“Ah, cala a boca!”, ela berra de repente. Nosso filho acorda com um pulo e agarra a barra de proteção do jipe, acordando a irmã.
“Que foi?”, ele pergunta arfando, com os olhos arregalados para a estrada.
“Nada”, eu digo. “Nada. Pode voltar a dormir.”
“Por que você estava gritando, mãe?”, nossa filha pergunta.
“Estava gritando com teu pai.”
“Por quê?”
“Porque ele estava tentando negar que tem uma namorada e descobri que ele tem uma namorada. Agora volte a dormir.”
“Ótimo. Isso é realmente ótimo”, digo para minha mulher. “Meus parabéns.”
“Por nada”, ela diz e me vira as costas de uma vez.
Silêncio, exceto pelo rolar monótono dos pneus gigantes do jipe e pelo vento incessante da selva açoitando a lona da capota. As crianças submergiram entre as bagagens e voltaram a dormir. As costas dela expressam com perfeição o banimento. Exilado em Yucatán.
“Eu poderia muito bem ter vindo sozinho”, digo a sua espinha dorsal. Nenhuma resposta. Rugimos através da playa. Quilômetros e quilômetros de redes coloridas e calor, cerâmicas gigantes em tom ocre, e formas de demônios maias e criaturas da selva consideradas sagradas pelos antigos – jaguares, serpentes, águias, sapos. Há de tudo à venda ao longo da carretera: tapetes, ponchos mexicanos, quadros em cores fluorescentes com lúgubres cenas de astecas muito machos – guerreiros enfeitados de penas protegendo corajosamente jovens donzelas contra panteras com olhos de jade. Placas enormes, em inglês, nos dão as boas-vindas à “Riviera Maia”, como se o México se envergonhasse de ser mexicano. “Agora entendi”, falo em voz alta comigo mesmo, mas esperando que ela, de alguma forma, responda. Ela não responde. Suas costas continuam sendo um bloqueio rígido.
A selva verdejante segue correndo ligeira pelas janelas. Aqui e ali, uma clareira na densa vegetação. A luz do dia abre rachaduras por entre o emaranhado das parreiras e do chechem negro. Vislumbre rápido de um velho com seu burro carregado de garrafas plásticas abastecidas em algum poço secreto e lodacento de Yucatán. Sensação antiga de vidas paralelas. Alheio. Atormentado. Aos trancos, agora mais em desespero do que qualquer coisa: “Acho que entendi aquela história do Xanax – por que fico tão sociável quando tomo esse negócio.” Falo sozinho. As crianças roncam alto. “É mais ou menos o que acontece com os músicos de jazz”, continuo. “Lembro daqueles caras todos no Five Spot, nos anos 60. Todo mundo usava heroína. Era a droga preferida. Uma vez perguntei a um baterista por que ele usava e sabe o que o cara disse?” Nem sei por que estou me perguntando. Não tem ninguém em casa. Aguento firme. “Ele me disse que usava porque o troço fazia parar a falação dentro da cabeça dele. Não é incrível? Criava um silêncio e então ele podia tocar.”
Por quilômetros, nada acontece. A cabeça dá cambalhotas, embaralha memórias, reescreve o passado, depois concede um gostinho daquilo a que chama de razão: “Afinal, o que você fazia atendendo meu celular? Eu não atendo o teu, certo?”
“Estava tocando”, ela responde do nada.
“Pensei que você estivesse dormindo.”
“Não estou.”
“Pensei que você estivesse fingindo que estava dormindo.”
“Não estou fingindo nada”, ela diz, ainda totalmente de costas para mim.
“Então meu celular estava tocando e você atendeu…”
“Estava se esgoelando a todo volume, tocando aquele riff idiota de Purple Rain ou seja lá o que for aquilo, pulando pela cama. Só atendi para que a porcaria parasse de tocar e pular.”
“E quem era?”
“Você pergunta para mim?”, ela diz. Feito uma aparição, uma índia de pés descalços carregando um feixe de lenha se curva sobre a estrada, esperando no acostamento para cruzar seis pistas de tráfego perigoso. Caminhões passam por ela assobiando nos dois sentidos. Parece que está esperando ali há horas. O crepúsculo começa a baixar sobre as camadas de calor, enquanto corvos de cauda longa se recolhem às acácias.
Quando chegamos ao pequeno resort, já noite fechada, estou convencido de que minha vida emborcou completamente. É pior do que estar sozinho. Sou um homem viajando com seus piores inimigos, que acontece de serem do seu círculo familiar mais íntimo. Algo grego, ou coisa pior. Um porteiro roliço emerge de uma arcada de buganvílias, empurrando um carrinho de mão e segurando uma lanterna entre os dentes. Está contente por nos ver, é o que diz, assim que consegue tirar a lanterna da boca – seu sorriso de boas-vindas apontado para nossas caras de desolação. Ele nos informa que os donos do lugar já foram dormir. Tinham ficado acordados para nos esperar, mas demoramos demais. Ele está com as chaves e vai nos levar aos quartos. Empilha nossa bagagem no carrinho de mão, enfia a lanterna de novo entre os dentes e o seguimos pela sinuosa trilha de pedras. Geradores de energia eólica sobre altos postes de metal giram e ronronam como pássaros exóticos. O vento constante do Caribe castiga as palmeiras, obrigando-as a uma dança selvagem. Enquanto seguimos o facho oscilante da lanterna, tenho esse desejo bizarro de que fôssemos outras pessoas – estranhos que tivessem, por acaso, acabado de se encontrar naquela mesma noite. Como poderíamos ser mais felizes se não soubéssemos nada, absolutamente nada, uns dos outros. Nenhuma história. Nenhum remorso.
O dia nasce. O vento acalmou e o mar plano e liso aparece claro no horizonte. O sol avermelhado, gigante, emerge contra o arco distante da terra. O quanto estaria longe o resto do mundo? Sou o primeiro a acordar e fico feliz por estar sozinho na praia. Minúsculos caranguejos brancos se enfiam em suas tocas quando me aproximo. Uma fila de mergulhões dispara à minha frente, dando rasantes para dentro e para fora da espuma das ondas. Mais ao alto, um albatroz ressoa. Ao dar meia-volta na direção das antigas ruínas maias, vejo o casal de St. Paul apreciando em silêncio o nascer do sol, a mulher em vigília atrás da cadeira de rodas exatamente como no aeroporto. O homem, de óculos escuros, está sentado ereto com o chapéu no colo, as duas mãos segurando a aba. À medida que o sol monstruoso sobe, o casal fica róseo, avermelhado e em seguida, lentamente, cor de laranja brilhante, como se de súbito pudessem explodir em chamas e se desintegrar em cinzas sobre a areia. Nenhum dos dois se move um centímetro, estão congelados sob a luz incandescente. Um de meus familiares finalmente vem chegando. Minha filha desliza até perto de mim, ainda meio dormindo, de calça de moletom e uma camiseta com a cara de Bob Marley gritando através do seu peito.
“Oi, pai. Nunca tinha visto um sol tão vermelho, você já?”
“Só aqui. Devemos estar mais perto dele ou algo assim. O equador. É isso?”
“É, acho que sim. Já tomou café?”
“Não. Nem sei se a cozinha está aberta.”
“Acho que escutei uns pratos batendo por lá.”
“Isso é sempre um bom sinal”, eu digo, beijando-lhe a testa.
Um leve cheiro de talco, lembrança de quando ela era bebê, mexe comigo por dentro. Pura ternura no meio dessa crise sentimental. Ela me pega pelo braço e, atravessando a areia branca, vamos para o restaurante. Dou uma olhada por cima do ombro, rapidamente, mas o casal de St. Paul sumiu. Paro e me viro para uma busca mais detalhada.
“O que foi, pai?”
“Não sei. É que vi aquelas pessoas aqui na praia e agora elas desapareceram.”
“Que pessoas?”
“O casal que estava na fila com a gente no aeroporto. Você não deve ter notado.”
“Eu estava dormindo.”
“É. Sumiram, simplesmente. Como pode?”
“Sei lá. Estou com fome, você não?”
As mesas no salão de refeições foram postas com guardanapos cor-de-rosa e ramos coloridos de buganvília arranjados em vasos finos de vidro. Um garçom maia está despejando água gelada de um jarro de metal. Sentamos à janela, do lado oposto de onde está um casal de mulheres com cortes de cabelo masculinos, vestidas igual – camisa branca engomada e gravata vermelha. Elas se dão as mãos por cima da mesa e contemplam o quebra-mar. Uma música new age está tocando, repetitiva e hipnótica, o som de fundo de uma casa de massagens, o que dá ao ambiente um ar sombrio e apocalíptico. Ninguém sorri. A vista espetacular da praia de areia branca se estende limpa ao longo da península estreita, fundindo-se à espuma espalhada das ondas. Dois soldados sinistros – rostos indígenas com feições de ave de rapina em duro contraste com a camuflagem dos uniformes, armas automáticas pretas atadas às costas – emergem trotando de maneira casual ao longo da linha da praia. O voo de alguns pelicanos brancos cruza seu caminho, antes de seguir para um rasante perto da água. Um dos pássaros mergulha de cabeça na onda verde e volta com uma tainha entre esguichos. “Só quero que você entenda uma coisa, Emma”, digo à minha filha enquanto ajeito o guardanapo rosa sobre o joelho. “A tua mãe não sabe do que está falando.”
“Como assim?”
“Ontem, no carro.”
“O que ela disse?”
“Sobre a… Você não ouviu o que ela te contou?”
“Ah, sobre a namorada?”
“Sim.”
“Que é que tem?”
“Bom, não é verdade. É pura invenção. Quer dizer, aconteceu de o meu celular tocar, ela atendeu e…”
“Não estou a fim de saber, pai, mesmo”, ela diz, espremendo lima sobre uma fatia de melão. “Isso é entre você e ela.”
“Quem? Eu e quem?”
“Mamãe. Quem mais?”
“Bom, é que não tem um pingo de verdade nisso, é o que estou tentando dizer.”
“Não me interessa. Não tenho nada a ver com isso.”
“Bom, você tem, sim, Emma. Você é parte da família. Só quero evitar algum mal-entendido estranho.”
“Não tem nenhum mal-entendido”, ela diz e sorri para as duas mulheres que ainda se dão as mãos.
“Não sei de onde ela tirou esse troço, para falar a verdade. Quer dizer, sem mais nem menos ela me faz essa acusação absurda. É simplesmente…”
“Podemos falar de outra coisa, pai? A gente está de férias.”
“Claro”, digo e baixo os olhos para a nuvem de creme rodopiando no meu café.
Um cara com um cavanhaque e câmeras Laica penduradas no pescoço entra no salão acompanhado por duas modelos monumentais. Eles se mantêm a distância, sem olhar para ninguém, estudando as mesas à procura de uma posição estratégica. O homem ergue o dedo para o garçom e aponta uma mesa de canto, distante da luz direta do sol. O garçom aquiesce e se inclina levemente, num meio gesto de reverência. As modelos deslizam numa cadência estudada, como se encenassem cada gesto para uma audiência boquiaberta.
“Você está entusiasmada com a faculdade?”, pergunto à minha filha depois de uma longa pausa.
“Estou”, ela diz.
“Já pensou em qual curso vai se matricular?”
“Estudos ambientais, acho. Também tem curso sobre mulheres na Guerra Civil.”
“Deve ser interessante. Que mulheres? Você diz mulheres célebres ou…”
“Harriet Beecher Stowe, Mary Todd Lincoln. Esse tipo de mulher.”
“Certo”, eu digo. “Mary Todd ficou louca, não foi?”
“Ficou?”
“Acho que sim. Depois do assassinato. Foi internada. Falava sozinha…”
“Sério?”, diz minha filha.
“Acho que sim.”
“E isso é sinal de loucura?”
“O quê?”
“Falar sozinha?”
“Bom…”
“Porque eu falo sozinha o tempo todo.”
“Você fala?”, digo.
“Bom, não o tempo todo.”
“Claro. Quero dizer, não, a gente às vezes fala sozinho.”
“Você fala?”, ela pergunta.
“Claro. Quer dizer, de vez em quando.”
“O que você fala sozinho?”
“Bom, sobre nada na verdade.”
“Sobre nada?”
“Não, só me pergunto umas coisinhas. Umas…”
“Tipo?”, ela diz.
“Tipo: Agora, onde foi que você deixou os óculos? Ou…”
“Ah, mas isso é apenas se perguntar alguma coisa em voz alta. Todo mundo faz isso. Mas, quero dizer, você tem longos diálogos e discussões com você mesmo? Esse tipo de coisa?”
“Discussões?”, eu digo.
“É.”
“Não. Você tem?”
“Não na verdade.”
“Que bom. Fico feliz de ouvir isso. Você me deixou preocupado por um momento.” Minha filha sorri e enfia um pedaço de abacaxi na boca. “Bom, isso tudo me soa muito interessante, Emma. Mary Todd Lincoln e Harriet Beecher Stowe.”
“É. Ela é aquela que Lincoln chamou de ‘a pequena que começou essa grande guerra’.”
A modelo mais alta, na mesa de canto, começa a soltar risinhos incontroláveis e golpear com a mão espalmada suas coxas de ébano, como se tivesse acabado de ouvir a piada mais engraçada do mundo. O fotógrafo e a outra modelo assistem, com os rostos impassíveis, enquanto ela quase se engasga num ataque convulsivo. Então a modelo mais baixa se levanta e passa a dar palmadas entre as espáduas da outra enquanto o fotógrafo continua sentado sem nada fazer. A mais alta pula da cadeira, cuspindo e sufocando, ao que a outra mulher reage batendo-lhe mais nas costas. Aí as duas correm histéricas, atravessando o salão, para dentro do banheiro. O cara do cavanhaque é deixado sozinho na mesa. Ele saca um jornal francês, sacode as folhas para abri-lo, toma um gole de água gelada e começa a ler sobre a má situação em que se encontra o mundo.
“O que foi aquilo?”, minha filha diz.
“Acho que alguma coisa desceu pelo tubo errado.” Minha mulher e meu filho surgem no portal amarelo à entrada do salão e localizam nossa mesa.
“Bom dia”, ela diz, quando se aproximam.
“Bom dia”, digo. “O vento não te deixou dormir esta noite? Você ficou rolando na cama.”
“Não foi o vento”, ela responde, afastando a cadeira para se sentar.
Passo o resto de nossos dias lá caminhando pela areia branca, lendo romances de Graham Greene e fazendo bodysurfing com meu filho. Algumas noites, vamos jantar no pequeno vilarejo meio mambembe, circulando por ruelas sujas, minha mulher tirando fotografias de cachorros despelados que nos observam de cima de terraços protegidos por arame farpado. De vez em quando, topamos com algum amigo ou conhecido de uma visita anterior e nos sentamos em algum café para uma cerveja. Numa noite escaldante, visitamos as ruínas e subimos os degraus do templo cujas pedras ainda exibiam as manchas do sangue negro de corações sacrificados. A questão da “namorada” foi abandonada completamente, embora uma animosidade persistente e inegável emergisse nas horas mais estranhas: numa discussão sobre o uso da palavra buscando e num pequeno desentendimento sobre deixar ou não ligado o ventilador de teto a noite toda, desperdiçando preciosa energia solar. Mas, na maior parte do tempo, nos portamos decentemente um com o outro e até andamos de mãos dadas, uma ou duas vezes, ao pôr do sol, lembrando uma época em que dificilmente nos separávamos e não tínhamos motivo algum para duvidar de que seríamos eternamente dois apaixonados.
No voo de volta, sentamos os quatro numa fila horizontal, o corredor a nos separar de dois em dois. Nossa filha e eu formamos uma das duplas. Bem atrás de nós ficou o casal de St. Paul. O homem sentou junto à janela. Quando voávamos alto sobre o Mississipi, ele produziu uma série de ruídos guturais e silenciou recostado ao vidro. A mulher emitiu um gritinho desesperado e se precipitou sobre o marido para socorrê-lo. Soltei o cinto e fui ver se podia ajudar. A mulher se esparramava no colo do marido, a mão agarrando o lenço branco com o qual tentava conter o fluxo horrível de uma secreção marrom que lhe escorria pelo peito. Ela chorava e beijava sua testa, a essa altura branca como o lenço. O corpo inteiro dele parecia murchar, espremido contra o vidro, por onde se via passar o céu a toda velocidade. Ela se virou para mim e seu rosto estava desfigurado pela dor. Todo o pesar que reprimia heroicamente transbordava agora. Ela se afastou e segurei o homem pelos ombros para removê-lo para o corredor. Assim que o peguei soube que estava morto. Deitei-o de costas no chão. Outro passageiro, que se dizia médico, ajoelhou-se, desabotoou-lhe a camisa e, com uma mão sobre a outra, começou a pressionar e soltar alternadamente o peito do homem. Observei, no dedo do médico, um anel com um rubi escuro e o emblema de uma cobra enrolada numa cruz. A mulher continuava rondando sobre os olhos bem abertos do marido morto, sussurrando-lhe palavras suaves entrecortadas por soluços. As aeromoças fecharam as cortinas que davam para a primeira classe e cobriram as pernas e o dorso do morto com mantas estampando a logomarca da companhia aérea. Usando um apetrecho plástico, o médico passou a tentar reanimá-lo com respiração boca a boca. Quando parou para descansar, a mulher implorou que continuasse. O piloto anunciou no sistema de som que faríamos um pouso de emergência em St. Louis, e nos deu as instruções de colocar o encosto dos acentos na posição vertical e apertar os cintos. O avião desceu e sobrevoou a cidade. O rosto do médico tinha agora uma expressão sombria, embora a mulher persistisse nos apelos para que ele não interrompesse seus esforços. Ao aterrissarmos, consegui ver carros de emergência alinhados na pista de pouso, suas luzes amarelas e vermelhas piscando.
Jovens paramédicos vestindo macacões azuis entraram e ataram o morto a uma maca com rodas. A mulher e o médico os seguiram para fora do avião. Da minha janela, pude ver o corpo saltando espasmodicamente quando foi ligado ao desfibrilador elétrico. Os braços balouçantes pendiam, inanimados, sobre o asfalto da pista. Cobriram o rosto do morto com mantas. O médico passou o braço em volta dos ombros da viúva. Os dois deram um passo atrás, afastando-se do corpo.
Fomos de carro, em silêncio, do aeroporto até em casa. Quando chegamos, finalmente, as crianças logo foram para a casa de amigos na vizinhança. Os cachorros ficaram felizes com nossa volta. O canário se debatia de um lado ao outro da gaiola, fazendo tilintar seu sininho de latão. A casa estava fria e ligamos o termostato em 24 graus. Arrastamos a bagagem escada acima até o quarto e a abandonamos pelo chão. Meu celular começou a tocar e piscar em cima da cama, bem no meio dela. Exatamente onde eu o havia deixado.
* Tradução de Christian Schwartz.
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