“Faço tudo com muita discrição e cuidado. Não sou do tipo que vai produzir frases de efeito ou falar coisas bombásticas. Não vou falar mal dos outros”. FOTO: J. R. DURAN
A verde
Rompida com o PT, acolhida pelo PV e rodeada por interesses diversos, Marina Silva percorre o país defendendo uma "nação de baixo carbono"
Daniela Pinheiro | Edição 40, Janeiro 2010
Na manhã de um domingo de muito calor, um Range Rover blindado se dirigia à Zona Oeste de São Paulo, para a festa de comemoração do aniversário do parque da Água Branca, na qual seria servido um café da manhã preparado com produtos orgânicos. Passava das dez e a dona do carro, a grã-fina Ana Paula Junqueira – cujo marido, um milionário sueco, diz ser dono de uma área na Amazônia equivalente a 200 mil campos de futebol –, conversava com sua carona, a senadora Marina Silva, candidata à Presidência da República pelo Partido Verde.
“Marina, você vai passar por Londres depois de Copenhague?”, perguntou Ana Paula, falando da conferência internacional sobre o clima. A senadora respondeu que deveria ir a Londres e Paris, onde o professor José Eli da Veiga, da Universidade de São Paulo, tentava organizar encontros com eleitores brasileiros. “É que eu queria saber se você gostaria de se encontrar com o Gordon Brown”, disse a socialite. “Ele é muito amigo do meu marido, seria muito fácil arranjar isso aí.”
Antes que a senadora pudesse responder, a outra carona, Patrícia Penna, mulher do presidente do PV José Luiz Penna, começou a falar da Semana de Moda do Design Sustentável, evento que ela inventou e que o marido sustentou, inclusive propondo um projeto de lei, na Câmara de Vereadores, instituindo o Dia do Design Sustentável.
“Marina, seria uma honra muito grande você aparecer lá”, ela disse. “Vai ter muita gente ligada ao desenvolvimento sustentável, acho que seria uma oportunidade incrível.” Ensanduichada entre as duas mulheres, a senadora olhava impassível para a frente. Ainda que não tivesse obtido resposta, Patrícia Penna emendou outro pedido. Queria que Ana Paula Junqueira convencesse a estilista Stella McCartney, sua amiga, a participar da Semana Sustentável no próximo ano. “Ela é vegetariana, sempre trabalhou com material sustentável”, argumentou. “E estou vendo o Al Gore também. Vocês acreditam que ele cobra 200 mil dólares?” Marina Silva continuava imperturbável.
Desde que havia se declarado candidata ao Planalto, em agosto, sua agenda de compromissos quadruplicara. Além do trabalho no Senado, que a obrigava a passar no mínimo três dias em Brasília, o resto da semana era dedicado a viagens pelo Brasil, participando de almoços, jantares, palestras, conferências, mesas-redondas e entrevistas a estações de rádio e televisão.
Segundo as pesquisas eleitorais, Marina Silva entrou no páreo com 12% das intenções de voto, o que a colocava em um possível terceiro lugar. No começo de dezembro, caíra para 6%, com uma surpreendente rejeição: 40% dos eleitores diziam não votar nela “de jeito nenhum”. Ainda assim, sua candidatura continuava a produzir uma aglutinação exótica de grupos de interesses distintos.
À sua volta, passaram a orbitar os até então desconhecidos caciques do PV, os ricos com consciência ecológica, os desgarrados do PT e os radicais anônimos do Partido Socialismo e Liberdade, o PSOL, de olho na vaga de vice. Se as visitas de pastores evangélicos ao seu gabinete no Senado eram usuais, elas se tornaram uma romaria. O assédio dos jornalistas estrangeiros explodiu: em uma semana, ela recebeu oito pedidos de entrevistas de órgãos de imprensa internacionais.
Naquela manhã, Marina cumpria seu nono compromisso desde que chegara a São Paulo, na antevéspera. Teria ainda outros dois até o final do dia. No parque da Água Branca, uma turba de pessoas de camiseta e sandálias de dedo beliscava biscoitinhos de farinha integral, tomava café de grãos orgânicos, provava castanhas, granolas e afins quando ela passou reto pela mesa e foi cercada por desconhecidos que a abraçavam e tiravam fotos no celular.
“Senadora, estamos com você! Vamos mudar o Brasil, você é única!”, disse uma senhora de chapéu, segurando-a pelo braço. A senadora sorriu, agradeceu e foi novamente interrompida por um simpatizante. “Só você para moralizar essa baderna”, disse o homem barbudo. Ela retribuiu com um sorriso tímido. “Marina já”, ouviu-se.
A senadora pegou o microfone e fez um rápido pronunciamento. Exaltou a necessidade de se construir uma “nação de baixo carbono” e comemorou o fato de, na véspera, ter sido divulgado o menor índice de desmatamento da Amazônia. Concluiu dizendo que “é por isso que a derrota e a vitória só se medem na História”.
Aos 51 anos, Marina Silva tem o mesmo peso da juventude, 53 quilos, mantidos por uma dieta compulsória, devido a um histórico de doenças contraídas quando morava num seringal, no Acre. Ela não pode comer, usar, cheirar, encostar em uma lista infindável de coisas: frutos do mar, condimentos, lactose, carne vermelha, álcool, bebidas gasosas, qualquer cosmético, perfume, tinta de impressora, carpete, poeira. O contato com qualquer um deles lhe causa imediata coceira, falta de ar e, às vezes, taquicardia.
Ela é naturalmente elegante, e quase sempre usa vestidos longos, arrematados por um xale. Tem quase cinquenta deles. O cabelo anelado é amarrado em um coque, circundado por uma fina trança. No dedo anular esquerdo, usa uma aliança dourada, com a inscrição “Jesus”, e carrega uma bolsa preta quadrada, na qual não há espaço para quase nada além de uma grande Bíblia de capa de couro preta, toda grifada a lápis.
Em uma manhã de novembro, em seu gabinete em Brasília, ela usava um vestido longo de estampa tie-dye em matizes amarelo, verde e azul, que deixava seus braços finos e firmes à mostra. De meia-calça cor da pele, equilibrava-se com destreza em altíssimo salto de verniz preto. Havia trazido um xale cinza, mas pediu que o motorista voltasse em sua casa e buscasse um lilás “que era o certo” para aquela roupa.
“Eu faço tudo com muita discrição e cuidado. Não sou do tipo que vai produzir frases de efeito ou falar coisas bombásticas”, disse-me, com um tom maternal. “Não vou falar mal dos outros. Tudo meu é feito com muita calma.”
O telefone tocou. Um de seus assessores lhe disse que um projeto de lei de sua autoria seria novamente tirado da pauta de votações. “Isso está há oito anos tramitando e agora vão pedir vistas falando que o governo não fez parecer técnico? Me poupe!”, brandiu.
Nos quatorze anos como senadora, Marina apresentou quase sessenta projetos de lei, quatro propostas de emenda à Constituição e dois decretos legislativos. Um dos que considera mais importante – que institui um repasse orçamentário para estados que possuam unidades de conservação, reservas ou terras indígenas demarcadas – está há três anos esperando ser votado pelo plenário da Câmara.
De sua autoria, viraram lei o projeto que concedia anistia aos marinheiros da revolta da Chibata, o que torna mais rigorosa a punição de quem divulga pornografia infantil pela internet, o que criou o Dia Nacional de Luta pela Reforma Agrária e o que incluiu Chico Mendes no Livro de Aço dos Heróis da Pátria.
“Sempre houve má vontade”, ela explicou. “Mesmo quando eu estava no governo e queria aprovar alguma coisa, eles me diziam: ‘Se você conseguir convencer o PFL, o PMDB, tudo bem.’ Só para ter uma ideia, quem fez a defesa do meu projeto de subsídio para a borracha foi o Serra. Porque se fosse eu, não aprovavam.”
Ao mesmo tempo em que conversava, ela lia o clipping dos jornais, despachava com assessores e checava mensagens pelo celular. “Tem muita gente que quis fazer do meu mandato algo folclórico como fizeram com o do Juruna”, disse. “Como se eu fosse algo regional ou segmentado. Quando o que eu sempre me propus a fazer foi ter uma proposta ampla.”
Ela perguntou a uma assessora se havia lido os jornais. Na véspera, o ex-ministro José Dirceu havia escrito em seu blog que as alianças pretendidas por Marina revelavam “o caráter não programático de sua candidatura”. Sem tirar os olhos do clipping, ela disse com sarcasmo: “Ele já falou que viajo por conta do Senado, quando nunca viajei. Quis que eu devolvesse meu mandato….” E calou-se.
Assim que foi eleito, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi aos Estados Unidos, onde revelou os primeiros integrantes do seu ministério: Antonio Palocci, na Fazenda, e Marina Silva, no Meio Ambiente. Sua indicação foi comemorada pelos jornais New York Times e pelo Financial Times.
“Marina talvez seja a personalidade política brasileira mais conhecida fora do Brasil depois do Lula”, lembrou o ex-deputado Fábio Feldmann, do PV. “Ela entrou no governo representando o avanço, sinalizando que haveria uma discussão ética e de futuro sobre o desenvolvimento sustentável. Ela era um cartão de visitas para o governo Lula nessa área.”
No primeiro mandato do presidente, Marina Silva parecia ter autonomia. Conseguiu feitos inéditos, como colocar na cadeia mais de 700 pessoas por crimes ambientais e bater o recorde na delimitação de terras preservadas. Também aprimorou o sistema de licenciamento ambiental e diminuiu o ritmo de desmatamento da Amazônia.
Mas logo houve problemas. Ainda em 2002, em uma carta a entidades ambientais, ela se comprometeu com a decretação de uma moratória do comércio e da importação de produtos e sementes geneticamente modificados. No Ministério, tentou manter a promessa. “Mas o Planalto se empenhava a todo custo em aprovar a liberação dos transgênicos, e não chamavam a Marina para os debates, ela telefonava e eles se faziam de mortos”, contou a ambientalista Marijane Lisboa, integrante da equipe de Marina no Ministério.
Marijane lembrou-se de um episódio no qual a ministra estava no Xingu, incomunicável. “Abrimos o jornal e vimos que o Zé Dirceu tinha mandado buscar de avião o governador gaúcho Germano Rigotto, ligado ao agrobusiness, para fazer lobby para os transgênicos”, contou. “Tentamos falar com eles e nem sequer atendiam. Fizeram de propósito porque sabiam que ela estava no cafundó do Judas.”
Marina insistia que, antes da autorização para o plantio, fossem feitos estudos preliminares sobre o impacto ambiental do cultivo. Os ruralistas contra-argumentavam com generalidades: a ministra atrapalhava o desenvolvimento, e o agronegócio era responsável por mais de 20% do Produto Interno Bruto.
Da parte do governo, quem melhor resumiu o pensamento do presidente Lula sobre o assunto foi seu chefe de gabinete, Gilberto Carvalho, em uma entrevista à revista Veja, em 2008. Segundo Carvalho, o presidente “acha importante a preservação, mas, entre um cerradinho e a soja, ele é soja. O ambiente é uma questão importante, mas não é decisiva. O que é decisivo é a economia”.
Pouco tempo depois, por meio de uma medida provisória, o governo legalizou a primeira safra de soja transgênica. Foi a primeira vez que Marina Silva cogitou pedir demissão. “Depois, aprovaram a Lei da Biossegurança, que possibilitou o plantio comercial das sementes, e ficou claro que a coisa iria desandar em algum momento”, disse Marijane Lisboa.
No segundo mandato, os atritos se intensificaram. Um deles dizia respeito ao asfaltamento da BR-163, que liga Cuiabá a Santarém, e ficou conhecida como “a estrada Blairo Maggi”, uma referência ao governador do Mato Grosso, o maior plantador de soja do Brasil.
A obra, que corta uma das regiões mais ricas em recursos naturais do país, barateia o escoamento da produção do norte do Mato Grosso em direção ao rio Amazonas. Marina se opunha, exigindo estudos de impacto ambiental. O mesmo ocorreu em relação à construção de duas hidrelétricas no rio Madeira, em Rondônia. Lula reclamou que as licenças ambientais estavam demorando muito e criticou a ministra.
“Ela se revoltava porque não são obras para levar luz a famílias do interior, mas sim para alimentar indústrias energointensivas que irão vender aço, celulose, alumínio e cimento fora do Brasil”, afirmou a ex-assessora.
Marina Silva ainda teve que ceder na Lei de Gestão de Florestas Públicas, perdeu no debate sobre a retomada do programa nuclear e nunca foi ouvida sobre o etanol. Ainda teve que enfrentar uma greve, também criticada por Lula, de dois meses no Ibama, o Instituto do Meio Ambiente, depois da reestruturação do órgão.
Quando o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais anunciou um aumento significativo no desmatamento da Amazônia, que vinha diminuindo nos últimos três anos, houve novo constrangimento. Blairo Maggi contestava os números e Marina Silva solicitou uma audiência ao presidente. “Ela pediu para falar antes do Blairo Maggi”, contou Maristela Bernardo, outra ex-assessora da ministra. “Ficou esperando na antessala e, quando foi chamada, Lula já estava conversando com o governador.” Novamente, pensou em se afastar do cargo, mas acabou ficando.
Internamente, funcionários de carreira acusavam Marina Silva de ter loteado os cargos do Ministério entre os representantes de organizações não governamentais e evangélicos. A senadora se irrita com a acusação. “O meu erro foi colocar gente que entende do assunto no Ministério? Alguém já criticou um ministro da Fazenda por botar economistas na equipe dele?”, ela me disse. “Quanto aos grupos religiosos, havia de tudo: católicos, protestantes, evangélicos, budistas, como em toda sociedade há.”
Entre os ambientalistas, também havia divisão em relação à ministra. “Está provado que energia nuclear é limpa e segura”, disse o consultor ambiental Fábio Olmos. “Transgênicos, pesquisa com célula-tronco, isso você testa, vê o impacto e autoriza ou veta. Ela é do time dos que não querem nem testar.”
Marina ameaçou novamente sair quando o governo ventilou a possibilidade de anistiar os grandes desmatadores da Amazônia. Mas só se decidiu ao ser surpreendida, no meio de uma cerimônia pública, com a notícia de que o Plano Amazônia Sustentável, do qual foi uma das principais articuladoras, ficaria a cargo do então ministro Mangabeira Unger. E saiu sem romper com Lula.
Com menos de dois minutos de propaganda gratuita na tevê durante a campanha eleitoral do segundo semestre, o PV tentava se coligar com o PSOL – o que dobraria seu tempo. “O PSOL não quer que a Marina elogie o FHC ou o Lula”, disse o presidente do partido, José Luiz Penna. “Eles também querem barrar uns apoios, estão interessados no lugar de vice. E tem essa coisa do MST, que eles acham que temos que ficar ao lado a qualquer custo. Não é fácil, não.”
Aos 64 anos, o potiguar Penna é alto, magro, usa rabo de cavalo e barba grisalhos. Sua trajetória política de militante da causa indígena se confunde com a artística: atuou no musical Hair, no final dos anos 60, e tocou na banda Papa Poluição. Marina Silva se filiou ao PV com a promessa de encabeçar uma reestruturação no partido, que tem como líder na Câmara o deputado Zequinha Sarney.
Em outubro, encontrei o jornalista Toinho Alves, amigo de Marina há trinta anos, no aeroporto de Rio Branco. Ele estava preocupado com os rumos da candidatura. Mostrava-se aborrecido com o fato de Marina parecer estar sendo engolida por uma agenda de compromissos extensa e muitas vezes improdutiva. Estava amolado também com os factoides lançados por políticos e empresários que queriam pegar carona na sua candidatura. Até o ex-governador Luiz Antonio Fleury Filho apareceu como alternativa verde ao governo paulista.
No cerne de suas preocupações estava o PV. “É um partido complicado. Eles são palanque do Serra no Rio, estão coligados com o DEM em alguns estados do Nordeste, tipo Maranhão”, falou enquanto esperava na fila de embarque. “O ministro Juca Ferreira, da Cultura, disse que o PV não estava preparado para receber a Marina. E ele está certo.”
Uma jornalista francesa entrou no gabinete de Marina Silva, onde todos os presentes suavam em bicas, já que a senadora não pode com ar-condicionado. Em algumas entrevistas, ela dá a impressão de se entediar com as perguntas, que parece já ter respondido milhares de vezes: por que saiu do PT, o choque com Dilma Rousseff, se ela não se acha quixotesca, se está magoada com Lula, se as metas de redução de emissões de carbono do governo são satisfatórias, o que ela acha do pré-sal ou se a Amazônia tem saída.
Quando é assim, ela toma fôlego e emenda frases de muitas, muitas palavras, com uma dicção mecânica, mas educada. Sempre menciona que o aquecimento global é uma bomba a ser desmontada nos próximos cinquenta anos; que o Brasil tem a matriz energética mais limpa do mundo e por isso deveria dar exemplo; que pesquisas mostram que os brasileiros preferem pagar mais caro por alguns produtos, em troca de preservar a Amazônia. Quando fala, seu olhar se desvia para a diagonal, dando a impressão ao interlocutor de que ele conversa com um cego.
Outra característica de Marina é não fazer ataques diretos. Na sua coluna semanal na Folha de S. Paulo, quando quer criticar o governo, costuma usar imagens cifradas ou parábolas. O padrão se repete nas conversas pessoais. Uma pergunta simples, como “Se perder a eleição, vai se dedicar a um papel como o do ex-vice-presidente americano Al Gore?”, se transforma em uma digressão de cinco minutos, cujo resumo seria “não”.
Não é possível dizer que ela tergiversa de propósito, se é prolixa ou tem dificuldade de sintetizar seu pensamento. O fato é que ela nunca dirá: “O Lula quer faturar como o pai dos pobres.” Numa palestra recente ela disse: “A nossa sociedade é patriarcal. As pessoas querem um líder que ocupe o lugar de pai. Na democracia, você não pode oferecer um destino. Você oferece a possibilidade de um mundo melhor. E não um salvador da pátria.”
Marina Silva estava atrasada para a Comissão de Constituição e Justiça, na qual um projeto de sua autoria – que cria um índice brasileiro de responsabilidade social –, apresentado em 2001, seria apreciado. Caminhando pelos corredores do Senado, ela cumprimentou copeiras, secretárias de outros gabinetes e parou para conversar com quem a interpelasse.
Sentou-se na primeira fileira da sala, ganhou um beijo na testa do senador Tasso Jereissati e depois um tapinha no ombro do senador pelo Maranhão Edinho Lobão, que todos chamam de Lobinho por ser filho do ministro Edison Lobão. Seus assessores entravam e saíam da sala com papéis e resumos para que ela se inteirasse das demais votações. Diferente da maioria dos senadores, Marina prestou atenção na sessão e não conversou com ninguém.
Duas horas e meia depois, quando o projeto foi aprovado, voltou para sua sala para almoçar. Na marmita, preparada em casa, havia frango cozido, arroz, feijão, rúcula, tomate e farinha. Ela comia devagar, em garfadas mínimas, arrematadas com goles de água em temperatura ambiente (não tolera bebidas geladas).
Perguntei se a candidatura do empresário Guilherme Leal – fortuna de 1,2 bilhão de dólares estimada pela revista Forbes – como seu vice não traria mais benefícios para a empresa dele, a Natura, do que para a candidatura dela. “No Brasil, estamos acostumados com oligarquias”, ela respondeu. “Mas não se pode confundir elite com oligarquia. O José Alencar, o Oded Grajew, o Israel Klabin, o Guilherme Leal, eles são elite. É gente que pensa o Brasil como nação, têm ideias, estão verdadeiramente empenhados e são bem-intencionados. Esse é um interesse legítimo. Por incrível que pareça”, afirmou.
Sobre seu plano de governo, ela disse que uma comissão de intelectuais e políticos debateria as propostas. “Ainda temos tempo. Como te falei, faço as coisas devagar.” Para que não se ficasse sem exemplo, ela disse que, na sua Presidência, quem produzir com vistas ao desenvolvimento sustentável será beneficiado. “Se precisar mudar a Lei de Licitações, para desonerar as exportações e atrair desenvolvimento tecnológico, vamos fazer”, afirmou. “Não vamos ignorar quem fez direito, quem certificou o seu etanol, a sua madeira, quem respeita a área de preservação legal. Essa pessoa, que hoje vê o governo perdoando quem faz errado, se sente uma tola.”
Sua filha mais velha, Shalon, uma pedagoga de 28 anos, lhe telefonou. Disse a Marina Silva quanto custava a passagem para Israel, onde faria um curso de três meses. A senadora concordou em dividir o bilhete em quatro vezes, mas antes checou a possibilidade de usar milhagem.
Em seguida, ela contou que nas horas livres gosta de costurar, fazer bijuterias étnicas (que ela mesma usa) e escrever poesia. Duas delas já foram musicadas por artistas de Brasília e do Rio. Ela costuma escrever sobre temas cotidianos, ou então sobre fatos marcantes da sua vida. Prefere enfoques de viés feminino, como em “De Marias, de Amélias e de Madalenas”:
No sofrimento somos Maria
Mãe de um Deus assassinado
Marias sem alegria
Dor sem futuro ou passado
Na renúncia somos Amélia
De uma triste verdade
Amélias sem sonho
Desejo ou vontade
No preconceito, Madalena
Nas praças apedrejada
Madalenas: ao pecado
E à culpa predestinadas
Só no amor temos os nomes
E as formas de nossa estima:
Velha mãe, jovem formosa
E, eternamente, menina.
No meio da tarde, a entrada de seu gabinete estava lotada. Um senhor bronzeado saiu da sala de Marina Silva e se dirigiu, com forte sotaque carioca, a uma mulher bem penteada e maquiada, vestida de terninho creme com colar e brincos de pérola: “Oi, pastora! Você está nas minhas orações, hein?” Cinco pastores evangélicos esperavam ser recebidos.
A senadora parecia cansada, mas ainda havia um encontro com uma repórter do jornal argentino Clarín. Durante meia hora, ela deu as mesmas respostas às mesmas perguntas.
Eram quase nove da noite quando Marina Silva saiu para casa. Ao cruzar a ala dos elevadores no Senado rumo à garagem, avistou a apresentadora Sabrina Sato, do programa Pânico na TV. Seus assessores sugeriram mudar de rota, mas ela prosseguiu.
Usando um microvestido azul e salto doze, Sabrina pediu que a senadora falasse sobre políticas para tratar usuários de drogas. Quando as câmeras foram ligadas, a senadora pareceu murchar. Seus ombros se arquearam, ela se cobriu com o xale como se usasse um cobertor nas costas e sua voz ficou quase inaudível.
Talvez a senadora quisesse demonstrar gestualmente a sua seriedade, já que falava a um programa de humor escrachado. Mas, numa entrevista num estúdio de televisão, a impressão foi a mesma: o vídeo diminui sua presença. Ao se afastar de Sabrina Sato, comentou: “Essa menina é inteligente. Foi entrevistar o senador Lobinho e ele foi dizendo que a mulher dele também trabalhava em televisão. E ela disse: ‘Na sua é fácil, né?'”
Aos 19 anos, o cearense Pedro Augustinho da Silva desembarcou no Acre com a promessa de melhorar de vida cortando seringa. Tinha um parente que já estava estabelecido no seringal Bagaço, a 70 quilômetros de Rio Branco, onde passou a trabalhar dezesseis horas por dia. Tirava três latas de leite de látex diariamente. Do que ganhava, tinha que dar metade ao dono do seringal e outros 20% ao gerente.
Oito anos depois, mandou buscar a mãe e a noiva, Maria Augusta. Casaram-se e tiveram onze filhos; oito deles sobreviveram – sete mulheres e um homem. A única a ter frequentado a escola foi Osmarina, nome de batismo da senadora Marina Silva.
Em uma manhã de outubro, no escritório político da senadora em Rio Branco – uma casa simples sem ar-condicionado mesmo à temperatura média de 39 graus –, Pedro Augustinho da Silva usava camisa verde, calça jeans, chinelo de dedo e um boné vermelho. Aos 82 anos, aparenta 60. “Ela aprendeu matemática em uma noite”, disse o pai. “Começamos às sete e terminamos às duas da madrugada, com aquela fumaceira da vela, os olhos pingando. Mas ela aprendeu, não sei nem dizer como.” Marina só se alfabetizou aos 16 anos.
Seus parentes são agricultores, motoristas de ônibus, instrutores de autoescola e donas de casa. O pai vive com uma aposentadoria do INSS, já que não tinha documentos quando instituíram a pensão aos chamados “soldados da borracha”. Em caso de doença e para a formação dos sobrinhos, a senadora é o arrimo da família. A única propriedade dela é uma casa, em Rio Branco.
Usando um coque e vestindo saia comprida, blusa de gola de babado e um casaquinho, a filha Lúcia lembrou-se da infância. Acordavam cedo e caminhavam 7 quilômetros com o pai até o seringal. Quando a rodovia BR-364 rasgou a selva, trouxe consigo um rastro de malária e sarampo. Tios, primos e a avó de Marina sucumbiram.
Dentre os filhos, Marina foi a que mais adoeceu. Aos 6 anos, teve o sangue contaminado por mercúrio, o que seria a origem de todos os seus problemas de saúde. Teve cinco malárias, uma leishmaniose e três hepatites.
“Ela não conseguia mais ir para o mato”, lembrou o pai. “Ia devagar, arrastando os chinelos. Um dia, quando estava construindo um chiqueiro, a Marina falou que queria ir aprender em Rio Branco. E eu falei: ‘E tu lá vai aprender alguma coisa?'”
A irmã falou que Marina era a mais curiosa da casa. A mãe, que morreu quando a senadora ainda era menina, brincava dizendo que ela era “metida” porque tentava falar como os locutores da rádio. Em vez de cuié, ela insistia em dizer “colher”.
Aos 16 anos, foi morar no convento das Servas de Maria. A vontade de ser freira veio da avó, que contava as histórias da Bíblia à neta. Matriculou-se no Mobral e aprendeu a ler. Segundo o pai, pouco depois, Marina desistiu do convento porque era obrigada a deixar com as freiras o pouco dinheiro que recebia.
Foi trabalhar como empregada doméstica na casa de Teresinha da Rocha Lopes, hoje com 76 anos. Em uma tarde, ela me recebeu na garagem de sua casa, uma construção escura, com móveis comprados na década de 70 e sofás com paninhos de crochê no apoio dos braços. “Ela era doentinha, magrinha”, comentou. “Não ganhava salário, só morava aqui. Dormia no quarto com minha filha.”
Teresinha recordou que Marina lamentava ter que lavar à mão a roupa cheia de lama de seu filho mais velho, que trabalhava no Instituto Nacional de Reforma Agrária. “Mas nunca reclamou ou disse que não ia fazer.” Também contou que recentemente a família discutira em quem votariam na próxima eleição. Um dos filhos achava que Marina não tinha chances, então cogitava outro candidato. “Mas nós votaremos nela sempre”, disse olhando para o marido, um senhor de quase 90 anos.
Dois meses depois, na volta de um compromisso, relatei o encontro à senadora. “Eu gostava deles, sempre me trataram muito bem”, disse. Em seguida, contou vários episódios de sua vida como doméstica, rindo de algumas situações. Eu comentei estar surpreendida por ela ainda se lembrar de tantas coisas. “Os empregados sempre se lembram da vida dos patrões, o oposto é que é raro ocorrer”, falou.
Quando era empregada, a saúde frágil a incomodava. Com a ajuda do bispo de Rio Branco na época, dom Moacyr Grechi, conseguiu hospedagem e tratamento médico em São Paulo. As passagens foram providenciadas pela família, que vendeu uma égua e um filhote de outro animal cujo nome não consta no dicionário.
Na volta, ela conheceu Raimundo Souza, técnico em eletrônica, que frequentava sua igreja. Foi seu primeiro namorado. Casaram-se e foram morar num barraco na periferia. A essa altura, havia concluído o supletivo de 1º e 2º graus e, logo depois, foi aprovada no vestibular de história da Universidade Federal do Acre. Marina continua a estudar. É aluna de pós-graduação em psicopedagogia, em Brasília.
“Na casa dela as paredes eram de lona preta”, lembrou o governador do Acre, Binho Marques, amigo de Marina Silva desde o movimento estudantil. “Você não tem noção do que era. O chão tinha tábuas soltas. Um cômodo com uma cama de casal e nada mais”, disse.
Na faculdade, Marina entrou para um grupo de teatro, o Semente, que reunia estudantes trotskistas. Aproximou-se da política se candidatando ao Centro Acadêmico de História (perdeu) e depois se filiando ao Partido Revolucionário Comunista, organização clandestina na qual militaram José Genoíno e Tarso Genro.
Foi numa entrevista para um trabalho da faculdade que Marina Silva conheceu Chico Mendes. “A sintonia foi total”, lembrou o governador Binho Marques. Ela já dava aulas de história e passou a frequentar as reuniões do movimento sindical. Seus filhos mais velhos – Shalon e Danilo, que é publicitário em Brasília – já haviam nascido.
“Ela tinha uma oratória incrível e era aquela figura exótica, morena, com aquele cabelão solto, uns brincões, sem parecer ter medo de nada”, disse Binho. O grupo, que incluía o futuro governador do Acre Jorge Viana, decidiu que deveriam se filiar ao Partido dos Trabalhadores para ajudar Chico Mendes a ser eleito deputado estadual.
Nessa época, seu casamento se desfez. Sozinha com os dois filhos, Marina passou a receber a visita de um colega da faculdade que lhe levava legumes e verduras orgânicas por saber que ela tinha alergia a qualquer produto cultivado com agrotóxicos. “Eram umas alfacinhas murchas”, ela brincou.
Era Fábio Vaz de Lima, com quem está casada há 23 anos, pai de suas outras duas filhas: Moara e Mayara. Alto, loiro e corpulento, Lima deixou Santos, onde cursou uma escola agrícola, para morar no Acre, em uma comunidade alternativa. Filiado ao PT e com um cargo no governo estadual, ele é discreto e deixa os holofotes para a mulher. Quando pedi para encontrá-lo, ele disse que estava no sul do Acre. No fim do dia, avistei-o no prédio do gabinete do governador, em Rio Branco. Com o ex-marido, que é funcionário da Embratel, Marina tem pouco contato, mas a mãe dele mora com ela em Brasília.
Naquela eleição, o PT não alcançou o quociente eleitoral, mas, dois anos depois, em 1988, Marina foi a vereadora mais votada de Rio Branco. Durante seu mandato, os acreanos ficaram sabendo pela primeira vez de que se compunha o contracheque de um vereador. Marina devolveu o dinheiro de gratificações, auxílio-moradia, auxílio-paletó e outras mordomias. Em 1990, foi eleita deputada estadual e liderou um movimento para acabar com a aposentadoria de ex-governadores.
Chegou ao Senado em 1994. No final do primeiro ano de mandato, ela passou mal depois de uma viagem. Foi internada às pressas e desenganada, devido à contaminação por mercúrio. Passou um ano e oito meses morando na casa da sogra, em Santos, onde lhe davam comida na boca. “Eu só dormia no colo do meu marido para que ele ouvisse o meu coração, de tanto medo que eu tinha de morrer”, falou.
Em dezembro de 2004, Marina se tornou evangélica da Assembleia de Deus, surpreendendo até mesmo seus amigos mais próximos. Segundo me disse sua irmã Lúcia, que é da mesma igreja, “Marina foi curada graças a Deus. Os irmãos da Assembleia oraram muito por ela.”
Dom Moacyr Grechi, hoje arcebispo de Porto Velho, conheceu Marina aos 17 anos. Quando decidiu sair do PT, ela foi encontrá-lo, para se aconselhar. “Eu não concebia a Marina como evangélica pentecostal”, ele comentou. “Porque os evangélicos luteranos, anglicanos, têm uma profunda tradição ideológica e política a favor da luta dos pobres. Mas esses pentecostais, não”, disse.
O governador Binho Marques tem outra opinião sobre a conversão. “Conheci a Marina católica, meio comunista, afastada da religião, e protestante, mas ela sempre foi a mesma pessoa”, afirmou. “Acho que Marina procura achar uma representação externa, para definir o que ela é. Hoje ela acha que isso é ser evangélica, mas esses rótulos nada influenciam o que ela foi e é realmente”, concluiu.
Segundo Marina, uma conversão não acontece de uma hora para outra. Nem é algo que se possa explicar racionalmente. “Não é que você sente falta de alguma coisa e vai buscar outra religião”, ela disse. “Você só se dá conta do que faltava quando experimentou a outra coisa, e aí vê o quanto agora está completa.”
Ela disse que uma das diferenças entre a doutrina evangélica e o catolicismo diz respeito à culpa. “Como em Jeremias, a linha de medir estender-se-á para diante”, afirmou. Pedi que explicasse melhor. “O que passou ficou para trás. Se você aceitou Jesus, não há por que haver culpa”, falou.
Eram quatro da manhã quando Marina Silva e um assessor chegaram ao aeroporto de Brasília. Às seis, desembarcariam em Guarulhos, onde um carro os levaria para compromissos em São José dos Campos e Campinas. A agenda era pesada: um congresso de direitos dos trabalhadores rurais, uma conferência da Câmara Americana de Comércio, duas palestras na Pontifícia Universidade Católica, três entrevistas em canais de televisão e um almoço com professores da Unicamp.
Em Campinas, Marina foi escoltada pelo ex-deputado Luciano Zica, que, como ela, saiu do PT depois de três décadas e se filiou aos verdes. A caminho do restaurante, Zica recebeu um telefonema avisando-o de que o ministro Marco Aurélio Garcia estava no local. “Mas ele já está indo embora”, disse à Marina. “Por mim, tudo bem. Até queria dar um abraço nele”, ela respondeu.
Sobre sua saída do PT, ela explicou: “Eu poderia falar que foi pelo apoio ao Sarney, pelo Collor ou porque minha saúde não me permitia mais. Mas não é isso. As minhas ideias não cabiam mais naquela configuração. Aquela cena deles se abraçando quando conquistaram a Comissão de Infraestrutura. Aquilo não é fácil de ver.”
A senadora contou que, na época do mensalão, sua filha de 14 anos foi chamada de “mensalinha” na escola. “Essa coisa do mensalão foi muito, muito difícil de superar”, disse. “Os erros têm que ser pagos. E não pode vir com justificativa que era algo que todo mundo fez.”
O carro estacionou em frente ao restaurante, onde cerca de trinta pessoas a esperavam. Ela continuou a falar sobre o PT: “Pela minha fé, eu sempre espero o melhor das pessoas. Não me regozijo com a dor dos outros. Eu ficava incomodada com aquela reação dos meus ex-companheiros, como quando o Serjão ou o cara do Banco Central foram pegos cometendo irregularidades, ou quando o ministro Ricupero caiu. Aí, eles comemoravam. Eu não sou assim. Não vou deixar de me lembrar de uma coisa boa do Zé Dirceu porque ele me deu uma sacaneada.”
O último compromisso em Campinas seria uma palestra em homenagem aos 30 anos da faculdade de biologia da PUC. O auditório para 250 pessoas estava lotado. Em menos de uma hora, Marina Silva falou sobre sua vida, sobre política, sobre ecologia e sobre o futuro. Citou G. K. Chesterton, Nadia Bossa, Santo Agostinho, Ricardo Goldenberg, Shakespeare, Adelmo Genro Filho, Hannah Arendt, Donald Winnicott e Edgar Laurent.
Se em entrevistas pode parecer prolixa, e se retrai diante das câmaras de televisão, ao vivo ela é imbatível. Mesmo usando expressões como “transversalidade”, “internalização do tema”, “questão intergeracional”, “inflexão civilizatória”, “processo negocial” e “Armageddon ambiental”, conseguiu hipnotizar a plateia.
Quando fala de improviso, com ou sem microfone, mesclando histórias próprias com exemplos cotidianos, ela comove os assistentes. As citações parecem combinar com o contexto, seu tom de voz ganha um crescendo que envolve os ouvintes e sua figura frágil adquire firmeza.
Ao final, o auditório explodiu em aplausos e gritos. Uma das professoras abraçou Marina: “Obrigada por você existir!” Houve quem chorasse. “Meu Deus, estou toda arrepiada. Valeu demais! Ela é muito inspiradora”, comentava uma jovem com a amiga. Depois de dezenove horas ininterruptas de compromissos, ela ainda jantaria na casa de Zica. “É sempre assim, já estou até acostumada”, falou.
No dia seguinte, às dez da manhã, estava a postos para mais uma palestra. N’O Globo, o jornalista Arthur Dapieve escrevera uma coluna que, no início, parecia um elogio. Mas no fim criticava a mistura que a senadora faz entre religião e política. “Esse negócio de religião vai ser o calcanhar de Aquiles da Marina”, comentou Zica. “Eu já falei que ela tem que tomar uma posição científica, não pode falar esse absurdo de criacionismo”, completou ele, referindo-se à interpretação literal da Bíblia.
Mais tarde, Zica se lembrou da palestra do dia anterior, quando ela disse que a natureza gastara milhões de anos para formar a savana. “Tá vendo?”, perguntou. “Essa afirmação dela é incompatível com o criacionismo.”
Há um ano e meio, a jornalista Marília de Camargo César, do jornal Valor, escreve a biografia de Marina Silva. Há outros dois livros publicados sobre a vida dela, ambos de 2001: Marina Silva, da Editora Salesiana, e Marina Silva: Defending Rainforest Communities in Brazil, que ela diz não ter gostado porque teve a impressão de que a autora americana a colocou como uma heroína.
A senadora só aceitou que Marília de Camargo César fizesse a sua biografia porque tanto a jornalista quanto a editora são evangélicas. “Ela considerou que assim poderia alcançar uma abordagem mais ampla do que foi a sua conversão, da experiência espiritual de chegar perto da morte e da força interior da superação”, disse-me Marília, em São Paulo.
A ideia do livro é “também falar para os leigos”, o que a autora acredita ser um desafio devido ao “preconceito” em relação à orientação religiosa da senadora. Marília César citou o programa Roda Viva, da TV Cultura, no qual Marina foi entrevistada em setembro. “O que se viu foi constrangedor: os jornalistas faziam perguntas como se fossem pegadinhas e ficavam com um ar de sarcasmo enquanto ela respondia sobre sua fé”, disse.
Recentemente, durante um simpósio sobre criacionismo, em uma universidade adventista de São Paulo, Marina Silva foi entrevistada por um jornalista evangélico sobre o assunto. Ela disse acreditar que “Deus é o criador de todas as coisas” e que “esse Criador tem um projeto e as coisas não acontecem por acaso”. Em seguida, o rapaz perguntou o que ela achava do ensino do criacionismo em escolas confessionais que também ensinavam o evolucionismo. Ela respondeu: “A ciência se faz pela multiplicidade de olhares. Mesmo que você tenha uma visão criacionista, se você coloca claramente para as pessoas que há outra visão, a do evolucionismo, para que as pessoas tenham liberdade de escolha, não vejo demérito.” E continuou: “O errado é se não formos capazes de ter uma educação plural, que seja capaz de mostrar os diferentes pontos de vista, para que as pessoas possam fazer suas escolhas.”
Nos dias seguintes, blogs, jornais e revistas replicaram a notícia de que Marina Silva defendia o ensino do criacionismo. Não adiantou ela repetir à exaustão que havia sido mal interpretada.
Quando voltávamos de uma viagem de carro, perguntei por que ela não dizia claramente que era contra o ensino do criacionismo nas escolas públicas e, se fosse eleita presidente, não defenderia uma mudança nesse sentido. “Eu não vou cair nessa armadilha”, ela disse. “O Serra, o Lula, o Collor, o Fernando Henrique, ninguém teve que falar isso. Vai ser a primeira vez na história desse país que alguém vai ter que falar isso. O ensino religioso é optativo, e está previsto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação. É preciso treinar professores para ensinar o que é o budismo, o cristianismo, todas as crenças. É isso o que eu quero dizer”, afirmou.
Ela sentiu câimbras na perna direita e disse que passariam se ela comesse banana. Em seguida, retomou seu raciocínio: “As pessoas que falam ou temem que eu faça alguma coisa antidemocrática não me conhecem. E se o meu defeito é esse, se o meu defeito é a minha crença, que fez eu ser o que sou, então, paciência.”
No carro, ela fazia anotações em uma pilha de papéis. Só escreve com lapiseira e costuma apagar as palavras e reescrevê-las muitas vezes. Em geral, usa letra de forma.
Chegando a São Paulo, chovia e a Marginal Tietê estava parada. Motoboys passavam ao lado do carro em alta velocidade. Falou-se que dois motoqueiros morrem por dia, vítimas do trânsito. “Meu Deus”, ela exclamou. “O mundo é cruel”, disse em um tom de consternação.
Perguntei se ela não achava que Deus seria cruel por permitir que tragédias assim acontecessem, como arriscava o escritor português José Saramago, em seu O Evangelho Segundo Jesus Cristo. Ela disse não conhecer a obra, mas afirmou que exercícios de literatura eram muito interessantes.
Depois de um tempo em silêncio, ela comentou: “Isso não é responsabilidade de Deus. Deus não é cruel e a maioria das pessoas também não. O que há é o livre-arbítrio.” Para ela, não se pode culpar Deus pelas tragédias ou pela miséria, pois elas são fruto, em alguma medida, do livre-arbítrio do ser humano.
“Estou muito pálida?”, perguntou Marina Silva, de bom humor, no caminho para um jantar organizado por Ana Paula Junqueira para um grupo da elite paulistana se interar das propostas da candidata. A senadora vestia uma elegante saia longa de shantung cinza e um casaco trespassado no mesmo tecido, comprados em uma loja na quadra em que mora, em Brasília.
Chovia muito e Marina fixava o olhar na janela. “Ô meu Deus, está chovendo e as pessoas na chuva…”, comentou, virando a cabeça, enquanto o carro deixava para trás a cena de mendigos que dormiam sob marquises no centro da cidade.
Quando ela entrou na casa, decorada de maneira sóbria em tons de creme e cinza, com paredes cobertas por obras de artistas de vanguarda, a sala estava lotada de homens engravatados que falavam baixo e mulheres com vestidos de parar a Uniban. Esperavam por ela herdeiros de sobrenomes como Diniz, Feffer, Nigri, Nabuco, mas também as ex-modelos Daniela Cicarelli e Alexia Deschamps, a apresentadora Márcia Goldschmidt, o publicitário Nizan Guanaes e o costureiro Reinaldo Lourenço.
A anfitriã, de microfone na mão, apresentou a convidada, disse que era sua fã havia anos e que aquela era uma oportunidade única para que todos a conhecessem. Sugeriu que se começassem as perguntas. Um rapaz quis saber o que Marina achava da visita do presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad ao Brasil.
“Obviamente as relações bilaterais são mais complexas do que podemos falar quando estamos de fora”, ela respondeu. Falou cinco minutos e terminou dizendo que o Brasil deveria refletir sobre “essas ampliações tão amplas” em suas relações.
Ana Paula Junqueira recuperou o microfone e incitou a segunda pergunta. Fez-se um silêncio. Os convivas olhavam para o lado, esperando o vizinho se manifestar, e não houve mais perguntas. Rapidamente, a anfitriã agradeceu e encerrou a conversa sob o olhar aturdido da senadora.
Nas rodinhas de convidados que tomavam Veuve Clicquot, o comentário era que faltava algo à candidata. “É séria, mas não empolga”, disse um. “Mas ela é tão chique, não é?”, respondeu sua acompanhante. “Mas deve defender esses bandidos do MST”, disse um terceiro.
Guilherme Leal circulava pelo salão com um lenço de papel para conter o suor. Ele dizia que Marina talvez tivesse que começar a esclarecer melhor algumas posições, como a política econômica. “Mas não tem que ficar espezinhando, entrando em detalhe de quem vai ser presidente do Banco Central, o que fazer com juros”, disse o dono da Natura. “A diferença dela é que falará do futuro. Então, se for falar de juros ou câmbio, o que pensamos é o mesmo consenso como se reuníssemos dez economistas hoje: dá para baixar um pouquinho, ajeitar aqui e ali, mas o resumo é que, do jeito que está, é mais ou menos isso aí.”
Cicarelli se aninhou ao lado da senadora e parecia interessada. “Marina, Copenhague vai ajudar na sua candidatura, né?”, perguntou. A resposta vinha devagar como se, decididamente, a senadora quisesse tergiversar. No resto da sala, os grupinhos de velhos amigos pareciam colocar o assunto em dia. A senadora foi convidada para ir ao jardim tirar uma foto. Ao descer um degrau, sentiu o nervo ciático. Foi embora à francesa.
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