Homenagem à revolucionária marxista num dos módulos do antigo Muro de Berlim: ela tornou-se ícone nos moldes de Che Guevara FOTO: VICTOR GRIGAS
De corpo ausente
Um cadáver enterrado e um torso anônimo sem cabeça, mãos ou pés encerram a busca pelos restos mortais de Rosa Luxemburg
Dorrit Harazim | Edição 42, Março 2010
Há noventa anos é assim. Acontece todo segundo domingo de janeiro. Neste dia, dezenas, centenas, milhares ou dezenas de milhares de peregrinos da história se põem em marcha rumo a um ponto do Cemitério Central Friedrichsfeld, na Zona Leste de Berlim. O número de romeiros varia de acordo com o regime em vigor. Eles vão depositar cravos, sempre cravos e só vermelhos, junto a um imenso monolito de granito negro onde se lê a inscrição: Die Toten Mahnen Uns (os mortos nos advertem).
O cemitério conhecido como Memorial dos Socialistas foi fundado em fins do século XIX e abriga, entre outros, os dois mortos mais célebres da luta de classes na Alemanha: Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht, assassinados na mesma noite de 15 de janeiro de 1919 por milicianos de direita. Ambos tornaram-se mártires. A estatura de Rosa como ícone político, porém, ultrapassou com folga a do seu camarada de revolução. Nove décadas após sua morte, Rosa Luxemburg continua sendo citada em pesquisas de opinião na Alemanha como uma das mulheres mais respeitadas da história. A devoção de gerações de jovens a essa figura que Lênin chamou de águia se aparenta ao culto a Che Guevara.
Durante os anos de regime nazista, a romaria esteve proibida e os tributos clandestinos se limitavam a um ou outro cravo depositado na neve. Já no regime comunista instalado na parte oriental da Alemanha após a Segunda Guerra Mundial, o memorial foi transformado em palanque ideológico, com a participação compulsória das massas. Assim, durante o período soviético da antiga República Democrática da Alemanha (RDA), a homenagem anual reunia uma maré humana. Eram dezenas de milhares os peregrinos oficiais.
Hoje, a marcha ao cemitério continua sendo um retrato de época. Na procissão do dia 10 de janeiro passado havia comunistas e militantes do partido Die Linke, atual denominação da esquerda alemã; nostálgicos do maoísmo, turcos com cartazes de Stálin, separatistas bascos e grupos de ativistas curdos; havia até americanos em defesa da libertação de Mumia Abu-Jamal – nascido Wesley Cook, o ativista dos Panteras Negras condenado à morte e preso há quase trinta anos nos Estados Unidos. Uma das frases mais célebres da militante histórica, que ela escreveu na aurora do governo bolchevique, podia ser vista por toda parte: “A liberdade é, sempre e fundamentalmente, a liberdade de quem discorda de nós”.
Mas houve uma novidade na manifestação de 2010. Ninguém mais acredita na possibilidade de algum dia ser possível garantir que Rosa Luxemburg, a cultuada teórica da revolução marxista, esteve, de fato, enterrada naquele cemitério. A dúvida durou noventa anos.
A ativista judia nascida na Polônia havia eletrizado o movimento operário alemão nos estertores da Primeira Guerra Mundial. Ao lado de Liebknecht, fundara o movimento Spartakusbund, de oposição à guerra, e criara o partido comunista em meio ao caos do império que acabara de ruir. Embora cética em relação à convocação de uma revolta contra a República de Weimar, pregada por Liebknecht, cerrou fileira e passou a constar como inimiga número 1 do governo. A insurreição de 1919 foi aniquilada em menos de uma semana. Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht foram capturados, torturados num hotel de Berlim e assassinados com tiros na cabeça dentro de um carro. O corpo de Liebknecht foi despachado como indigente para o necrotério. O da autora de A Acumulação do Capital foi jogado nas águas turvas do canal Landwehr, que atravessa o centro de Berlim.
É então que começa o mistério. Rosa Luxemburg era de baixa estatura e, devido a um problema de bacia, tinha uma perna mais curta. Algumas semanas após o assassinato de 15 de janeiro, um cadáver foi encontrado no canal e enterrado como sendo o da líder revolucionária. Só que no atestado de óbito consta uma observação intrigante, por rara: o corpo içado das águas tinha duas pernas do mesmo comprimento. A insólita referência seria uma mensagem cifrada de que aquele não era o corpo da mártir.
Dois meses depois, na madrugada de 1º de junho de 1919, policiais berlinenses retiraram outro corpo em decomposição de uma manilha do mesmo canal. Era um torso sem cabeça, mãos ou pés. Encaminhado ao departamento de anatomia do hospital universitário Charité, ele foi preservado em formol e cera e ficou exposto em vidro durante décadas para estudo dos alunos. Estaria ali até hoje não fosse o frisson provocado dois anos atrás pelo patologista Michael Tsokos, empossado pouco antes como novo diretor do departamento. A autópsia por ele ordenada revelou que a estrutura das pernas, a bacia e as dimensões do torso anônimo combinavam com o físico de Rosa Luxemburg.
Seguiram-se sete meses de frenética investigação científica. Amostras de uma costela, fígado, medula óssea e tíbia foram submetidas a exame de isótopos. Constataram-se variações na concentração de estrôncio e chumbo compatíveis com as condições ambientais existentes na cidade polonesa de Zamosc, onde Rosa nascera em 1871. Os índices de enxofre e nitrogênio no tecido ósseo não estavam em dissonância com os mais de três anos de prisão da militante durante a Primeira Guerra.
Mas nada poderia ser considerado conclusivo sem uma análise de material genético. A busca por uma parente distante na Polônia e uma mecha do cabelo de Rosa, supostamente guardada nos Estados Unidos por descendentes de um de seus amigos, revelaram-se pistas falsas. A prova verdadeira foi encontrada no deserto de Negev, em Israel, na figura de uma professora de engenharia da Universidade Ben Gurion. Irene Borde, de 79 anos, neta do irmão da líder socialista, enviou uma mecha de seu cabelo para análise na Alemanha.
Na última semana de dezembro de 2009, Michael Tsokos aposentou sua cruzada. “Há indícios de que o torso poderia ser o de Rosa Luxemburg, mas eles não são suficientes como prova conclusiva”, assegurou o Ministério Público de Berlim, acrescentando que o torso anônimo seria finalmente encaminhado para enterro em local não divulgado.
Para os devotos de Rosa – a – Vermelha, a luta continua. A busca pelos restos mortais está encerrada.
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