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Dochera
Mulher que espera um taxi na noite e enlouquece homens solitários sem consolo - sete letras
Edmundo Paz Soldán | Edição 42, Março 2010
Todas as tardes a filha de Inaco se chama Io, Aar é o principal rio da Suíça e Somerset Maugham escreveu Um Gosto e Seis Vinténs. O símbolo químico do ouro é Au, Ravel compôs o Bolero e há pontos e traços que significam letras. Insípido é insosso, as iniciais do assassino de Lincoln são JWB, as casas de campo dos líderes russos são dachas, Puskas é um grande craque húngaro, Veronica Lake é uma famosa femme fatale, o herói da batalha de Calama é Avaroa e a palavra-chave de Cidadão Kane é Rosebud. Todas as tardes Benjamín Laredo sonda dicionários, enciclopédias e trabalhos anteriores para criar as palavras cruzadas que no dia seguinte sairão no Heraldo de Piedras Blancas. É uma rotina que já dura 24 anos: depois do almoço, Laredo veste um apertado terno preto, camisa de seda branca, gravata-borboleta vermelha e sapatos de verniz que brilham como as ruas empoçadas depois de uma noite de chuva. Ele se perfuma, barbeia e penteia com brilhantina e em seguida se fecha em seu escritório com uma garrafa de vinho tinto e o concerto de violino de Mendelssohn na vitrola, para, com uma caixa de lápis Staedtler de ponta fina, cruzar palavras em linhas horizontais e verticais, junto a fotos em preto e branco de políticos, artistas e edifícios famosos. Uma frase serpenteia ao longo do quadrado. A de Oscar Wilde é a mais usada: Posso resistir a tudo, menos às tentações. Uma de Borges é a favorita do momento: Cometi o pior dos pecados: não fui feliz. Preclara beleza do que vai sendo criado ante nossos olhos que nunca se cansam de se surpreender! Maravilha da novidade na repetição! Pasmo diante do ato sempre igual e sempre novo!
Sentado na cadeira de nogueira que lhe causou uma dor crônica nas costas, roendo a madeira já desmanchada do lápis, Laredo se enfrenta ao retângulo de papel bonde com urgência, como se nele encontrasse, oculto em sua vasta claridade, a mensagem cifrada de seu destino. Por momentos as palavras resistem a se entrelaçar, e um acidente orográfico não quer combinar com o sinônimo de impertérrito. Laredo então beberica de seu vinho e corre os olhos pelas paredes. Todos os que podem ajudá-lo estão aí, em fotos de papel sépia que parecem gastas de tanto serem observadas, uma moldura de prata polida ao lado da outra, cobrindo os quatro cantos e mal deixando espaço para mais uma: Wilhelm Kundt, o alemão de nariz quebrado (as pessoas que fazem palavras cruzadas são muito exaltadas), fugitivo nazista que em menos de dois anos em Piedras Blancas inventara para si um passado de célebre cruciverbalista graças a seu exuberante domínio do castelhano – diziam que era tão esquelético porque só devorava páginas de dicionários etimológicos no café da manhã, almoçava sinônimos e antônimos, jantava galicismos e neologismos –; ou Federico Carrasco, de espantosa semelhança com Fred Astaire, que caíra na loucura de se julgar Joyce e tentar fazer de suas palavras cruzadas versões reduzidas do Finnegans Wake; ou Luisa Laredo, sua mãe alcoólatra, que tivera de usar o pseudônimo de Benjamín Laredo para que suas palavras cruzadas pródigas em desprezada fauna e flora e esquecidas atrizes pudessem obter aceitação e prestígio em Piedras Blancas; sua mãe, que o criara sozinha (ao saber que ela estava grávida, o pai de 16 anos fugira de trem para nunca mais), e que, ao descobrir que aos 5 anos ele já sabia que cabo era pegadouro e bar, locanda, o proibira de resolver as palavras cruzadas por medo de que seguisse seu caminho. Ser pobre cansa. Você vai ser engenheiro. Mas a mãe o deixara quando ele tinha 10 anos, não podendo resistir a um feroz delirium tremens em que as palavras ganharam vida e a perseguiram como cães à presa.
Todos os dias Laredo olha para as palavras cruzadas em estado de crisálida e depois para as fotos nas paredes. Quem ele invocaria hoje? Precisava da precisão de Kundt? Pedra em forma de cunha empregada na construção de arcos ou abóbadas, seis letras. A informação entre arcana e esotérica de Carrasco? Cinegrafista de John Ford em Domínio de Bárbaros, oito letras. O empenho da mãe em dar lugar ao que era posto de lado? Preceptora de Isabel, a Católica, autora de comentários à obra de Aristóteles, sete letras. Alguém sempre conduz sua mão manchada de grafite para o dicionário e a enciclopédia certos (seus preferidos, o de María Moliner, com suas margens rabiscadas, e a Enciclopédia Britânica, desatualizada mas capaz de informá-lo sobre árvores caducifólias e jogos de cartas da Alta Idade Média), e então se dá a alquimia verbal, e aquelas palavras que jazem juntas de modo incongruente – ditador cubano dos anos 50, planta dicotiledônea da América Central, divindade dos índios Mohawks – de repente adquirem sentido e parecem nascidas para estarem uma ao lado da outra.
Em seguida Laredo percorre a pé as sete quadras que separam sua casa do rústico edifício do Heraldo e entrega as palavras cruzadas à secretária de redação, num envelope lacrado que só pode ser aberto minutos antes de entrar na página A14. A secretária, uma quarentona de camisas floridas e óculos de lentes pretas e imensas como tarântulas adormecidas, sempre que pode lhe diz que suas obras “são preciosidades para guardar no porta-joias das lembranças”, que ela faz um macarrão com frango “de lamber os beiços” e que não lhe viria mal “um parêntese em seu admirável trabalho”. Laredo balbucia umas desculpas e crava os olhos no chão. Desde que sua primeira e única namorada o trocara aos 18 anos por um premiadíssimo poeta maldito – ou, como ele preferia chamá-lo, um maldito poeta –, Laredo passara a vida cravando os olhos no chão sempre que havia uma mulher por perto. Sua timidez natural se acentuou, e ele se retraiu numa vida solitária, dedicada a seus estudos de arqueologia (abandonados no 3º ano) e ao labirinto intelectual das palavras cruzadas. Na última década teve várias oportunidades para tirar proveito de sua fama, mas não o fez porque, acima de tudo, ele era um homem muito ético.
Antes de deixar o jornal, Laredo passa pela sala do editor, que lhe entrega o cheque em meio a calorosos tapas nas costas. É sua única exigência: que as palavras cruzadas sejam pagas no mesmo dia, exceto as dos sábados e domingos, cobradas na segunda-feira. Laredo examina o cheque contra a luz e se espanta com a quantia, apesar de sabê-la de cor. A mãe ficaria muito orgulhosa se soubesse que ele consegue viver de sua arte. Você devia ter confiado mais em mim, mãe. Laredo volta para casa com passo lento, ruminando possíveis definições para o dia seguinte. Pássaro extinto, um dos primeiros reis da Babilônia, país atacado por Pedro Camacho em Tia Julia e o Escrevinhador, isótopo radiativo de um elemento natural, civilização contemporânea da nazca na costa setentrional do Peru, ária de Verdi, nono mês do ano lunar muçulmano, tumor produzido pela inflamação dos vasos linfáticos, instrumento sem corte, rebelde sem causa.
Nesse entardecer, Benjamín Laredo estava voltando para casa mais alegre que de costume. Tudo lhe parecia radiante, até o mendigo sentado na calçada, com sua deslocada cintura óssea na parte inferior do corpo humano (cinco letras), e o adolescente que apareceu de improviso numa esquina, esbarrou nele ao passar e tinha uma grotesca protuberância da cartilagem tireóidea na porção anterior do pescoço (dez letras). Talvez fosse efeito do vinho italiano que bebera naquele dia para comemorar o fim de uma semana especial pela qualidade de suas quatro últimas palavras cruzadas. A de quarta-feira, cujo tema fora o cinema noir – com a foto de Fritz Lang no canto superior esquerdo e, do lado direito, a do autor de Pacto de Sangue –, motivara numerosas cartas dos leitores. Prezado senhor Laredo: escrevo-lhe estas linhas para dizer que o admiro muito e que estou pensando em abandonar meus estudos de engenharia industrial para seguir seus passos. Caríssimo: Espero que Você Continue a Publicar as Palavras Cruzadas Temáticas. Que Tal Uma que Tenha como Tema as Diversas Formas de Tortura Inventadas pelos Militares Sul-Americanos no Século XX? Laredo acariciava as cartas no bolso direito e as citava de cabeça, como se as lesse em Braile. Já estaria à altura de Kundt? Teria adquirido a imortalidade de Carrasco? Estava conseguindo superar a mãe para assim resgatar seu nome? Quase. Faltava pouco. Muito pouco. Devia existir um prêmio Nobel para artistas como ele: fazer palavras cruzadas não era menos complexo e transcendental que escrever poemas. Com a delicadeza e a precisão de um soneto, as palavras se entrelaçavam de cima para baixo e da esquerda para a direita até formarem um todo harmonioso e elegante. Não podia se queixar: sua popularidade em Piedras Blancas era tão grande que o município estava pensando em batizar uma rua com seu nome. Ninguém mais lia os poetas malditos, muito menos os malditos poetas, mas praticamente todos na cidade, desde anciãos beneméritos até gráceis lolitas – obsessão de Humbert Humbert, personagem de Nabokov, Sue Lyon na grande tela –, dedicavam pelo menos uma hora do dia a tentar resolver suas palavras cruzadas. Mais valia o reconhecimento popular numa arte menosprezada que uma infinidade de prêmios num campo apreciado apenas por um punhado de estetas pretensiosos, incapazes de reconhecer o ar dos tempos.
Na esquina, a uma quadra de sua casa, uma mulher de casaco preto esperava um táxi (pele usada na confecção de casacos, cinco letras). As luzes da rua se acenderam, seu fulgor alaranjado substituindo palidamente a perdida luz do entardecer. Laredo passou a seu lado; ela virou o rosto e olhou para ele. Era jovem, de idade indefinida: podia ter 17 ou 35 anos. Uma mecha de cabelo branco caía sobre sua testa cobrindo-lhe o olho direito. Laredo seguiu em frente. Estacou. Esse rosto.
Um táxi se aproximava. Deu meia-volta e lhe disse:
– Desculpe. Não é minha intenção incomodá-la, mas.
– Mas vai me incomodar.
– Só queria saber seu nome. É que me lembra uma pessoa.
– Dochera.
– Dochera?
– Com licença. Boa noite.
O táxi parou. Ela entrou sem lhe dar tempo de continuar o diálogo. Laredo esperou o desconjuntado Ford Falcon desaparecer antes de retomar seu caminho. Esse rosto. quem esse rosto lhe lembrava?
Ficou acordado até de madrugada, rolando na cama com o abajur aceso, revirando sua prolixa memória à cata da imagem que de algum modo correspondesse com o nariz aquilino, a tez morena e o queixo proeminente, a expressão entre receosa e assustada. Um rosto entrevisto na infância, numa sala de espera de hospital, enquanto, de mãos dadas com o avô, esperava a informação de que sua mãe tinha acordado do coma alcoólico? Ou na porta do cinema de bairro, na hora da entrada triunfal das garotas de minissaias esfuziantes, de mãos dadas com os namorados? Aparecia a imagem de seios inverossímeis de Jayne Mansfield, que ele recortara de um jornal e colara numa página de seu caderno de matemática, quando de sua primeira tentativa de fazer umas palavras cruzadas, no dia seguinte ao enterro da mãe. Apareciam loiras e de cabelo preto cheirando a maçã, morenas lindas graças à exuberância da natureza ou aos malabarismos da maquiagem, secretárias de rosto vulgar e com o encanto ou a insatisfação do ordinário, mulheres da realeza e desconhecidas com que ele cruzara na rua, a pele há vários dias não tocada pela água.
A luz já penetrava, tímida, pelas frestas da persiana quando lhe apareceu a mulher madura com uma mecha branca sobre a cabeça. A dona do El Palacio de las Princesas Dormidas, a revistaria da vizinhança em que Laredo, na adolescência, comprava as Siete Días e Life, de onde recortava as fotos de celebridades para suas palavras cruzadas. A mulher que se aproximara dele com uma mão cheia de anéis de prata ao vê-lo esconder maldisfarçadamente, num canto do recinto cheirando a jornais úmidos, uma Life sob a jaqueta de couro marrom.
– Como você se chama?
Ela o pegaria e denunciaria à polícia. Um escândalo. Na cama, Laredo revivia a vertigem daqueles instantes esquecidos por tantos anos. Precisava fugir.
– Já te vi muitas vezes por aqui. Você gosta de ler?
– Eu gosto de fazer palavras cruzadas.
Era a primeira vez que ele dizia aquilo com tanta convicção. Não devia ter medo de nada. A mulher despregou os lábios num sorriso cúmplice, suas bochechas se amarrotaram como papel.
– Já sei quem é você. Benjamín. Como tua mãe, que Deus a tenha. Espero que você também não goste de fazer outras besteiras, como ela.
A mulher lhe deu um beliscão carinhoso na bochecha direita. Benjamín sentiu o suor escorrendo pela testa. Apertou a revista contra o peito.
– Agora vai embora, antes que o meu marido apareça.
Laredo saiu correndo, o coração em disparada como agora, repetindo que nada lhe agradava mais do que fazer palavras cruzadas. Nada. Depois disso nunca mais voltara a El Palacio de las Princesas Dormidas,refreado por um misto de vergonha e orgulho. Chegara até a desviar seu caminho para evitar aquela esquina e não encontrar com a mulher. O que seria dela? Devia ser uma velha atrás do balcão da revistaria. Ou quem sabe estaria cortejando os vermes no cemitério municipal. Laredo repetiu, seu corpo fragmentado em linhas paralelas pela luz do dia: nada me mais do que. Nada. Devia virar a página, devolver a mulher ao esquecimento em que a mantivera prisioneira. Ela não tinha nada a ver com seu presente. Sua única semelhança com Dochera era a mecha branca. Dochera, sussurrou, os olhos acariciando as paredes nuas do quarto. Do-che-ra.
Era um nome estranho. Onde poderia reencontrá-la? Se ela apanhara o táxi tão perto dali, talvez morasse a um passo da casa dele: estremeceu ao pensar nessa hipotética proximidade, roeu as unhas já mais do que roídas. O mais provável, porém, era que ela estivesse voltando para casa depois de visitar uma amiga. Ou algum parente. Um amante?
No dia seguinte, incluiu esta definição nas palavras cruzadas: Mulher que espera um táxi na noite e enlouquece os homens solitários e sem consolo. Sete letras, segunda coluna vertical. Acabava de transgredir seus princípios de jogo limpo e sua responsabilidade para com seus seguidores. Se as mentiras que enchiam as páginas dos jornais, as declarações dos políticos e dos funcionários do governo invadiam o sagrado reduto das palavras cruzadas, estáveis em sua oferta de verdades fáceis de comprovar com uma boa enciclopédia, que alternativa restava ao cidadão comum para se salvar da corrupção generalizada? Laredo deixou esses dilemas morais em suspenso. A única coisa que lhe interessava era enviar uma mensagem para a mulher da noite anterior, fazê-la ciente de que estava pensando nela. A cidade era muito pequena, ela sem dúvida o reconhecera. Imaginou que, no dia seguinte, a mulher faria as palavras cruzadas no escritório onde trabalhava e toparia com essa mensagem de amor que a faria sorrir. Dochera, escreveria com lentidão, saboreando o momento, e em seguida telefonaria para o jornal avisando que tinha recebido a mensagem, que podiam tomar um café qualquer dia.
Esse telefonema nunca aconteceu. Em compensação, receberam o de muita gente que não conseguira resolver as palavras cruzadas e pedia ajuda ou reclamava de sua dificuldade. Quando, um dia depois, foi publicada a solução, as pessoas se entreolharam incrédulas. Dochera? Alguém já ouvira falar nessa Dochera? Ninguém ousou indagar ou questionar Laredo: o que ele dizia estava dito. Não à toa seu apelido era “O Fazedor”. O Fazedor sabia coisas que os outros ignoravam.
Laredo voltou a tentar com: Perturbadora e epifânica aparição noturna que transformou um solitário coração numa selvagem e contraditória soma de esperanças e desassossegos. E: À noite, todos os táxis são pardos e levam a mulher de mecha branca, e com ela meu principal órgão circulatório. E: A uma quadra de Soledad, no fim da tarde, houve o despertar de um mundo. As palavras cruzadas mantinham sua qualidade habitual, mas agora todas traziam encravada, como uma cicatriz que não se fecha, uma definição que remetia ao talismânico nome de sete letras. Devia parar. Não podia. Houve algumas críticas; não lhe interessava (autor de El Criticón, sete letras). Seus seguidores foram se acostumando e começaram a ver o lado bom da coisa: pelo menos podiam começar a resolver as palavras cruzadas com a certeza de ter uma resposta correta. Além disso, os gênios não eram extravagantes? A única diferença era que Laredo tinha levado 25 anos para manifestar seu lado excêntrico. Mas ao Beethoven de Piedras Blancas bem se podiam permitir gestos que fugiam do normal.
Houve 57 palavras cruzadas sem resposta. A mulher tinha virado fumaça? Ou era Laredo que errara o método? Devia rondar aquela esquina todas as noites até reencontrá-la? Chegou a tentá-lo por três vezes, a brilhantina Lord Cheseline refulgindo em seus cabelos como se fosse um anjo numa malograda encarnação mortal. Sentiu-se ridículo e vulgar assediando-a como um assaltante. Também visitou, sem sucesso, as empresas de táxis da cidade, tentando encontrar os motoristas de plantão naquela noite (as empresas não arquivavam as planilhas, falaria com o diretor do jornal, alguém devia escrever um editorial a respeito). Publicar um anúncio de página inteira no Heraldo, descrevendo Dochera e oferecendo dinheiro a quem pudesse dar alguma informação sobre seu paradeiro? Poucas mulheres deviam ter uma mecha de cabelo branco e um nome tão singular. Não faria isso. Não havia publicidade maior que suas palavras cruzadas: agora toda a cidade, até quem não fazia palavras cruzadas, sabia que Laredo estava apaixonado por uma mulher chamada Dochera. Para um tímido crônico, Laredo já fizera muito (quando as pessoas lhe perguntavam quem era ela, ele baixava os olhos e murmurava que tinha visto num sebo uma inestimável e já esgotada enciclopédia dos Hititas).
E se a mulher tivesse dado um nome falso? Essa era a possibilidade mais cruel.
Um dia teve a ideia de visitar o bairro de sua adolescência, na zona noroeste da cidade, profusa em chorões. O entrecruzamento de estilos criava uma área de temporalidades desencontradas. Os casarões com pátios internos coexistiam com residências modernas, a vendinha do Coronel, com sua vitrine de antiquados frascos de farmácia para os doces e as gomas de mascar aromatizadas (nove letras), estava pegada a um salão de beleza que oferecia manicure para ambos os sexos. Laredo chegou à esquina onde ficava a revistaria. O antigo letreiro de elegantes letras góticas, pendurado sobre uma porta de metal, fora substituído por um vulgar anúncio de cerveja, sob o qual se lia, em letras pequenas, Restaurante El Palacio de las Princesas. Laredo espiou por baixo da porta. Um homem descalço e de pijama azul estava passando um pano no piso de mosaicos com arabescos. O lugar cheirava a desinfetante de limão.
– Bom dia – o homem parou de passar o pano. – Desculpe. aqui antigamente funcionava uma revistaria.
– Eu não sei de nada. Sou apenas um empregado.
– A dona tinha uma mecha de cabelo branco.
O homem coçou a cabeça.
– Se for quem estou pensando, morreu faz tempo. Era a primeira dona do restaurante. Foi atropelada por um caminhão de cerveja, no dia da inauguração.
– Sinto muito.
– Eu não tenho nada a ver. Sou apenas um empregado.
– Alguém da família assumiu o negócio?
– Um sobrinho. Ela era viúva e não tinha filhos. Mas pouco depois o sobrinho vendeu tudo para uns argentinos.
– Para quem não sabe de nada, o senhor sabe muito.
– Como?
– Nada. Bom dia.
– Espere. O senhor não é.?
Laredo se afastou a passo acelerado.
À tarde, enquanto preparava a quinquagésima oitava versão de palavras cruzadas da nova fase, ele teve uma ideia. Estava em seu escritório, com o terno preto que parecia feito por um alfaiate cego (os lados desiguais, um corte diagonal nas mangas), a gravata-borboleta vermelha e uma camisa branca manchada com o vinho tinto que tinha nas mãos – Merlot, Les Jamelles. Havia 37 livros de referência empilhados no chão e na mesa de trabalho; os violinos de Mendelssohn acariciavam suas lombadas e capas surradas. Fazia tanto frio que até Kundt, Carrasco e sua própria mãe pareciam tiritar nas paredes. Com um Staedtler na boca, Laredo pensou que a prova de seu amor tinha sido repetitiva e insuficiente. Talvez Dochera quisesse mais. Qualquer um podia fazer o que ele fizera até agora; para se destacar do resto, devia superar a si mesmo. Utilizando como pedra angular a palavra Dochera, devia criar um mundo. Afluente do Ganges, cinco letras: Mares. Autor de Todo Verdor Perecerá, oito letras: Manterza. Capital dos Estados Unidos, cinco letras: Deleu. Romeu e... seis letras: Senera. Encaminhar-se, três letras: lei. Encaixou as cinco definições nas palavras cruzadas que estava preparando. Devia fazê-lo sem pressa, com muito cuidado.
Adolescentes nos colégios, escriturários nas repartições e velhos nas praças se olharam com espanto: seria um erro tipográfico? No dia seguinte, descobriram que não. Laredo tinha passado dos limites, pensaram alguns, roendo-se de raiva por ter nas mãos umas palavras cruzadas impossíveis de resolver. Outros aplaudiram as mudanças: isso tornava tudo mais interessante. Só o difícil era estimulante (duas palavras, dez letras). Depois de tantos anos, era hora de Laredo se renovar: todos já sabiam de cor seu repertório, seus truques de velho malabarista verbal. O Heraldo chegou a publicar, além das palavras cruzadas de Laredo, umas normais para os descontentes. Foram retiradas dali a onze dias.
A fúria nominalista do Beethoven de Piedras Blancas foi crescendo com o passar dos dias sem notícias de Dochera. Noite após noite, sentado em sua cadeira de nogueira, foi destruindo as costas e construindo um mundo, sobrepondo-o ao já existente, no qual haviam colaborado todas as civilizações e os séculos que confluíam, desde a origem dos tempos, em um desordenado escritório em Piedras Blancas. Preclara beleza do que vai sendo criado ante nossos olhos que nunca se cansam de se surpreender! Maravilha da novidade na novidade! Pasmo diante do ato sempre novo e sempre novo! Via-se dançando ao som de violinos no Céu dos Fazedores – onde os Cruciverbalistas ocupavam a cobertura, com vista privilegiada para o Jardim do Éden, e os Poetas o andar mais baixo –, de mãos dadas com a mãe, enquanto Kundt e Carrasco o olhavam de baixo para cima. Via-se largando a mão da mãe, transformando-se numa figura etérea que se elevava para uma ofuscante fonte de luz.
O trabalho de Laredo foi ganhando detalhamento e precisão, enquanto seu estoque de papel bonde e Staedtlers acabava mais rápido que de costume. A capital da Venezuela, por exemplo, primeiro fora batizada de Senzal. Depois, o país de que Senzal era capital foi batizado de Zardo. A capital de Zardo agora era Senzal. Os heróis que lutaram nas batalhas da independência foram rebatizados, assim como a orografia e a hidrografia dos cinco continentes, e os nomes de presidentes, enxadristas, atores, cantores, insetos, pinturas, intelectuais, filósofos, mamíferos, planetas e constelações. Topo era ruda, fosso era redo. Piedras Blancas era Delora. O autor de O Mercador de Veneza era Eprinip Eldat. Famoso criador de palavras cruzadas era Bichse. Espécie de colete ajustado ao corpo era frantzen. Objeto de pano que se leva sobre o peito como sinal de piedade era vardelt. Era uma tarefa infinita, e Laredo desfrutava do desafio. A delicada pena de uma ave sustentava um universo.
No entardecer 203, Laredo ia voltando para casa depois de entregar suas palavras cruzadas. Assobiava a Cavalleria Rusticana, desafinando. Deu alguns pesos ao mendigo de doluth deslocada. Sorriu para uma velha puxada por um pequinês caolho (pequinês? zendala!). As luzes de sódio da rua piscavam como gigantescos vaga-lumes (erewhons!). Um cheiro de hortelã saía de um jardim em que um homem calvo e de expressão melancólica regava as plantas. Dentro de alguns anos, ninguém se lembrará dos verdadeiros nomes dessas primaveras e gerânios, pensou Laredo.
Na esquina a cinco quadras de sua casa, uma mulher de casaco preto esperava um táxi. Laredo passou a seu lado; ela virou o rosto e olhou para ele. Era jovem, de idade indefinida. Uma mecha de cabelo branco caía sobre sua testa cobrindo-lhe o olho esquerdo. O nariz aquilino, a tez morena e o queixo proeminente, a expressão entre receosa e assustada.
Laredo estacou. Esse rosto.
Um táxi se aproximava. Deu meia-volta e disse:
– Você é Dochera.
– E você é Benjamín Laredo.
O Ford Falcon parou. A mulher abriu a porta de trás e, com uma mão cheia de anéis de prata, fez um gesto convidando-o para entrar.
Laredo fechou os olhos. Viu-se roubando exemplares da Life no Palacio de las Princesas Dormidas. Viu-se recortando fotos de Jayne Mansfield e cruzando definições horizontais e verticais para escrever Posso resistir a tudo, menos às tentações. Viu a mulher de casaco preto esperando um táxi naquele remoto entardecer. Viu-se sentado em sua cadeira de nogueira decidindo que o afluente do Ganges era uma palavra de cinco letras. Viu o fantasmagórico curso de sua vida: uma pura, assombrosa, translúcida linha reta.
Dochera? Esse nome também devia ser trocado. Mukhtir!
Deu meia-volta. Retomou seu caminho, primeiro com passo lento, depois aos saltos, reprimindo o desejo de virar a cabeça, até terminar correndo as duas quadras que faltavam para chegar ao escritório onde, nas paredes cobertas de fotos, um espaço esperava por ele.
Tradução Sergio Molina
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