Sandoval é conhecido por ser um grande esnobe. Além disso, é invisível, mas dizem que ele só está querendo aparecer. ILUSTRAÇÃO: RETRATO DE ANDERSON COOPER_MATT GARRETT
5 figuras (e 1 coletivo)
Uma gosta muito de cinema, outro de passear no shopping, um terceiro é esnobe, os trabalhadores noturnos se sentem discriminados e Simonete detesta os distraídos que furam fila
Nuno Manna | Edição 44, Maio 2010
DONA GEROMINHA
Os bilheteiros do cinema a conhecem. Dona Gerominha, de 82 anos, é freguesa. Todas as terças-feiras, depois da aula de cuíca, dona Gerominha vai à matinê no Cineplex perto da sua casa. Ela se apronta toda. Batom, brinco, perfume e um bolerinho para não ficar com frio no ar-condicionado. É uma verdadeira cinéfila, apaixonada por filmes e pela experiência de assisti-los dentro da sala escura. Não está preocupada com informações periféricas, como quem concorreu ao Framboesa de Ouro ou qual a diferença entre Gene Hackman e Hugh Jackman. Ela não sabe que Batman & Robin é o pior filme da história, e até achou o bat-mamilo na armadura um detalhe gracioso. Dona Gerominha é tão entusiasta que nem mesmo perde tempo escolhendo os filmes. Compra sempre, por costume, um ingresso para o filme que estiver na sala 6, ainda que seja o mesmo filme da semana anterior. Por causa disso, fica íntima de grandes pérolas. Matrix Reloaded, viu quinze vezes seguidas. Crepúsculo, dezessete. O som muito alto incomoda dona Gerominha um pouco, mas ela sempre leva dois algodõezinhos para proteger os ouvidos. Não acha que perde nada com isso, até porque os filmes são legendados mesmo. Uma coisa que não abre mão é do combo com pipoca grande e refrigerante de 700 mililitros. E nunca se permite ir ao banheiro durante um filme. Passou por uma temporada de grandes apertos nas treze sessões em que assistiu a O Senhor dos Anéis: o Retorno do Rei. Mas não adianta. O médico de dona Gerominha já cansou de lhe alertar sobre os riscos que o cinema oferece para a sua bexiga.
WASHITON
Washiton não consegue conter a felicidade. Se entrega eufórico ao convite das portas automáticas e se lança com entusiasmo nos corredores do shopping. Não tem a intenção de comprar nada. Só corre, de braços abertos e sorriso escancarado, costurando veloz aqueles longos e lustrosos caminhos, uma estrada de tijolos amarelos que não leva a canto nenhum em particular. Com os olhos semicerrados, Washiton vê uma sequência de flashes de coisas maravilhosas. Televisões enormes, vestidos curtos, papeizinhos perfumados que ele agarra de vez em quando, pantufas – pantufas! –, bonecos do Buzz Light-year, aqueles travesseiros da Nasa de viscoelástico que se amoldam ao contorno da cabeça e da cervical, e se mantêm na posição enquanto dormimos! Tudo passando num continuum, como um carrossel de cavalinhos ligeiros visto de fora. A bossa nova genérica em volume moderado assobiando em seus ouvidos e o ventinho soprado intermitentemente das frestas no teto tornam aquele momento ainda mais agradável. Ao longe, Washiton avista algo parado no meio do corredor. Ele arregala os olhos e percebe que um coelho branco de uns 2 metros de altura está a sua espera, dançando e acenando para ele. Seu coração se inunda de um novo e arrebatador sentimento de bem-aventurança. Ele fecha os olhos, abre ainda mais os braços e acelera a corrida em direção ao coelhão. No trajeto deixa escapar uma mistura de grito e riso, tamanha a emoção. Ele então salta e mergulha no coelho. Abraçado com força àquela coisa grande e fofa, uma lágrima brota no canto do olho.
SIMONETE
Só existe uma coisa que irritava Simonete mais que crianças-prodígio e bombinhas traque que não estouram: pessoas aéreas que furam a fila sem se dar conta. Até entendia os que entram na frente de propósito. É só mau-caratismo mesmo, que ela resolvia rapidamente com um escândalo estridente e instrutivo. Mas diante dos distraídos ela tinha tanta dificuldade que ficava atônita. Simplesmente não sabia lidar com tamanha falha humana. Certa vez, um homem ocupou ingenuamente a sua frente na fila do self-service. Quando a viu atrás dele, segurando o prato, perguntou com um sorriso sincero e gentil se ela queria o último pastelzinho de milho. Simonete deixou o prato cair e saiu correndo aos prantos. Ocorre que, recentemente, ela foi comprar um ingresso para o show do Katinguelê e, quando entrou na fila, sentiu alguém cutucar o seu ombro. “Com licença, cheguei aqui antes de você”, disse Sandoval, um rapaz muito esnobe e que, além disso, é invisível. Simonete ficou profundamente envergonhada. Decidiu reavaliar o seu comportamento e passou a ser mais compreensiva com as pessoas. Chegou mesmo a transferir sua cólera das crianças-prodígio para as mães que as colocam em cursos particulares ou as inscrevem no Raul Gil. Mas tolerância tem limites, e Simonete achou melhor não comprar traques por um tempo.
SANDOVAL
É conhecido por ser um grande esnobe. Além disso, é invisível, mas dizem que ele só está querendo aparecer.
NEVILSON
Ao contrário do que todos lhe diziam, Nevilson não se considerava um saudosista. Argumentava que apenas cultivava os bons costumes por um pouco mais de tempo, mesmo que eles já tivessem sido descartados pelo resto do mundo. Ainda achava mais prático viajar de ônibus do que avião (não tinha paciência para check-ins e achava confusas as instruções sobre como usar os assentos de flutuação em caso de pousos na água). Apreciava a culinária tradicional (rica em gordura trans) e preferia beber água como a de antigamente (não flavorizada). Ainda usava chinelos de tira única; passou em branco pela moda dos chinelos de dedo e tampouco considerava comprar uma sandália Croc. No celular tinha um ringtone monofônico, com a última música lançada por Michael Jackson em 2009 (toque que ele se orgulhava de ter gravado ele mesmo no programa compositor do aparelho). Ainda não tinha assistido Avatar (nem mesmo sabia que os óculos para 3D não eram mais feitos com celofane colorido). Continuava achando que álcool combustível de cana-de-açúcar era a saída. Ainda sentia forte o pesar das perdas de grandes vultos como Antônio Carlos Magalhães, Enéas Carneiro e Anna Nicole Smith. Denilson, irmão de Nevilson, que nem era um cara de ideias muito avançadas, vivia dizendo que ele devia rever sua mentalidade tão ultrapassada para 2030. Entre suas várias investidas, tentou aplicar no irmão o novo som de Michael Jackson (sucesso depois do triunfal retorno de Michael do longo retiro no Oriente Médio). Nevilson não se adaptou.
SVPFASMTMAPET
Apesar de aceitarem apenas pessoas que trabalham no período noturno, o Sindicato dos Vigias, Porteiros, Fiscais, Atalaias e Similares da Mesorregião do Triângulo Mineiro e Alto Paranaíba Exceto Tupaciguara insiste em não incluir a palavra “noturnos” no seu nome. É uma atitude política. Estão cansados de ser desprezados por aqueles que trabalham de dia e dormem tão orgulhosa e tranquilamente à noite – justamente aqueles que velam com tanto cuidado e discrição. Não querem ser percebidos como cidadãos de segunda classe em relação aos que tiveram o privilégio (e a sorte) de conseguir uma vaga diurna. Insistir no “noturnos” como categoria seria reforçar uma diferença que consideram segregante. Por isso eles lutam pela indistinção, principal causa que os mantêm organizados – além de pautas pontuais, como a campanha pela ampliação de serviços delivery 24 horas e do Sarau SVPFASMTMAPET de Poesia Soturna, que promovem quinzenalmente. As iniciativas do sindicato têm tido bons resultados na região, com exceção da crescente antipatia do Sindicato dos Guardas, Vigias, Porteiros, Fiscais, Atalaias e Similares que Trabalham das 16:30 às 21:17 com Intervalo de Quinze Minutos, que acusa os noturnos de majoritarismo.
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