Os presidentes entram no Palácio da Alvorada pela rampa dourada e, ao sair, até apartamento na avenue Foch, em Paris, parece apertado demais FOTO: NILTON SUENAGA
Profissão: ex-presidente
Aproxima-se a data em que o presidente Lula começará a medir a sua estatura fora do poder. Encontrará concorrência
Dorrit Harazim | Edição 46, Julho 2010
O inóspito Sudão do ditador-presidente Omar al-Bashir não parece ser o lugar mais apropriado para um aposentado americano de 85 anos bater perna. Sobretudo para quem entregou as chaves do último emprego com carteira assinada há quase trinta anos e poderia gozar de pouso tranquilo entre os 609 habitantes de sua cidade natal de Plains, no estado da Geórgia.
Mas Jimmy Carter não é um idoso qualquer. Eleito 39º presidente dos Estados Unidos em 1976, assumiu a Casa Branca com 52 anos de idade e uma visão da História à frente de seu tempo. Ao tentar um segundo mandato, acabou enxotado do poder de forma acachapante e inequívoca – levou uma surra de votos em 44 dos cinquenta estados americanos.
Estava com apenas 57 anos. Formado engenheiro, profissão que exercera, tinha sido também fazendeiro antes de se tornar governador, mas decidiu não retomar nenhum de seus ofícios anteriores. Com tenacidade quase insana, transformou em profissão a condição de ex-presidente e conseguiu fazer, fora do poder, o que pretendeu realizar como chefe de Estado. Ao longo dessa reinvenção de si mesmo, ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 2002 e a admiração ilimitada da confraria mundial dos aposentados do poder.
Só que o modelo Jimmy Carter de ser ex-presidente não é para qualquer um. Exige dedicação integral, modéstia, capacidade intelectual e persistência, infinita persistência. É esse buquê de atributos que explica a sua presença num país africano que está em guerra civil há 46 anos e carrega a chaga do maior crime humanitário do século XXI – a matança étnica de talvez meio milhão de civis em Darfur. Ninguém mais se espanta ao ver esse senhor de pele clara, quase translúcida, cabeleira já toda branca e rosto marcado por uma simpática profusão de dentes, estar presente nos cantos mais improváveis do planeta.
Era o primeiro pleito no Sudão em 24 anos, e certamente o mais complexo de ser monitorado. Apesar de envolto em suspeitas, o resultado recebeu a chancela dos observadores comandados por Jimmy Carter, um homem que aprendeu a conviver com o imperfeito, ao invés de perseguir o inatingível. Ele e sua equipe de observadores já monitoraram outras 75 eleições mundo afora – sempre em países raramente frequentados por quem pode evitá-los. O Carter Center, organização concebida por ele próprio na cidade de Atlanta, colado à sua biblioteca presidencial, tem o perfil de seu fundador: é a primeira do gênero. Com dotação inicial de 190 milhões de dólares, possui pessoal e meios capazes de atuar em diversas frentes, como mediar conflitos ou implementar programas de erradicação de doenças. “Todos os presidentes americanos têm um monumento – uma biblioteca contendo seus papéis – mas o Carter tem uma máquina”, diz o admirador Fernando Henrique Cardoso, ex há oito anos. “Carter mostrou quem é depois de deixar a Presidência.”
Bill Clinton, o 42º ocupante da Casa Branca, por sua vez, já tinha mostrado quem era na própria Presidência. A novidade foi descobrir o quanto valia ao sair do poder, aos 54 anos de idade. Pôs lustre e purpurina na profissão de ex-presidente, consequência natural de seus atributos pessoais. Quem, senão ele, seria capaz de arrebanhar 40 milhões de dólares em honorários de palestras, entre 2001 e 2007? No ano de 2006, por exemplo, foram 352 – quase uma palestra por dia. Num sábado de agosto do ano passado, ele quase conseguiu estar em dois lugares ao mesmo tempo. Pouco depois de ser visto entre os 1 500 convidados que faziam genuflexão na missa fúnebre do senador Ted Kennedy, em Boston, ele já havia escapulido para o vizinho Canadá, e falava perante 7 mil pessoas sobre “Abraçar Nossa Humanidade Comum.”
Ninguém, até hoje, suplanta sua maior façanha oratório-financeira. Numa terça-feira de outubro, cinco anos atrás, proferiu uma conferência motivacional para 8 mil executivos de Toronto. Título: “Poder Interior.” Honorários: 350 mil dólares. No dia seguinte, repetiu a apresentação em Calgary por um pouco menos, 300 mil dólares. E uma videoconferência mais curta sobre o mesmo tema, à noite, adicionou outros 125 mil ao pacote. O total faturado naqueles dois dias foi apenas ligeiramente inferior a quatro anos de salário como presidente dos Estados Unidos.
Carisma pessoal à parte, sua estatura como estadista sem mandato não se sustentaria se ele não tivesse uma atuação global concreta como cidadão privado. Clinton seguiu a rota aberta por Jimmy Carter, e optou por fazer história como o ex-presidente que adaptou a filantropia para os tempos modernos. O resultado disso é a Clinton Global Initiative, filhote de sua William J. Clinton Foundation, que entra em seu quinto ano de existência e reúne pessoas – de governos, empresas, universidades, organizações mundiais – dispostas a assumir compromissos. Nos próximos dez anos, a CGI já conseguiu alcançar a quantia estratosférica de 57 bilhões de dólares em promessas de doação subscritas por 1 700 indivíduos e centenas de grupos empresariais.
Tudo, com Bill Clinton, parece assumir escala planetária. Só este ano, por exemplo, ele captou 9 bilhões de dólares tendo como meta a vacinação de 40 milhões de pessoas, geração de 80 milhões de postos de trabalho e escola para 30 milhões de almas criteriosamente mapeadas. Seu foco é definido e direto: identificar necessidades capazes de serem enfrentadas com ações urgentes, soluções claras e de resultados mesuráveis – justamente o mais difícil de conseguir quando se está no poder.
A partir do meio-dia do próximo dia 1º de janeiro, um sábado, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva entrega a casa, a faixa e o poder. Passa a fazer parte de uma confraria à qual ninguém se junta por vontade própria: a dos ex-presidentes da República vivos. A recepção não promete grandes alegrias. “O único que não falou mal de seu antecessor foi Tomé de Souza e, mesmo assim, só por ter sido o primeiro”, brinca José Sarney, o decano do grupo – está há vinte anos fora do Planalto. Sentado em seu vasto gabinete de senador e percorrendo com os olhos a eclética coleção de fotos em que aparece ao lado de potentados do mundo, conclui com melancolia: “O terrível é que a gente nunca pode deixar de ser ex-presidente. Podemos renunciar a tudo, mas continuamos sendo ex-presidentes. A gente passa a ser um grande e profundo encalhe.”
Ao desembarcar na mesma plataforma que José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, o futuro cidadão privado Lula terá inevitavelmente dificuldade em se situar – na vida e na sociedade. Segundo a listagem mais recente da Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego, elas são 2 511, vão de “abacaxicultor” a “zenji”(missionário), passando por “trabalhador da extração de substâncias aromáticas medicinais e tóxicas em geral”. Mas “ex-presidente” não há. E das 84 profissões regulamentadas no país, só mesmo presidente da República, sem o “ex”.
De início, a legislação brasileira se ocupou somente com a sorte das viúvas dos mandatários da República. Por decreto de 1952, assegurou-lhes uma pensão mensal de 10 mil cruzeiros – equivalente, à época, a quase oito salários mínimos. Passados onze anos, uma resolução da Câmara dos Deputados assinada por Ranieri Mazzilli retomou o tema. A concessão de pensão especial para ex-presidentes e ex-vice-presidentes não poderia ser superior “ao triplo do maior salário mínimo vigente”. O mais extraordinário dessa resolução de 1963 estava no parágrafo seguinte: a pensão se aplicava também a “pessoa que, como cientista, inventor, artista, homem de letras, homem de Estado haja praticado ato de excepcional benemerência ou contribuído com obra ou realizações de grande valor para o acervo cultural, o progresso ou a defesa do país”. Virou bagunça.
O artigo 184 da Emenda Constitucional de outubro de 1969, assinado pelo almirante Augusto Rademaker em nome dos ministros da Junta Militar foi mais certeiro, pois garantia a quem tivesse exercido o cargo em caráter permanente uma pensão vitalícia equivalente aos vencimentos de ministro do Supremo Tribunal Federal. Mas com a mudança da Constituição em 1988, estabeleceu-se que era necessária uma lei específica. Em outras palavras, os ex voltaram à estaca zero, sem direito a qualquer pensão até nova ordem. “O Itamar [Itamar Franco, presidente de outubro de 1992 a dezembro de 1994] até chegou a mandar o texto para o Congresso, mas o PT fez tamanho carnaval que a coisa morreu”, relembra Fernando Henrique Cardoso. “Quando chegou a minha vez”, acrescenta, “decidi não fazer nada para não dar cancha de dizerem que era em proveito próprio. E como o Lula também não mandou, assim ficou.”
Ficou, de acordo com o decreto presidencial 6.381 de dois anos atrás, que o presidente que tiver cumprido o mandato como titular do cargo tem direito aos serviços de quatro servidores para sua segurança e apoio pessoal; dois carros oficiais com motorista (um dos quais é de escolta); dois assessores, do quadro de funcionários comissionados. E, se for solicitado, a emissão de um passaporte diplomático.
No fundo, a estatura e o perfil de um ex-presidente resultam não apenas da bagagem pessoal e dos recursos públicos de que dispõe, como também da forma como foi aposentado do poder. Para o americano Jimmy Carter, a derrota ao tentar a reeleição equivaleu a uma demissão sem justa causa. A frustração por não ter conseguido colocar o país na direção que lhe parecia correta fez com que decidisse transformar a ex-Presidência numa vitrine do que era capaz. E conseguiu. Mas jamais se conformou. “Ter permitido a Ronald Reagan chegar à Presidência foi o meu maior fracasso como chefe da nação”, diz sempre.
Para o maranhense José Sarney, apegado à liturgia de um cargo que venera mas ao qual chegou por puro acidente em 1985 – sem faixa e sem voto, como figurante circunstancial de Tancredo Neves – os cinco anos no poder foram um pesadelo. Moratória, denúncias de corrupção, fracasso de dois Planos Cruzados, inflação que chegou a 2 751%. “Melhor do que ser é já ter sido”, constatou ao final. Passados vinte anos desde que entregou a faixa de seda verde e amarela a seu maior algoz, o jovem governador Fernando Collor, Sarney diz sentir saudade somente da coleção de passarinhos que criou no Palácio da Alvorada.
E desafoga mágoa por não ver reconhecida a sua iniciativa pioneira de preservar a memória presidencial da República. “Minha primeira preocupação foi me legitimar, porque senão eu seria deposto”, rememorou no início de junho em seu gabinete de senador. “Feito isso, me concentrei nas duas áreas que permaneceram em minhas mãos: a política externa, que sempre foi do meu interesse, e a preservação da memória da Presidência. [Sarney se refere à difícil convivência com o deputado Ulysses Guimarães, que tinha o Congresso nas mãos, e depois com a Assembleia Nacional Constituinte.] Nenhum de meus antecessores jamais tinha pensado no valor histórico dessa documentação se tornar acessível ao público. Não tínhamos memória de nada, tudo se perdeu.”
O objetivo era criar uma biblioteca nos moldes americanos, onde cada ex-presidente constrói a sua, mas cuja manutenção do acervo é custeada pelo governo. Com a diferença de que, no Brasil, em vez de construir a biblioteca, o ex-presidente reformou um convento em ruínas, o das Mercês, e o memorial já nasceu em berço histórico. Para isso, Sarney criou um grupo de trabalho no subsolo do Palácio da Alvorada, cujo esforço resultou num arquivo de 400 mil documentos. “Encarreguei um assessor de elaborar uma legislação relativa a isso, e mandei tudo para o Maranhão. Reconheço hoje que a Celina – Celina do Amaral Peixoto, criadora do CPDOC – foi a única voz lúcida do nosso conselho, pois disse que o Maranhão não tinha condições de assimilar esse material”, admite o senador, manuseando uma brochura já amarelada da Fundação. “Aqui você vê o sonho – a realidade foi outra.”
A implosão do projeto começou com o corte da verba de manutenção pelo presidente Itamar Franco. E a falência tornou-se inevitável com a publicação, um ano atrás, no jornal O Estado de S. Paulo, de várias reportagens sobre desvios de recursos da Petrobras para empresas-fantasmas da família Sarney. “A política deturpa tudo”, resigna-se o senador, calejado por mais de meio século de sobrevivência no meio. O que o jornal descreve como lápide de granito preto que marcava o espaço em que seria construído um mausoléu em sua memória, Sarney descreve como “apenas uma pedra preta no patiozinho lá atrás, mais para atrair turista que gosta de ver, é do sentimento humano. Por superstição, mandei até tirar, pois não me parecia nada simpático.” Não se pronunciou sobre o busto de mármore com a sua efígie, também retirado.
Apesar de atrelado quase umbilicalmente à vida política brasileira – já está em seu terceiro mandato de senador pelo Amapá – José Sarney diz que seus planos para a vida na planície eram outros. Convidado a integrar o primeiro clube de ex-presidentes do mundo com a tarefa de debater questões internacionais a portas fechadas, aderiu com entusiasmo. O Inter-Action Council, fundado pelo japonês Takeo Fukuda e pelo ex-chanceler alemão Helmut Schmidt, mantinha três reuniões anuais, que resultavam em documentos encaminhados aos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU. O primeiro Tratado de Não-Proliferação de Armas Nucleares foi gestado, segundo Sarney, entre as quatro paredes da sede novaiorquina que o conselho mantinha, à época, em frente ao prédio das Nações Unidas.
“É uma fundação rica, que paga todas as despesas de seus quarenta membros (um por país), mas começou a perder importância com o fim da Guerra Fria”, lamenta o senador. Apesar de ocupar a cadeira de presidente do Senado Federal, Sarney emite opinião surpreendente sobre o papel que cabe a um ex-presidente. “Depois de deixar o cargo, ele não deveria se candidatar a mais nada e deveria ser obrigado a manter perfil apartidário. Na minha cabeça, eu não poderia mais ser empregado de ninguém, tal a magnitude do cargo.” Lamenta que, após 976 dias de exílio, Juscelino Kubitschek tenha precisado assumir um posto de direção no Banco Denasa de Investimentos, criado com seus genros, e condena a permanência, por uma década, de Ernesto Geisel na presidência da Norquisa, uma empresa do setor químico. “Até o Itamar Franco teve de ser embaixador, subordinado a um ministro e a um presidente. Deu problemas à vontade”, concluiu.
No entender de Fernando Henrique Cardoso, nisso reside, em parte, a dificuldade de todo presidente brasileiro em convocar um ou mais antecessores para desempenhar qualquer missão de caráter nacional. Nos Estados Unidos ninguém se choca ao ver Barack Obama ladeado pelo republicano George W. Bush e o democrata Bill Clinton, pouco antes de despachá-los para um Haiti destroçado, na qualidade de observadores do governo americano. “É que lá existe esse conceito de conselho-presidencial, o que é ótimo. Aqui, poucos assumem a função de ex-presidente e continuam militando em condições diferentes e de status inferior”, diz ele. Nos Estados Unidos, os dois únicos presidentes que seguiram carreira parlamentar após o término de seus mandatos pertenceram ao século XIX: John Quincy Adams ainda serviu no Congresso por dezessete anos e Andrew Johnson retornou ao Senado para um último mandato em 1875.
Sarney participou de vários comitês temáticos e conferências internacionais ao longo dos últimos seis anos. Aos 80 anos, começa a se cansar. “Cada reunião dessas exige muita preparação, pesquisa e estudo e, como sou aplicado, confesso que cansei. Hoje só vou aonde sou convidado, só fico onde sou bem tratado e só me movo se pagarem minha passagem”, conclui com a satisfação de quem encontrou a justa medida, antes de abrir a porta da antessala onde se espreme o habitual aglomerado de figuras à sua espera. “É assim o dia inteiro, inclusive sábados e domingos na casa dele”, informa um assessor.
Marcos Azambuja, apesar de recém-chegado de Cingapura, e com um débito de onze horas de jet lag para descontar, avivou-se no sofá do senhorial apartamento onde mora, no Flamengo, e acionou a memória e a verve. É dele a frase “Os diplomatas são produtores de bullshit, mas não são consumidores.” Foi secretário-geral do Itamaraty, embaixador do Brasil em Buenos Aires e Paris, está aposentado desde 2003, após 45 anos de serviço. Atualmente, aos 75 anos, faz o circuito de palestrante em seminários e conferências globais.
A seu ver, a longevidade tornou-se um dado político moderno e todo presidente deveria meditar sobre o fato de não mais morrer no poder assassinado, de enfarte ou trombose. Em outras palavras, é melhor prever uma existência como ex, visto que a medicina, ao prolongar a vida, não prolongou a mocidade – prolongou apenas a velhice. Aproveita para compartilhar a teoria de sua própria mãe, de 94 anos, segundo a qual você envelhece de baixo para cima – das pernas para a cabeça.
Paralelamente, ocorre mundo afora a chegada ao poder de líderes cada vez mais jovens que, ao esgotarem seus direitos à reeleição, também engrossarão o clube dos ex. Lembra da história da passagem por Roma de Fernando Collor, já presidente eleito mas ainda não empossado. “Nosso embaixador na capital italiana, que tinha sido oficial de gabinete de Jânio Quadros, o qual também estava na cidade, organizou um jantarzinho para ambos.” É Jânio quem inicia o diálogo:
– Presidente, o senhor tão moço para essa função…
Collor não reage, o que leva Jânio a voltar com mais insistência à questão da mocidade de Collor. No terceiro ou quarto “o senhor tão moço…”, Collor responde:
– Desculpe, mas estou chegando à Presidência com a mesma idade que o senhor chegou.
E Jânio, sempre certeiro:
– E deu no que deu!
Na verdade, Jânio Quadros era sete meses mais velho do que Collor – quando renunciou, tinha 44 anos. Fernando Collor foi eleito 32º presidente do Brasil com 40, governou o país durante 932 dias e foi afastado do cargo por ser objeto de processo de impeachment aos 43 anos, 4 meses e 17 dias.
De todo modo, hoje, o senador e candidato a governador que completa 61 anos em agosto parece dar o devido valor a sua carreira precoce. A ponto de cometer uma ligeira incorreção. No seu site em quatro línguas, destaca o fato de que “em 1989, com apenas 39 anos de idade, fui eleito presidente do Brasil, nas primeiras eleições democráticas do país em 29 anos. Eu já tinha sido o prefeito e o governador mais jovem do Brasil.”
Uma das decisões mais inadiáveis que um futuro ex-presidente precisa tomar, ainda como inquilino da República, é para onde ir depois de transmitir o poder. Qualquer que seja a natureza de sua despedida – aclamado ou vaiado – é de bom-tom sair de cena. Na época de Getúlio Vargas, isso era fácil. Bastava ele se deslocar até sua estância gaúcha de São Borja, e o exílio interno estava garantido. Seria necessário ter acesso a um aviãozinho particular – o que poucos tinham – e pousar num campinho improvisado para encontrá-lo.
José Sarney também pôde buscar refúgio na ilha de Curupu, perto de São Luís do Maranhão, de propriedade da família de sua esposa, os Macieira. “Foi a melhor coisa que fiz”, relembra ele, “passei três meses inteiros ali para descansar daquela coisa toda.” Mesmo assim, ao retornar a Brasília, só aceitou fazer sua rentrée no restaurante mais conhecido da capital escoltado por Antonio Carlos Magalhães – temia o risco de ser vaiado em público.
Coube a Fernando Collor, contudo, encontrar o refúgio mais impenetrável para purgar seus demônios interiores sem ter de sair do lugar: ele mesmo. A descrição de suas derradeiras horas no Palácio, quase minuto-a-minuto, foram feitas de próprio punho, quando já se encontrava em Miami. Escrito com o rigor detalhista de um repórter obsessivo – ele é formado em jornalismo e trabalhou na sucursal do Jornal do Brasil, em Brasília –, o relato constitui capítulo já conhecido de seu livro de memórias, que permanece inédito.
Segundo pessoa com acesso franqueado pelo senador, a obra está concluída desde a sua absolvição pelo Supremo Tribunal Federal, tem 640 páginas e continua guardada numa gaveta de casa. De acordo com a mesma fonte, ele a escreveu sozinho, como catarse, em meio a momentos de choro. Ao longo de seus menos de mil dias de Presidência, arquivou muito e fez anotações quase diárias de tudo. Foi aconselhado pelo ex-deputado Thales Ramalho, a quem confiou a primeira leitura, a colocar a obra de molho.
O que poucos sabem ou viram foi sua rotina de quase três meses de coreografia presidencial na Casa da Dinda, onde desembarcou de helicóptero minutos após descer a rampa palaciana sob vaias, já afastado do poder. A casa fica no Setor de Mansões Norte, na beira do Lago Paranoá, e tem um anexo, que, honrando a máxima de que cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, fora previamente transformado em gabinete presidencial do B.
De outubro a dezembro daquele ano de 1992, Fernando Collor de Mello atravessava os jardins da Dinda e saía da residência principal às oito horas da manhã, pontualmente. Sempre de paletó, gravata e penteado impecáveis, dirigia-se para o anexo acompanhado de dois ajudantes de ordens. Tinha sempre um carro preto à porta, como convém a um presidente.
No anexo transformado em gabinete, a ritualística para se fazer receber era semelhante à reservada aos visitantes no Palácio do Planalto: portaria, identificação, espera numa antessala, a informação ocasional de que “ele está despachando” e, por fim, o acesso ao gabinete de ar um tanto caído, mas com a bandeira do Brasil em mastro. Na lapela do ocupante sem poder, repousava o habitual broche em forma da bandeira nacional. Reservava as duas primeiras horas do dia para telefonemas, embora os dois telefones brancos postados sobre a mesa ficassem suspeitamente silenciosos.
O visitante diário e talvez único, naqueles primeiros meses de privação do poder, foi o ex-senador pernambucano Ney Maranhão, integrante da chamada tropa de choque do jovem presidente. Em entrevista ao jornalista Geneton Moraes Neto, Maranhão revelou que portava uma pistola Anaconda calibre 44 na manhã da cerimônia em que foi afastado do poder, pois temeu que o corredor polonês de manifestantes formado ao pé da rampa degringolasse em violência.
Hoje, aos 82 anos de idade e exonerado do Senado, mantém lealdade ao antigo líder. E este mantém fidelidade inquebrantável ao protocolo, além de gratidão canina a quem lhe permaneceu leal. De tão formal, acabou inventando um termo só usado por ele – o de “senador-ministro” – que utiliza sempre que aplicável, como no caso do senador Francisco Dornelles, ex-ministro da Indústria e Comércio e do Trabalho no governo Fernando Henrique Cardoso.
Por presidir os trabalhos da Comissão de Infraestrutura do Senado, Collor recebe tratamento de “presidente” da maioria dos senadores; já José Sarney o chama assim por ele ter ocupado o posto mais alto da República. “Aprendi na gramática de Eduardo Figueiredo que a forma de tratamento correta é a do cargo mais alto que a pessoa ocupou. Chamo a todos assim. E assim é chamado pelos outros? “Não, os presidentes Itamar e Fernando Henrique me chamam de Sarney”, lamenta.
Seis meses antes da troca de guarda começa o formigamento no palácio. “Sim, o tempo prudencial é seis meses. É quando as pessoas começam a querer saber o que vão fazer da própria vida”, explica o antecessor de Lula. “A coisa começa quando se perdem as ilusões de que o sucessor vai ser do teu time. E mesmo que seja, ao chegar à Presidência não será a mesma pessoa, os laços serão diferentes. Então qualquer assessor fica com as barbas de molho por não saber onde e o que estará fazendo em 2011.” Para o presidente em final de mandato, também começam a rarear as viagens de Estado. Um veterano da carreira explica: “A agenda fica mais fácil, o presidente se torna mais acessível, e a entourage começa a se movimentar. Como em palácio se convive essencialmente com dois tipos de colegas – os diplomatas e os militares – é fácil notar o quanto os diplomatas são mais afoitos – afinal, os bons postos no exterior somem rápido.”
Segundo a memória da maioria dos entrevistados, o Dia D transcorre numa espécie de transe, que só adquire forma e significado definitivos a posteriori. “Temos um passado em comum, a cerimônia teve significado e os dois estavam emocionados”, lembra Fernando Henrique Cardoso ao falar da transmissão da faixa para Lula. “Quando ele me levou até o elevador nos abraçamos e ele me disse baixinho ‘Você deixa aqui um amigo.’ Tenho certeza de que naquele momento ele sentia realmente aquilo. Eu também. Depois vem o depois, e isso é outra história.” O ex-presidente seguiu de carro até a Base Aérea de Brasília para embarcar pela última vez no Boeing presidencial que o depositaria em Cumbica. A despedida dos amigos e assessores se deu ali, e foi igualmente forte.
– De qual rosto na pista se lembra até hoje?
Diante da hesitação na resposta, ouve a pergunta seguinte.
– Quem lhe faria falta, se não embarcasse?
– Um ajudante de ordens, mas ele embarcou comigo.
– Quem faz falta até hoje?
– O Lucena – José Lucena Dantas, chefe de gabinete – … a Ana – Ana Tavares, assessora de imprensa.
Ana Tavares ficara no pé da escada, mão direita no peito, o braço esquerdo erguido em aceno. Missão cumprida – foram vinte anos de convivência.
Ao chegar a São Paulo, o ex-primeiro casal trocou de roupa e voltou ao aeroporto para embarcar para Paris na mesma noite. “Era bom para o recém-empossado Lula que ele não ficasse no Brasil naquele momento. Convinha a ambos. Embora a relação entre eles fosse muito cordial, sempre havia o temor de que algo pudesse dar errado”, garante um amigo de longa data.
Voaram de primeira classe e, ao desembarcar, eram esperados por Marcos Azambuja, então embaixador do Brasil na França, e José Israel Vargas, embaixador junto à Unesco e amigo de faculdade do casal. Embora tivesse direito a levar um guarda-costas na viagem, Fernando Henrique preferiu não fazê-lo. “Seguimos inicialmente para um relais-chateau perto de Chartres, onde passaríamos os dois primeiros dias, e percebi que vários carros da polícia francesa acompanhavam nosso automóvel ao longo do trajeto”, disse. Típica cortesia de membro da confraria – no caso, o presidente Jacques Chirac – que sabe o quanto pode ser doída a perda dos anéis. Naquele momento, não era de cortejo que Fernando Henrique Cardoso mais precisava. Era de espaço.
“Em Paris tudo me parecia muito apertado, sufocante. Vai ver que qualquer lugar, quando comparado ao Alvorada, pareceria pequeno”, admite. Marcos Azambuja relembra esses primeiros dias por um prisma ligeiramente diferente. “Você simplesmente não pode sair da totalidade, da majestade do poder e cair num apartamento muito simpático da avenue Foch, de dois belos quartos, sem uma sensação de estreitamento dramático das suas opções”, garante o diplomata. “Acontece que eu não dispunha de nenhuma verba, de nenhum recurso que me permitisse dizer: ‘Aqui está um carro com motorista à sua disposição 24 horas.’ Se eu fizesse isso, nós dois seríamos atingidos – ele como objeto da mordomia, e eu como intermediário.” O embaixador conseguiu um automóvel emprestado de um amigo, mas Ruth Cardoso decidiu que iriam se locomover de metrô.
“Ruth encarava tudo com grande naturalidade, por ser uma pessoa realmente fiel às matrizes da qual os dois partiram. Ela tinha sido mais impregnada de certas ideias e valores. Ele fez uma viagem na Presidência, ela não”, diagnostica Azambuja.
Foi na ocasião daquela primeira viagem do casal como cidadãos privados que o arguto diplomata diz ter feito uma descoberta: os dois não tinham dinheiro. E o alardeado pão-durismo de Fernando Henrique decorria muito mais da falta de dinheiro do que de avareza. “Ele terminou o mandato com zero de enriquecimento. E depois que ele começou a dar conferências e palestras, passou até a me convidar para jantar fora algumas vezes.”
O ex-presidente conta que ao sair do cargo tinha perto de 20 mil dólares nos Estados Unidos, fruto de conferências e atividades anteriores ao poder. Vendeu o apartamento antigo da rua Maranhão, em São Paulo, e outro em que guardava os livros, antes ocupado pela filha Luciana, para comprar o atual, de 400 metros quadrados. “Só que o produto da venda não dava. Ficou faltando. Foi então que fiz um contrato com a editora Record, que me adiantou perto de 150 mil reais para escrever um livro. Fiquei feliz da vida”, diz.
Ficou estarrecido ao ouvir que Bill Clinton saíra da Presidência com dívidas advocatícias de vários milhões de dólares, decorrentes de seu abortado processo de impeachment e de uma interminável investigação de suas contas no Arkansas. O americano recorreu ao mesmo expediente do seu amigo brasileiro: assinou um contrato para a publicação de suas memórias com a editora Alfred Knopf. Só que, pelo catatau de quase 900 páginas recebido com frieza pela crítica, embolsou um adiantamento de 12,5 milhões de dólares.
Pelo menos até o futuro desembarque de Luiz Inácio Lula da Silva, Fernando Henrique Cardoso é o único brasileiro a construir um perfil de ex-presidente global. “Eu não sabia que podia ganhar dinheiro com essa coisa de conferência. Não tinha a menor ideia, aliás”, admira-se até hoje. No seu último ano no poder, participou da fundação do prestigioso Clube de Madri, que congrega mais de setenta ex-chefes de Estado e de governo. “Quem entra? Só os que são democratas e o ingresso depende de eleição. O Bush, por exemplo, não está. Do Brasil, só eu”, diz, gabola. Foi o primeiro presidente da entidade, com Bill Clinton na presidência de honra. Reeleito, trouxe para dentro o ex-presidente do Chile, Ricardo Lagos, que começa agora a testar as águas do circuito de conferências. “Eu também era co-chairman do Inter-American Dialogue, de Washington, e passados quatro anos coloquei o Lagos para me substituir nas duas posições. Não há regras para isso, é uma questão de sensibilidade”, ensina.
Experiência é o que não lhe falta. Às vésperas da troca de governo em Santiago, foi dar uns conselhos ao colega. “Olha, Ricardo, não pegue compromissos demais logo no começo, senão não terá tempo para aceitar os convites realmente bons. Ao deixar o poder, todo mundo passa pela angústia do ‘E agora?’, mas se você tiver as conexões certas, haverá excesso de demanda. É sempre assim.”
O “professor” FHC também ensina que é preciso manter certo equilíbro entre trabalho pelas causas gerais e trabalho remunerado. Membro de uma penca de conselhos consultivos – World Resources, Universidade Brown, Fundação Rockefeller, Instituto de Estudos Avançados de Princeton, alguns dos quais não pagam sequer a passagem – decidiu ter chegado a hora de diminuir sua presença nos conselhos. “Difícil é escapulir das homenagens de universidades que querem te dar um título de doutor honoris causa. Como não aceitar? Numa dessas ocasiões, acabei tendo de falar quatro vezes num mesmo dia. É trabalho, e duro. Não posso levar a vida viajando.”
Exatamente há um ano, o ex-presidente teve de ser atendido com urgência no Aeroporto dos Guararapes, em plena madrugada, ao retornar de uma viagem a Angola. Passara mal no meio do Atlântico. Sofrera um ligeiro desmaio, e fora hidratado com soro fisiológico até pousar em São Paulo. Na época tinha 78 anos.
Duas semanas atrás, listou de memória os seus compromissos dali para a frente. Partiria para a África do Sul, ao encontro do grupo que mais o encanta ultimamente – The Elders, Os Anciãos, o clube de líderes fundado em torno de Nelson Mandela, cujos membros são apenas onze. “O convite inclui uma visita a um daqueles parques de animais, mas já fui uma vez e não quero acordar às cinco da manhã para ver elefantes. Vou só para a reunião na sexta, fico lá no fim de semana, e retorno a São Paulo na segunda. Na semana seguinte vou à Espanha para receber um prêmio – desisti de fazer uma palestra em Genebra –, e sigo para a reunião da Fundação Champalimaud, em Portugal. Depois Berlim, para um seminário e, por fim, participo de uma reunião em Londres, na qual o George Soros vai querer saber o futuro das fundações nas quais investiu mais de 5 bilhões de dólares.”
O ponto alto do giro europeu: uma semana de férias em Paris, em companhia do filho, com comemoração moderada pelos 79 anos. Da França seguiu para o Líbano, com retorno ao Brasil marcado para o começo de julho. Impossível foi encaixar a convenção do PSDB – com lançamento oficial da candidatura de José Serra – em agenda tão lotada.
Às onze da manhã de uma sexta-feira recente, Gilberto Carvalho, o chefe de gabinete do presidente Lula, confirma sem querer a Teoria do Formigamento. “A gente já entrou na fase da contagem regressiva e dá uma vontade danada de que o final do ano chegue logo. Essa coisa de que tudo o que acontece no país tem a ver com você traz um cansaço profundo. Bendita seja a alternância!”, comemora, no seu feitio comedido de festejar.
Na parede maior de seu gabinete, o retrato esmaecido de alguém que visivelmente não faz parte do circuito mundial de palestrantes. “Ah, esse é o padre Alfredinho, missionário suíço daqueles radicais. Ele exerceu influência forte na minha vida durante meus anos de seminarista. Alfredinho morreu em 2001, quando morava numa favela em Santo André, onde eu já atuava. Eu o mantenho aí na parede para ele me fiscalizar e não deixar que eu vire pelego”, explica Gilberto.
No dia 15 de dezembro, esse ex-seminarista de 57 anos autorizará a entrada de caminhões de mudança, que deverão levar o acervo presidencial para algum destino. “Por uma regra meio estranha da nossa lei 8.394, de 1991, que disciplina os suvenires privados dos presidentes da República, o titular deve constituir um acervo, e para lá levar tudo o que recebeu – no caso do Lula, chegam aqui uma média de 6 a 8 mil cartas em papel por mês. Presentes, então. A cada viagem são mil rosários, santos, camisas de futebol, símbolos, arte popular, um negócio de maluco. Esse acervo todo, hoje, está muito bem tratado aqui na Presidência – é classificado, informatizado, digitalizado, guardado em áreas climatizadas, então não pode ir para um lugar qualquer. Temos feito pressão.”
Mas Lula adia o máximo possível. “Em dezembro a gente vê. quero continuar trabalhando. não me enche o saco, não quero pensar no futuro.” Há coisas que não adianta querer combinar com o chefe. Ele continua a pregar diariamente a mesma coisa: não quer saber de clima de festa. Quer tudo igual até 31 de dezembro.
Como se vê, a cada quatro ou oito anos, o inquilino que vai desocupar a casa se vê às voltas com o mesmo problema. Segundo Carvalho, Lula queria propor um projeto para a construção de um espaço coletivo capaz de guardar os arquivos pessoais dos presidentes, e cujo acesso seria público. Mas só agora, já no final do mandato, ele admite conversar sobre tudo isso. “Estamos apavorados com a hipótese de ter de alugar um espaço de armazenamento até que fique pronto um espaço nosso”, diz.
Ao contrário de Carvalho, José Sarney aprova e aplaude a forma como o presidente tucano destrinchou a questão. “Ele foi objetivo – passou o pires entre empresários antes de deixar Brasília e arrecadou de 8 a 10 milhões de reais”, diz Sarney. Graças à vaquinha da qual participaram, entre outros, Benjamin Steinbruch e Paulo Piva, o Instituto Fernando Henrique Cardoso foi inaugurado em maio de 2004, com a presença de Bill Clinton e do sociólogo espanhol Manuel Castells. FHC comprou dois andares inteiros no centenário prédio do Automóvel Clube, no centro de São Paulo, com direito à vista panorâmica, de cartão-postal antigo, sobre o Viaduto do Chá. “Dois andares, 1 600 metros quadrados, porteira fechada com todos os móveis e este lindo relógio de pêndulo antigo, tudo por 900 mil reais, não é fantástico?”, pergunta o ex-presidente, orgulhoso de seu tino comercial.
Ironicamente, é no embate em estatura internacional, calculada em termos de qualidade e utilidade pública do acervo presidencial, que Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva se medirão de janeiro em diante. O embaixador Azambuja, sempre ele, arrisca uma previsão. “Tenho a impressão de que Fernando Henrique não imaginou que Lula fosse ter o sucesso internacional que está tendo. Ele previu que, graças a seu magnetismo, Lula iria causar um grande pacto interno, mas não a ponto de se transformar num símbolo mundial. Só que o Lula não opera na área da inteligentsia, que é do Fernando Henrique. O Lula não deve se sentir confortável num seminário ou colóquio, nem se esforçará para participar de uma mesa-redonda. O mundo do Lula é um comício permanente, um palanque. É nesse sentido que o Fernando Henrique tem a guarda de um nicho só dele – o da excelência e credibilidade intelectual. Acredito que ele seja o primeiro presidente do Brasil moderno visto como parte de uma elite pensante. Mas não é a cara do Brasil.”
E o Lula?
“O Lula é uma invenção dele mesmo. Eu diria sem medo de errar que são apenas três as caras brasileiras iconograficamente reconhecidas, cada uma à sua época, é claro: Carmem Miranda, Pelé e Lula. Hoje, você não pode ter uma reunião internacional de mais de dez, doze líderes mundiais, sem a cara do Lula na primeira fila. Ele já faz parte do álbum de família. É um iluminado. Os que são contra ele vão ficando desmoralizados pelos seus sucessos em série, que são muitos. Lula está vivendo uma fase mágica”, conclui o embaixador. O diplomata só não entende como Lula foi cair na casca de banana que é o Irã. “Talvez pelo hábito de reduzir uma questão complexa a coisa simples, só que essa habilidade não se aplica ao Oriente Médio”, pondera.
Gilberto Carvalho já ouviu previsões das mais estratosféricas quanto ao futuro de Lula como ex-presidente. Ainda recentemente, um jornalista lhe assoprou as cifras inebriantes que podem advir do circuito de palestras. Lula ouviu e começou a rir: “Quero ver quanto vão me pagar os sem-terra do Pará, os hansenianos do Amazonas”, teria dito.
Percorrer novamente o caminho parlamentar também está fora de cogitação. “Ele não teve prazer algum naquele mandato”, diz Gilberto.
Tanto Gilberto Carvalho como Marco Aurélio Garcia, o assessor para Assuntos Internacionais do presidente, veem Lula mais inclinado a desempenhar um papel acentuado no continente africano. Isso tem se relevado tanto em conversas informais quanto no mapa geopolítico de seus dois mandatos. Ao assumir o poder, havia dezesseis embaixadas do Brasil na África; hoje são 36. “E ainda há pouco chegou um Sucatão nosso trazendo mais de oitenta técnicos e ministros africanos para conhecer a Embrapa. Eles visitaram uma feira no cerrado e passaram três dias estudando lá eventuais semelhanças com a savana deles. Todos demonstram uma devoção genuína pelo presidente brasileiro”, disse o chefe de gabinete.
Carvalho também acredita que Lula vai sentir muita falta de ser presidente. “Vendo a desenvoltura dele no cenário mundial, até parece que o cara nasceu para isso.” Só que agora chegou a hora de nascer de novo – como ex-presidente.
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