ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2010
Tudo se explicaria
A solidão de um cientista a quem ninguém dá ouvidos
Bernardo Esteves | Edição 47, Agosto 2010
Hélio Barnabé Caramuru, engenheiro civil aposentado, tem certeza de que guarda na gaveta de sua mesa, num prédio residencial da Bela Vista, em São Paulo, a chave de quase todos os segredos do mundo natural. Foi precisamente nesse apartamento, onde mora com dois gatos e um cachorro, que ele concebeu a sua teoria “A Matemática da Evolução”, lá se vão quinze anos. Trata-se de uma equação capaz de descrever um sem-número de sistemas que evoluem com o passar do tempo. “Tudo o que existe na natureza foi criado a partir dessa equação”, assevera Caramuru, com a serenidade dos iluminados.
O decaimento de isótopos de urânio, o crescimento das populações e a mortalidade de animais marinhos são exemplos de fenômenos cobertos pela AME, assim como a escala bem temperada de Bach. A relação entre as notas musicais guarda valores fixos; se a equação de Caramuru for alimentada com a frequência (em hertz) de determinada nota, ela apontará a frequência da nota seguinte. Nada muito espantoso, mas ele ficou satisfeitíssimo ao constatar que a teoria se aplicava também aqui.
Relativamente simples, usando uma matemática ao alcance de qualquer estudante do primeiro ano de engenharia, a teoria foi amadurecida quando Caramuru se aposentou e pôde canalizar sua energia criativa para os cálculos. Formado em 1958 na Escola de Engenharia da USP em São Carlos, no interior do estado, ele trabalhou principalmente com barragens para hidrelétricas. Foi funcionário das Centrais Elétricas de São Paulo e orgulha-se de ter participado da construção das usinas de Itaipu e Tucuruí.
De início, Caramuru batizou sua teoria de denajodalogia, acrônimo da frase usada por Einstein para descartar a existência do acaso e da indefinição nas coisas do universo: “Deus não joga dados.” Mas ele viu que era melhor não pôr o Criador no meio, sem contar que o nome soava mal como um cacófato. Lúcido, confiou o neologismo à lata de lixo e rebatizou sua teoria de “A Matemática da Evolução”, solução menos memorável, porém mais apta a repelir antipatias à primeira vista.
Ademais, na metafísica de Caramuru, o Deus que existe é um contemplador. Dele partiram as instruções matemáticas que regem o rumo das coisas, mas daí em diante os fenômenos descritos pela fórmula matemática seguem olimpicamente um curso inexorável. “Deus não manda na minha matemática”, diz o engenheiro, sem medo das consequências.
Em termos pragmáticos, contudo, mal não faria se o Criador lhe desse uma forcinha junto à comunidade científica, que teima em ignorar a AME. Caramuru já cansou de tentar mostrá-la a especialistas da USP e da Federal do Rio. O roteiro é sempre o mesmo: os professores suficientemente gentis para recebê-lo alegam não dispor de tempo para ler o trabalho – ainda que o artigo fundamental que apresenta a equação tome apenas seis páginas –, enquanto as raras almas que prometem ler tudo com atenção costumam evaporar sem dar notícia.
Hélio Barnabé Caramuru é um soldado solitário. Suas teses parecem feitas de neutrinos, os quais, sabemos todos, vêm a ser aquelas partículas subatômicas que praticamente não interagem com a matéria. O que ele diz não penetra o mundo sólido e se perde no éter. Nada emplaca.
Mas a indiferença não abala suas convicções. Ele a atribui ao corporativismo da ciência estabelecida, sempre refratária a novidades. “Dos cientistas, só recebi desprezo e escárnio. Hoje eu os perdoo e lhes sou grato.” As provações agem como um tônico poderoso. Na rejeição encarniçada, Caramuru enxergou um sinal de que estava no justo caminho.
Quando ainda acalentava a hipótese de que a resistência se restringiria ao provincianismo dos brasileiros, Caramuru tentou estabelecer contato com atores mais relevantes do pensamento mundial. Vencendo um inglês limitado, redigiu uma carta em que denunciava a miudeza intelectual dos conterrâneos e apresentava os prolegômenos da AME. “Antevejo grande interesse para a ciência acerca dessa nova teoria”, garantiu.
A carta foi encaminhada à Sociedade Americana de Física e à Sociedade Química do Japão. Silêncio. Uma cópia seguiu para a Universidade de Edimburgo, endereçada ao professor emérito Peter Higgs, físico teórico de 81 anos que propôs a existência da partícula mais misteriosa da física: o bóson de Higgs, justamente. Silêncio. Caramuru recorreu até ao físico alemão Max Planck, que, falecido em 1947, deveria ter recebido a missiva por intermédio do instituto de pesquisa homônimo. “Um rasgo de humorismo”, ele diz. Nem assim.
Restava a via-crúcis das revistas científicas. Sempre altivo, Caramuru submeteu seus escritos a publicações do Brasil e do exterior. Atreveu-se mesmo a cutucar a Nature, uma das mais sacrossantas do mundo. Nada: “Ou alegam que não está no escopo da revista, ou mandam dizer que está faltando alguma informação. Há muita formalidade nessas revistas.”
Nesse sentido, a internet chegou como uma lufada de desburocratização. Caramuru publicou seus artigos no Artigonal e no Webartigos, portais que compreendem a importância de expor ideias científicas sem o óbice de múltiplas revisões por pares do autor. Nada. Não foi o bastante para dar visibilidade à teoria. Seu artigo mais popular no Artigonal teve cerca de 200 acessos desde outubro de 2008, não obstante intitular-se “Nova visão matemática sobre jogos de azar” e mostrar como a equação central da teoria descreve a frequência com que são sorteadas as dezenas da Mega-sena.
Se algum cínico de plantão engatilhou a língua ferina, pois saiba que Caramuru não se furtou a pôr à prova a eficácia da AME. “Ganhei a quadra em quatro ocasiões jogando só 10 reais”, ele conta. Não seria pouco demais para uma teoria de tão altas pretensões?, perguntará o plantonista. Não. A dificuldade técnica de realização dos cálculos o faria perder tempo – “Gasto pelo menos um dia inteiro”, diz Caramuru – e, mais importante, ele tem escrúpulos em usar a AME para essas coisas: “Sou contrário aos ganhos fáceis. Meu projeto é maior do que isso.”
A falta de interlocutores começa a tomar ares dramáticos para o engenheiro Caramuru: “Se eu morrer hoje, levará anos até que alguém volte a descobrir isso.” Ele completa 81 anos neste mês de agosto.