Para Orozco, o cotidiano é uma casa do tesouro. São coisas bonitas e desarmam o espírito. Prescindem de toda pompa FOTO: MY HANDS ARE MY HEART, 1991_ GABRIEL OROZCO_CORTESIA DO ARTISTA E DA GALERIA MARIAN GOODMAN, NOVA YORK
Orozco, ou os restos do capital
Admirar a modéstia de um artista é uma coisa; sentir-se convencido, comovido ou mesmo surpreso com o resultado da modéstia é coisa muito diferente
T. J. Clark | Edição 56, Maio 2011
Não há jeito de me lembrar por que fiquei tão irritado com a primeira exposição que vi de Gabriel Orozco, anos atrás, em Nova York. Sua retrospectiva de meio de carreira, que ficou na Tate Modern até 25 de abril, ao contrário, me pareceu acolhedora, inventiva e, sobretudo, despretensiosa. A mostra reuniu um conjunto variado de obras feitas com apuro: fotografias de boa qualidade, estranhas pinturas abstratas, objetos encontrados ao acaso (objets trouvés), geralmente alterados, pequenas esculturas em terracota ou plasticina, peças maiores feitas com pneus estourados ou com fiapos de tecido acumulados no filtro de secadoras de lavanderia, gravuras, desenhos e peças sensacionais de toy-art (brinquedos de arte): um Citroën DS fatiado e compactado, um jogo de bilhar no qual a bola vermelha é suspensa do teto por um fio de pêndulo (o visitante é convidado a jogar, e é divertido), uma caixa de sapatos vazia colocada no chão.
Quando vi Orozco em Nova York, nos anos 90, é possível que eu ainda estivesse vivendo um pouco no passado. Como os objetos encontrados e os artefatos inúteis pareciam provir de um vago ambiente dadaísta, minha expectativa era que fossem me morder ou machucar. Mas, na verdade, eram amistosos. Pediam que eu e o mundo da arte ficássemos tranquilos: a arte é um jogo. E só agora vejo o que os melhores críticos viram naquela ocasião: que se tratava de uma bem-vinda reação pós-adolescente ao Sturm und Drang da década anterior – todas aquelas pinturas nazistas e antinazistas feitas de estrume e palha – e também, talvez, uma maneira de manter sutilmente acesa a chama Dadá. Provavelmente, esse ainda seja o tema de Orozco.
Orozco é um colecionador do refugo das ruas. Ele faz muitas coisas, e tem uma capacidade de concentração maníaca e repetitiva, mas sua tática fundamental é correr o mundo em busca de objetos e instantes para, rapidamente, os fotografar ou catar. Na exposição da Tate, o exemplo que logo me vem à mente é uma fotografia da água se acumulando no telhado liso de um armazém abandonado, com o reflexo interrompido por suaves ondulações cinzentas. Ou, numa outra foto, a respiração condensada na tampa de um piano. Ou, ainda, uma pequena peça de terracota, cavada com os dedos, formando um coração, ou um rosto socado, ou uma vértebra, ou um monte de areia escavado numa praia batida pelas ondas, feito simplesmente com as duas mãos dobradas sobre um pedaço de argila.
Essas coisas são bonitas (voltarei à questão da beleza mais adiante) e desarmam o espírito. Elas prescindem de toda pompa. Orozco é o tipo de artista capaz de esculpir quatro peças em terracota pintadas de preto, representando partes do corpo humano – ossos das pernas, um tronco achatado, uma face gravemente afetada – e, de uma forma ou de outra, deixá-las livres do estigma da catástrofe. Ele se recusa a entrar no clima de Auschwitz. É o anti-Joseph Beuys.
Até aí, tudo bem. Só que minha primeira reação a Orozco não desapareceu de todo. Admirar a modéstia de um artista é uma coisa; sentir-se convencido, comovido ou mesmo surpreso com o resultado da modéstia – compreender que, por algum motivo, jamais esqueceremos uma determinada modificação que o artista imprimiu ao mundo – é coisa muito diferente. Tenho dificuldade em entender por que o segundo tipo de envolvimento jamais aconteceu comigo na exposição da Tate Modern. Mais difícil ainda é explicar meu distanciamento de uma forma que não pareça de imediato pesada e estridente. Por que a leveza não pode ser tudo?
Orozco é um catador de trapos. Aceita como fato consumado a experiência da arte moderna de intervenção mínima no mundo – a tática do ready-made, do objeto encontrado ao acaso, da colagem, da assemblage e da instalação. É dessa experiência que ele tira sua sintaxe e seu vocabulário. Orozco sabe que chegou tarde ao centro da cena, e não está interessado em fazer muito estardalhaço sobre a sua (ou nossa) entrada tardia. Do ponto de vista da história da arte, a caixa de sapatos no chão é infinitamente sagaz: sabe-se muito bem que é uma reprise, quase uma paródia, de muitas situações anteriores destinadas a instigar o visitante a perguntar, talvez balbuciar: “Isso é arte?” E espera-se que o espectador saiba que balbuciar também é uma reprise, uma paródia.
Tudo isso pode ser muito irritante, e para ser franco, me irrita um pouco a sofisticação da dupla mensagem aí embutida. Mas é o dar de ombros, a expressão de indiferença que a acompanha (“E o que mais você espera?”) que salva Orozco. A pergunta “E o que mais você espera” é dirigida ao mundo da arte. E Orozco sabe – esta é a sua grande sabedoria – que o mundo da arte espera (adora) que a pergunta seja feita com um tom de voz intimidador ou vitimizado. O som que emana da caixa de sapatos, no entanto, é levemente pessimista. É um novo frisson.
Só que para mim isso não basta. Uma forma de exprimir o que quero e não encontro em Orozco põe em foco a questão da beleza. Enquanto percorria as salas da Tate Modern, surpreendi-me indagando – insisto que não estava me colocando na posição de polícia vanguardista – que tipo de sensibilidade visual estava ali à mostra. Sem dúvida, uma sensibilidade discreta e meticulosa. Talvez a escolha dos objetos tenha exagerado isso. Eu gostaria de ver mais exemplos das pequenas esculturas de “objetos quase encontrados ao acaso”, que às vezes são menos comportados. Pareceu-me, algumas vezes, que o trabalho (nas gravuras ou nos desenhos mais elaborados, por exemplo) é tão limpo e apurado que chega a se esvanecer. Mas, de modo geral, a sua força está justamente na sobriedade.
Até os pedaços de pano pendurados com desleixo em cordas que atravessam a sala – cujo título, Lintels (Vergas), tem algo a ver com a poeira respirada nas ruas logo após o 11 de Setembro – só conseguem mexer de modo fantasmagórico com sua própria forma monótona. É verdade que muitas vezes a beleza parece surgir como uma tentação em Orozco. A mesa de bilhar oval com o pêndulo de Foucault é bonita, assim como os pares de motocicletas amarelas fotografadas na cidade e as bicicletas axonométricas. Não me interessei nem um pouco pelo Citroën compactado, mas isso talvez aconteça porque também não dou a mínima para o original não compactado – pura esquisitice da futurologia francesa, com o espelho retrovisor que sempre parece ter mais de 10 centímetros de grossura, como se esperassem que Malraux ou De Gaulle fossem sentar no banco de trás, feito com couro de elefante.
Mas até as obras de que não gostei me impressionaram pela beleza. E aí reside o problema, porque nenhuma delas, mesmo as mais bonitas, me pareceu ser mais do que isso. E a beleza é convencional (Orozco tem clareza disso, e não faz nenhuma apologia do fato em um vídeo que acompanha as obras). É a beleza do intrincado e do simétrico, e do cuidadosamente displicente. Ele gosta do casual e efêmero no mundo, mas nunca do decomposto. (Não aprendeu nada com a linha de fotografias que descende de Walker Evans.) Não havia um único objeto no qual eu achasse que podia perceber algo além de uma intuição de ordem ou equilíbrio: alguma coisa mais difícil e incontrolável, algo que se esquivasse da instigação original da peça, empurrando a obra para uma direção que o artista só compreendesse parcialmente.
Sei que parece estranho ficar procurando esse tipo de coisa. Mas, para mim, elas são naturais. Orozco, repito, é um colecionador do refugo das ruas. Ele sabe que, na arte do século XX, a tática de encontrar e colar foi usada para servir a um romantismo não apologético, cheio de paixão pelo que é desprezado e rejeitado, ou, de maneira igualmente produtiva, motivada por uma espécie de ódio louco ao lixo salvo da extinção. A extinção, diziam as colagens de Ernst e Schwitters, é o que a modernidade merece. As mercadorias são as coisas mais terríveis e dignas de pena que a humanidade já produziu, porque foram feitas para não durar. Orozco sabe de tudo isso, e ele inclusive acena ocasionalmente para o sarcasmo e a generosidade que caracterizam as melhores colagens.
Na exposição, havia um trabalho feito com palavras, intitulado Óbitos, formado pelos títulos de necrológios publicados no jornal The New York Times: “Um mestre moderno do clichê”, “Um poeta de visão profunda e misteriosa”, “Excêntrico até para a Inglaterra”, “Construiu um império com otimismo”. Orozco, outra vez, me impressiona por se manter distante das banalidades que recolhe e junta. As tolices passam por ele e jamais o afetam; não há nunca o perigo de que comentários tolos como esses e outros se imiscuam em sua linguagem particular (e, por isso mesmo, nas nossas).
Numa palavra, para Orozco, o cotidiano é uma casa do tesouro; ou será a arte a casa do tesouro, na qual só se admitem os detritos do mundo, sob pena de sublimação? Em Orozco, o cotidiano é pretensamente artístico. Sabe-se, desde o momento em que ele começa a colecionar pneus rasgados e estourados que encontra nas estradas do México, que um dia eles serão arrumados no chão de uma galeria – borrifados com alumínio, à maneira de Richard Serra – como se fossem preciosos fragmentos queimados do Teotihuacán. Orozco poderá retrucar-me e perguntar se o que estou querendo não é um clichê requentado do filme Week-end, de Jean-Luc Godard, ou do castelo inflável de Kaprow. Minha resposta é não. Mas ainda acho possível evitar o portentoso à la Beuys sem cair no lixo de bom gosto. Não estou dizendo que é fácil.
Há razões históricas para isso. O Lintels, por exemplo, me fez pensar em outra instalação na qual pontas e pedaços de escombros são pendurados em cordas que atravessam uma sala: o grande 16 Ropes [16 Cordas] de 1984, de Ilya Kabakov, que tive a sorte de ver recriado, posteriormente, em Boston. Nunca me esquecerei do horror e da comédia naquela exposição, com seus trapos do entulho da ex-União Soviética parecendo varrer todo o páthos de um totalitarismo agonizante para dentro de nossa pele, de maneira indelével, à medida que procurávamos aos tropeços achar uma saída. Entre o riso desesperado de Kabakov e o louco emaranhado de Schwitters havia um caminho sem obstáculos. Eram esses os termos, as ambições, da colagem – que, como meio de expressão para a grande arte, é hoje coisa do passado. Feliz era o fazedor de colagens para quem os entulhos – dejetos, obsolescência, a produção de massa de Ford ou de Brejnev – ainda podiam parecer históricos, no sentido de poderem ser usados para contar a história de uma cultura que rumava, célere, para o progresso ou o abismo. Orozco sabe que isso não é mais possível. Todo louvor a ele por não falsificá-lo.
Este é um estranho momento nas artes visuais. O predomínio da fotografia colorida em grandes dimensões, feitas para a parede da galeria, e do curta-metragem de arte cada vez mais finamente calibrado está mudando o equilíbrio de forças na vanguarda artística. Voltou à tona a intensificação da estética – e de um tipo imprudente, talvez ditatorial, que obviamente descarta a modéstia de Orozco.
A lembrança de um filme de cinco minutos, de Philippe Parreno, que eu tinha visto na Serpentine Gallery poucos dias antes, não me saiu da cabeça enquanto percorria a Tate Modern. O filme intitula-se Invisibleboy; se bem entendi, os cinco minutos de Parreno pareciam tratar da entrada de um menino chinês na ordem psíquica da globalização; a ambição, com certeza, não podia ser maior. Esse filme é representativo do que chamo de “alguma coisa mais difícil e incontrolável”. E além de tudo é desagradável e desconcertante – brilhante, incompreensível, envolvente, sentimental, profundamente tocante. A arte de Orozco já tem a aparência de uma reação contra essa nova onda de fantasias perigosas. O que é uma boa razão para ir vê-lo.
A propósito, há uma obra na exposição que me fez parar: foi quando tive de medir minha altura em relação à caixa de aço parada na qual me convidaram a entrar, e fiquei pensando se valia a pena correr o risco de “participar”. A obra, Elevator [Elevador], condensa de modo mais pesadamente visível o passado recente da arte: o minimalismo encontra Kienholz com uma pitada de ferrugem de Serra. A ameaça, diz a obra, é um efeito de segunda mão. As ruínas do capitalismo são do interesse de outros artistas. Mais uma vez, admiro-lhe a honestidade. Mas esse objeto, tirante o coração de terracota, me pareceu ser a melhor coisa da exposição de Orozco.
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