Em trinta anos, Kakay defendeu dois presidentes da República, um vice, cinco presidentes de partido, quarenta governadores, dezenas de parlamentares e uma penca de ministros FOTO: J.R. DURAN_2011
O protetor dos poderosos
Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, faz o impossível para que Brasília funcione direito
Daniela Pinheiro | Edição 62, Novembro 2011
Numa manhã de outubro, o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro tocou a campainha da casa do ministro Orlando Silva, dos Esportes, no Lago Sul, em Brasília. O sol mal surgira no horizonte, mas como o assunto urgia, dispensaram o café da manhã. Silva seria ouvido à tarde, na Comissão de Turismo e Desporto da Câmara, a respeito da acusação de receber uma caixa de dinheiro de propina, na garagem do Ministério.
“Tem chance de ter grampo?”, perguntou o advogado, sentado num sofá.
“Não, não há hipótese”, disse o ministro.
“Então vamos pro pau”, disse Almeida Castro, anunciando três medidas prementes.
Segundo o advogado – que conhece de cor quase todo o regimento interno da Câmara e do Senado –, a primeira providência era operar para que os correligionários de Orlando Silva marcassem o depoimento para o mesmo horário da sessão no plenário. Assim, a fala do ministro não seria televisionada pela TV Câmara, o que diminuiria o exibicionismo de parlamentares da oposição no interrogatório na comissão.
O segundo objetivo era pôr na imprensa versões favoráveis do testemunho do ministro. Por ter mais tranquilidade e juridiquês do que o cliente, o advogado se prontificou a dar as entrevistas.
Por fim, o ministro deveria pedir a Roberto Gurgel, o procurador-geral da República, que o ouvisse em juízo. A ideia é que Silva fosse intimado a esclarecer os fatos por meio de ofício, sem alarde. O advogado tinha em mente o que ocorrera quando veio à tona o fantástico enriquecimento de Antonio Palocci: depois das explicações, a denúncia fora arquivada sem que se abrisse um inquérito – apesar de ele ter perdido o cargo de ministro.
Antônio Carlos de Almeida Castro é criminalista, está acostumado a falar com o júri. Foi nessa condição que orientou Orlando Silva a se ater às denúncias, em vez de tentar desqualificar os acusadores. Os ataques ficariam por conta de deputados de seu partido, o PCdoB. E o principal: o ministro deveria dar atenção total à plateia. “O senhor já tem o apoio da presidenta Dilma, não se preocupe em falar para ela ou para o público em geral”, disse-lhe. “Fale para os deputados, porque eles sabem como funciona um Ministério, e é com eles que o senhor deve criar empatia.”
Quando a mãe do ministro telefonou, o advogado comentou com um assessor: “Esse é o telefonema mais difícil de atender numa hora dessas.”
Quem contrata Kakay – apelido que Almeida Castro cunhou para si mesmo, inventando até a grafia – compra um pacote raro no mercado jurídico. Ele faz a defesa técnica e atua também como assessor de imprensa, perito em imagem e especialista em regimento do Congresso, além de ser frequentador de Comissões Parlamentares de Inquérito, íntimo de ministros e chefes de partido, interlocutor de jornalistas respeitados, amigo de empresários biliardários expert e nos códigos do poder brasiliense.
Em trinta anos de profissão, ele contou ter defendido dois presidentes (José Sarney e Itamar Franco), um vice (Marco Maciel), cinco presidentes de partido (simultaneamente), quarenta governadores (em períodos diversos), dezenas de parlamentares (atualmente são quinze senadores) e uma penca de ministros (no governo de Fernando Henrique Cardoso foram treze; no de Luiz Inácio Lula da Silva, três; no de Dilma, dois). No mês passado, acrescentou à freguesia um ex-governador, um presidente de Assembleia Legislativa e um juiz de Tribunal de Contas estadual.
A capilaridade prossegue na iniciativa privada. De seu portfólio constam empreiteiras (Andrade Gutierrez, Odebrecht, OAS), bancos (Sofisa, BMG, BMC, Pine), banqueiros (Daniel Dantas, Salvatore Cacciola, Joseph Safra), empresários de renome internacional e milionários provincianos, todos num momento ou outro enrolados com a Justiça. Como cereja no bolo, às vezes advoga para gente com pouco ou nenhum dinheiro. Faz isso quando a causa lhe toca, uma autoridade lhe pede ou quando acha que um réu está sendo injustiçado.
Foi assim que, há pouco, passou a representar de graça três estudantes da Universidade de Brasília, processados por um professor que se sentiu ultrajado ao ter seus métodos de ensino questionados. Também assumiu a defesa de Adriana Villela, acusada de tramar o assassinato do pai, o ex-juiz José Guilherme Villela, do Tribunal Superior Eleitoral, da mãe e da empregada da família. Entrou no caso por ter achado absurdos os erros da polícia na condução do inquérito.
Aos 54 anos, Kakay parece um personagem de capa e espada. Cultiva um cavanhaque largo, basto e semigrisalho. Graças a dois implantes capilares, alardeia com agitação a juba de cachos revoltos, mal domados por creme ou por uma tiara. Um acidente de carro na juventude lhe rasgou uma cicatriz no rosto e fez com que perdesse parte da visão do olho direito. Mas é mais fácil imaginá-lo como um prussiano ferido na Batalha de Valmy ao defender a aristocracia. (Foi operado na Rússia, passou a enxergar melhor.) Quando caminha com o paletó pendurado no ombro, como um manto, e gargalha de forma estentórea e libertina, lembra um vilão de Dumas père.
Em um ambiente de togas comportadas, ternos invariavelmente escuros e gravatas no máximo vermelhas, Kakay trouxe novos – e ululantes – matizes ao dress code jurídico. Seus ternos jamais são triviais. Se forem risca de giz, a risca é azul-turquesa. Se a gravata for estampada, a paleta é de rosáceas góticas. Se o sapato é de bico fino, o seu fura uma bola de futebol.
Na vida civil, usa, ou já usou, boina, pochete, bandana, chapéu, boné, suspensório liso e colorido, óculos de aro berrante, abotoaduras, calça boca de sino,cintura Saint-Tropez, jaquetões de quatro e seis botões, gravatas de larguras e comprimentos infinitos, pulseiras, anéis, colares de conta, tiaras, echarpes, camisetas com, sem e de manga comprida, relógios de tamanhos e formatos distintos, além de tecidos listrados, estampados, quadriculados, texturizados e até milimetricamente rasgados.
“Eu já tive trinta coletes!”, bradou ao fazer as contas, estupefato. Mais impressionante que a abastança do vestuário é o desprezo de Kakay pela opinião alheia. Veste-se e vive como quer: com excesso, chamando atenção e sem remorso.
Talvez por isso seja reconhecido em restaurantes, aeroportos e mesmo por brasileiros fora do país. A proximidade com clientes poderosos o pôs sob holofotes permanentes. E o enriqueceu. O processo não começou ontem. “A mídia me fez petista”, disse. “Voto no PT, mas não sou partidário. Os mal-intencionados insistem que bombei no governo Lula por causa das minhas relações pessoais. Mas há vinte anos advogo para todo mundo.”
Advoga e pronuncia frases imagináveis apenas nos bordões de personagens de Jô Soares: “Eu amo o Sarney”, “Ai, que saudade do ACM”, “Ninguém aqui vai falar mal do Zé Dirceu”. “Meus clientes viram meus amigos.” E explica por que é um bom advogado: “Eu gosto de gente, eu tenho paciência, eu sei ouvir, eu me interesso e sou jeitoso com as pessoas.”
Quando é sua vez de falar, conta casos que expõem alguma fraqueza, o que cria empatia com o interlocutor. A história seguinte, para compensar, é como conseguiu algo incrível graças a sua cancha e audácia. Não se intimida nunca, nem quando relata em detalhes quão cafona estava, no início da carreira, no aniversário de um ministro: calça branca e camiseta com uma garbosa estampa do Piu-Piu. Ou quando viajou de avião pela primeira vez, aos 20 anos, e dispensou o lanche por achar que era pago. Ou sobre sua paixão por karaokê.
É de um hedonismo retumbante, o que também serve de ímã para juntar uma plateia privada. Seus assuntos de interesse são vinho, viagens e poesia. Costuma dizer que ficou sócio do Piantella – palco de conchavos e negociatas brasilienses desde a ditadura – porque ficava mais barato beber no próprio restaurante. Ao menos uma vez por dia, não importa a situação, declama versos de um tio, que usava o pseudônimo de “Leão de Formosa” e tem um livro de poesias publicado pela família.
Com uma porta de quase 7 metros de altura em madeira de demolição, e a enorme escultura de um rinoceronte na entrada, a casa de Kakay tem 1 500 metros quadrados e três pavimentos. Uma vez, um amigo paulista que o visitava ficou encantado com o clube que admirava da varanda. “Clube? É meu quintal!”, respondeu Kakay. Quando a área, no Lago Sul, era um terreno baldio, ele soube de antemão que o projeto de uma ponte vizinha fora aprovado. Arrematou o terreno por uma pechincha.
Mobiliada sem palpites de arquitetos ou decoradores, a casa não tem um só canto vazio. São dezenas de quadros, esculturas, objetos de arte, livros e móveis. Há preciosidades de Sonia Ebling, Manabu Mabe, Vik Muniz, Victor Brecheret e dezenas de obras de outros artistas plásticos, nacionais e estrangeiros, compradas em viagens ou leilões. Em quase todos os vidros e espelhos, veem-se decalques com estrofes de poemas ou frases de escritores famosos. Ficam no subsolo uma adega de dois andares, com 4 mil garrafas de vinho, e uma salinha com um computador para controlar a entrada e a saída dos rótulos.
Eram onze da manhã e Kakay estava no escritório, decorado com inúmeras fotos (ele e Lula, ele e Sarney, ele e ACM, ele e Roberto Carlos) e uma gigantesca obra cilíndrica, de um artista plástico mineiro. Usava uma calça preta, sandália Crocs da mesma cor e uma camiseta amarelo-canário com o símbolo de seu time, o Cruzeiro.
O celular tocou, ele checou quem chamava e atendeu com a voz entusiasmada. “Meu governador preferido, tá bom?”, disse. Dois minutos depois, outra chamada. Era o senador Zezé Perrella, cartola do Cruzeiro, acusado, entre outros crimes, de enriquecimento ilícito. Antes de desligar, o advogado brincou: “Se o Cruzeiro for rebaixado, eu perco seu prazo, hein Zezé?”
Um secretário-motorista-mordomo trouxe água em uma bandeja de prata. Vidrado no computador, o advogado procurava informações sobre a crise no Ministério dos Esportes. E via elementos de racismo nas denúncias contra Orlando Silva. “Esse editorial do Estadão, hoje, pedindo a saída dele é o sinal de que os quatrocentões paulistas nunca engoliram a presença dele ali”, comentou.
Nascido em Patos de Minas, filho de um fazendeiro e uma dona de casa, Kakay morava com os quatro irmãos no melhor imóvel da cidade até o pai perder tudo em maus negócios. Nunca foi o primeiro nem o mais popular da classe, mas a lábia e a capacidade de entreter o colocavam no centro das atenções.
No 2º grau, abriu a porta de uma sala da escola por engano. Deparou-se com o diretor, um padre marista, fazendo sexo com uma aluna. Cruzaram os olhares e, no dia seguinte, foi chamado. Falaram amenidades sem tocar no assunto e, a certa altura, o padre lhe perguntou se ele tinha alguma ideia para melhorar a escola. O jovem mencionou aulas de basquete e aproveitou para sugerir que gostaria de fazê-las no horário das de química. Manipulara a mazela secreta de um poderoso, mas nunca mais teve que lidar com a tabela periódica.
Aos 18 anos, foi morar em Goiânia, onde um irmão lhe alugara um quarto em um fundo de um barracão de zinco, que tinha o sanitário do lado de fora. Passava os dias no triângulo cursinho-barzinho-namoradas. Escrevia tantas cartas para uma menina em Belo Horizonte que ficou conhecido nos Correios. Um dia, na cara de pau, perguntou ao supervisor da empresa se poderia pegar carona no avião da estatal, junto com as cargas, para visitar a garota. Recebeu sinal verde e passou a viajar de avião todas as semanas, de graça.
Nessa época, apaixonou-se por uma cigana que leu sua mão no meio da rua e disse que ambos “tinham um destino juntos”. Morou com ela e outros zíngaros por quatro meses, até o anúncio de que ela estava grávida. Não estava. Logo depois, um tio, dizendo que ele estava “muito errante”, acolheu-o com a condição de que fosse aprovado no vestibular de direito da Universidade de Brasília. “Foi a única vez que estudei na vida”, contou. “Eu não tinha grana para nada. Namorava uma, vamos dizer assim, não muito bonita, de segunda a quarta, para ficar com o carro dela de quinta a domingo.”
Pouco antes de se formar, a mãe lhe arrumou um emprego no Banco Real. Na mesma semana, ele começou um estágio, ganhando seis vezes menos, no escritório de José Eduardo Alckmin, que hoje trabalha para o PSDB. Na primeira vez que teve de discutir honorários, decidiu pedir 100 mil em moeda da época – quase dez vezes mais do que Alckmin cobraria. Mas quando o cliente perguntou o preço, ele improvisou: “Normalmente, nesse caso, eu cobro 1 milhão.” E ficou esperando a resposta em silêncio. O cliente perguntou se seria possível dividir o valor em três prestações. “Claro que não!”, protestou Kakay. E recebeu tudo.
Com dinheiro, o advogado diz ser pragmático: “Tudo o que não consigo beber nem comer, eu invisto.” Além da casa em Brasília, tem um apartamento de 400 metros quadrados de frente para o mar, em Ipanema, outros imóveis e participação em várias empresas. Dentre elas, há uma firma especializada na instalação de lombadas eletrônicas e radares de trânsito – com contratos com o governo federal – e a Divitex, responsável pela construção de um loteamento no sítio do Pericumã, em Brasília. Seu sócio na empresa, José Sarney, costumava passar ali os finais de semana.
Recentemente, Kakay comprou um cemitério em Belo Horizonte. Explicou por quê: “É o melhor investimento para retorno imobiliário hoje. Você compra em alqueire e vende a terra em palmos.” Um amigo arrisca que seu patrimônio ultrapasse 100 milhões de reais.
No primeiro governo Lula, o banqueiro Daniel Dantas envolveu-se numa briga de morte pelo naco mais lucrativo da telefonia, chegando a contratar a empresa de espionagem Kroll. A certa altura, chamou Kakay. A Polícia Federal fez uma batida no escritório do banqueiro e descobriu uma nota fiscal de 8 milhões de reais, relativos aos honorários do advogado. Outros dois advogados de Dantas no caso ganharam, respectivamente, 1 milhão e 3 milhões de reais. Especulou-se que Kakay encaminharia o excedente da remuneração que recebeu à cúpula do PT. “Isso é ridículo, e eu não tenho que dar satisfação dos meus honorários para ninguém”, disse-me. “Aliás, acho bom que isso tenha vazado porque ficam sabendo o meu preço e não tentam pechinchar.”
Ele foi casado com uma filha do falecido senador Petrônio Portella, com quem teve dois filhos, o arquiteto Cícero e Vinícius, estudante de direito que publicou um romance. Depois, juntou-se com uma professora de sociologia da Universidade de Brasília. E há treze anos vive com a jornalista Valéria Vieira, amiga de infância e madrinha de seu primeiro casamento.
Ela é o contrário de Kakay: discreta, elegante e dócil, tem um olhar entre misterioso e melancólico. Veste-se com cores sóbrias, corta o cabelo no estilo Chanel e esconde o logotipo de suas bolsas caras. Fluente em inglês e francês, deu aulas de culinária na Europa. É mãe de Érico, de 6 anos, um menino que acompanha os pais em programas adultos sem reclamar. O casal fez fertilização in vitro com o foragido Roger Abdelmassih, de quem Kakay ficou amigo.
Às quatro da tarde, o advogado chegou ao escritório, num centro comercial de Brasília. Um homem gordo o esperava na recepção, sentado abaixo de uma tela gigante de Vik Muniz. “Ô, meu querido, como vai o nosso Amapá?”, disse Kakay, efusivamente. Trabalha apenas com outros dois jovens advogados, o que permite que tenha controle do andamento dos processos. Só aceita casos, ele diz, por indicação.
Comparado a sua casa, o escritório é um closet. Na sala, mal cabe sua mesa. Uma portinhola contígua dá para um bar com balcão de madeira, com beirada de couro capitonê preto, e cadeiras altas. Ali recebe os clientes, ou celebra as vitórias com champanhe. Uma vez, um deles se mostrou chocado de ele ter um bar no local de trabalho. Kakay respondeu que também estava chocado: iria derrubar as paredes e transformar tudo em bar.
No tribunal do júri, é tido como um orador minucioso e melodramático. Em 1993, acompanhei o julgamento de uma gangue de jovens que matara a pancadas o garoto Marco Antonio Velasco, em Brasília. Excepcionalmente, Kakay estava ao lado da acusação e pediu pena máxima para os agressores. Por várias vezes, emocionou os jurados com histórias da vida cotidiana e poesias, levando-os às lágrimas. Foi o primeiro julgamento transmitido ao vivo pela televisão. “Foi a única vez que advoguei com a imprensa a meu favor. Tudo que eu falava era lindo e inteligente”, brincou.
Pelo que faz e tem, ele é esnobado por alguns colegas de profissão. É a turma que insiste em dizer que ele “não entrou no eixo Rio–São Paulo” ou repete que o seu maior mérito seria o “embargo auricular” – quando o advogado conversa pessoalmente com o magistrado e sabe-se lá o que acerta com ele. “Eu não respondo a essas maldades”, disse Kakay. “É evidente que, como todo advogado, procuro distribuir memoriais e conversar com todos os juízes e ministros, mas jamais falo sobre um caso.”
O que ocorre, explicou, é que o fato de atuar há três décadas em Brasília faz com que conheça pelo avesso como funciona o poder. Durante a CPI do INSS, por exemplo, precisou de um habeas corpus para um advogado gaúcho que chegaria algemado em Brasília por ordem da deputada Cidinha Campos. Tinha menos de duas horas para consegui-lo, e nenhuma documentação para juntar ao pedido. Foi ao ministro Celso de Mello, do Supremo, apenas com a história absurda de uma parlamentar decretar prisão. Saiu de lá com o que queria. “Conheço o ministro há muitos anos e ele sabe que eu não inventaria uma história para soltar alguém”, afirmou.
No auditório da faculdade IESB, em Brasília, Kakay abriu sua palestra para estudantes de direito, intitulada “A advocacia criminal”, com um poema do tio e, por mais de uma hora, expôs sua visão sobre os meandros da profissão. Ressaltou o valor do contato sistemático e pessoal com o cliente, da necessidade de uma “formação intelectual e humanística profunda”, de ousar em nome do réu e de ter um bom relacionamento com a imprensa.
Ao longo dos anos, de fato, Kakay desenvolveu um acurado canal de comunicação com a mídia. Fala com colunistas, repórteres, diretores de redação e patrões, a quem municia com informações que interessam a eles e a si próprio. Quando precisa se posicionar publicamente sobre um caso, pede que o entrevistem ou que publiquem seus artigos, no que quase sempre é atendido.
Quando o vazamento de uma notícia negativa é inevitável, ele se antecipa e o faz diretamente a um repórter. Assim, a notícia é publicada com a sua versão e se torna, em boa parte das vezes, banal. Durante a defesa de Salvatore Cacciola, ele soube que a revista IstoÉ faria uma reportagem de capa afirmando que o banqueiro havia fretado um jatinho e pago as despesas do principal assessor do presidente do Banco Central, Francisco Lopes, suspeito de lhe passar informações privilegiadas. Ele ligou para um jornalista da Folha de S.Paulo e detalhou o caso. “A IstoÉ já tinha até a cópia da nota de quantas vodcas o cara tinha tomado no hotel, mas eu dei o furo para a Folha como se fosse sem importância”, contou. “Depois, a repórter da IstoÉ me disse que a nota na concorrência havia derrubado a matéria que planejara”, contou.
Ao final da palestra, perguntaram-lhe como era defender alguém que sabia ser culpado. “Deus me deu a sorte de só ter cliente inocente”, disse Kakay, fazendo a plateia e ele próprio estourar em risos. Retomou a seriedade e disse não ter crise de consciência: “Se é uma pessoa que durante cinquenta anos teve uma vida exemplar, correta, justa, boa, e num átimo ele cometeu uma loucura, isso é um drama existencial terrível. Você tem que entender as razões pelas quais o sujeito matou e encontrar uma defesa técnica.”
E quando se trata de crimes de colarinho branco? “O raciocínio é o mesmo. É preciso garantir o direito à ampla defesa e à presunção de inocência”, falou. Ele é contrário à prisão em casos de crimes financeiros. “Toma tudo o que o cara tem aqui, fora do país, tudo.”
Os alunos pareciam hipnotizados pela fala. Ele se disse espantado com o regozijo nacional provocado pela prisão de um rico. “As pessoas não querem saber se o cara foi preso sem provas ou se passaram por cima das leis para fazer aquilo”, disse. “Mas deviam se preocupar porque, um dia, pode ser um parente, ou ele próprio, que esteja às voltas com uma arbitrariedade.”
No começo de outubro, Kakay convidou catorze pessoas, entre familiares e amigos, para passar uma semana na Provence, no sul da França. Alugou o Domaine du Valin, uma propriedade do século XIX – com oito suítes, piscina e campo de lavandas – que fica ao pé do castelo onde morou o marquês de Sade, na cidade de Lacoste. “É mais barato vir pra cá com esse povo todo do que ficar hospedado no Hotel Castro’s em Goiânia”, brincou.
A programação incluiu passeios pela região e uma maratona enogastronômica em restaurantes estrelados do Guia Michelin, onde eram ouvidas odes barulhentas e diárias ao aniversariante. Nos oito dias de viagem, recebeu presentes diferentes todas as noites, cantaram-lhe parabéns no almoço e no jantar, e ele se emocionou todas as vezes como se fosse a primeira. Nos encontros, as pessoas cantavam, choravam, declamavam poesias, compunham repentes, abraçavam-se, riam – e derrubavam uma dezena de garrafas de vinho tinto. A conta de uma das refeições custou 2 250 euros. Kakay tirou o cartão de crédito, digitou a senha e mal esperou o canhoto da máquina.
Na primeira noite, durante o jantar na casa, todos choraram, comovidos. Foi quando Kakay tomou a palavra na cabeceira da mesa. “Quero fazer um brinde para mim mesmo!”, gritou, segurando uma taça com a voz embargada. “Eu sou um puta advogado! Não sou bilionário como o finado Steve Jobs, mas tenho vocês, que são tudo para mim!”, exclamou.
No dia seguinte, o grupo almoçava num hotel-spa em Gordes, cidade medieval no topo de uma colina, quando Kakay recebeu, pelo celular, o e-mail de um executivo do Grupo Casino. A mensagem o convocava para uma reunião de urgência, em Paris. O Casino tem uma disputa, na Justiça brasileira, contra a fusão do Grupo Pão de Açúcar – do qual era controlador – com o Carrefour.
Em disputas jurídicas de peso, corporações multinacionais costumam contratar de uma vez vários escritórios brasileiros. Assim, impedem seus opositores de contar com os melhores quadros. No caso, Kakay era um dos escritórios contratados pelo Casino. “Eles querem alguém para atuar nos tribunais superiores, em Brasília”, explicou-me. “Isso é 100% meu negócio. Sou contra essa coisa de contratar escritório de ex-ministro, de filho de ministro. Tento convencê-los a contratar só eu.” Ele tem certeza de que a causa será vencida pelo Casino.
Do filho pequeno aos cunhados, a notícia de que ele teria de abandonar a viagem provocou reclamações à mesa. “Essa é uma característica do advogado criminal”, disse Kakay. “Você sabe que a coisa não é urgente, mas é a urgência do cliente. Ele quer te ver, te ouvir. Você tem várias causas, mas ele tem uma. E é a da vida dele.” Dali, o grupo foi passear na cidade, tirar fotos e comprar lembranças.
De volta à casa, Kakay quis ver o pôr do sol no jardim. Abriu uma garrafa de champanhe, inebriou-se com o aroma de lavanda e orvalho, e pôs-se a falar sobre o mensalão. “O Zé [Dirceu] virou a Geni nacional. Ele não tem como voltar para a vida política, mas só não será absolvido se o STF não tiver coragem”, falou. Segundo ele, em nenhum país civilizado a tese da responsabilidade objetiva – quando o chefe é punido pela ação de subordinados – é aceita.
“Eu vou falar uma coisa séria”, disse pausadamente. “O procurador Antonio Fernando [de Souza, que denunciou o mensalão] disse para o melhor amigo dele que não tinha um elemento que incriminasse o Zé Dirceu. Não tem um telefonema, não tem um papel, não tem uma gravação, nada. Ele disse que só fez aquela denúncia porque a sociedade exigia isso. Isso é muito grave.”
Houve um longo silêncio e ele passou a falar sobre o STF. “O Supremo não está em seus melhores dias”, disse. A razão, segundo ele, está na TV Justiça. Ele se lembrou do episódio em que um ministro, apesar de já ter seu voto conhecido, lia seu relatório havia três horas. Nelson Jobim interrompeu o colega para dizer se ele poderia ser mais breve porque o plenário já sabia sua posição. “Vocês sabem, mas os telespectadores, não”, teria respondido o ministro. “Então, imagina o que é isso!”, disse Kakay irritado. “Aqui na França, na terra da liberdade, eles tentaram fazer isso e cortaram a ideia dois meses depois. É absurdo você falar para um juiz que está preocupado com o que o telespectador vai pensar.”
As luzes do jardim estavam apagadas e não se enxergava um palmo diante do nariz, mas o breu não o incomodava: “Com a inoperância do Legislativo, o STF passou a legislar. Veja, é o Tribunal quem tem que decidir sobre demarcação de reservas indígenas? Mas o que é pior: o STF legislando ou o governo editando Medida Provisória?”, perguntou.
Havia dois dias, o celular de Kakay parara de funcionar. “Alguém do Senado me ligou três vezes, mas o PABX de todos os gabinetes é igual! E eu aqui perdendo cliente!”, brincou no carro a caminho de Aix-en-Provence. Sentado no banco de trás de uma van, o advogado cantava músicas de Roberto Carlos, declamava poesias, comentava cada árvore ou montanha da paisagem, entremeando histórias de sua atuação jurídica.
Mais uma vez, riram, beberam, brindaram e cantaram. Parte do grupo foi jogar em um cassino e a outra foi conhecer o ateliê de Paul Cézanne.
No dia seguinte, às nove da manhã, no trem para Paris, Kakay ainda estava sonolento. Conversara e bebera até as seis da manhã. Concentrou-se em ler e responder e-mails e mensagens pelo celular. Antes de ir ao vagão-restaurante para um lanche, comentou: “Acho que daqui a pouco vai ter mais um escândalo no Brasil.”
No meio da viagem, virou-se para a janela, colocou grandes óculos escuros Armani, cobriu a cabeça com uma echarpe roxa e dormiu. Ao desembarcar na Gare de Lyon, era aguardado por um jovem oriental, elegante em um terno escuro. Dias depois, Kakay disse que o jovem seria nomeado em breve presidente de uma grande empresa que se instalava no Brasil.
Depois da reunião com os representantes do Casino, e de almoçar no restaurante do Hotel George V, Kakay foi para seu local preferido em Paris: o Café de Flore, no Boulevard Saint-Germain. Ali, foi chamado pelo nome por garçons, folheou El País e bebericou champanhe Moët & Chandon sentado de frente para a calçada. De vez em quando, anotava algo. Há anos, prepara um livro de contos sobre suas tardes no Flore.
Até dezembro, pretende fechar a compra de um imóvel de 150 metros quadrados num prédio das imediações, em cima da livraria La Hune. Interessou-se por outro na rue du Dragon, onde um edifício inteiro havia sido comprado por brasileiros, mas quis distância dos patrícios.
Juntou-se à mesa um casal de empresários de Brasília, que visitava a filha e uma amiga dela. Quando soube que essa amiga era neta do ex-ministro Ibrahim Abi-Ackel, Kakay exclamou: “A burguesia brasileira cabe num Fusca! Seu avô substituiu meu ex-sogro no Ministério da Justiça!”
O grupo queria jantar no restaurante Les Ombres, onde se recomenda fazer reserva com semanas de antecedência. Telefonou-se e confirmou-se que o restaurante estava lotado. Passaram-se dez minutos, Kakay desapareceu brevemente, voltou e comunicou a todos: “Temos reserva para as 10 horas no Les Ombres.” Em seguida, ofereceu o telefone da pessoa que lhe arruma uma mesa a qualquer hora em qualquer restaurante da cidade.
No telhado do Quai Branly, o Les Ombres é uma caixa de vidro que faz com que a Torre Eiffel pareça estar dentro do salão. Kakay prevenira os amigos de que levaria um cliente para o jantar. Era o libanês Samir Traboulsi, que é considerado um dos maiores colecionadores de arte moderna da Europa. Ele também é conselheiro de grandes grupos industriais, sobretudo na área de telefonia móvel. Também se diz que esteve envolvido no uso de informação privilegiada, que sua filha é uma escritora de renome e que foi condecorado com a Légion d’Honneur.
Segundo Kakay, Traboulsi lhe apresentara “dois bons clientes” e se mostrara interessado em conhecer alguns empresários brasileiros. “Hoje, esse pessoal quer interlocução com as empresas, não com o governo”, disse. “Se eu puder, eu apresento, não me custa nada, mas não quero me meter com isso, não.” Contou que, uma vez, apresentou dois empresários que fecharam um grande negócio. Seu irmão achava que ele deveria ter ganho “pelo menos 5 milhões” pela conexão. “Eu não faço”, ele disse. “Porque, se apresentando uma pessoa você ganha isso, na terceira vez você está rico. E aí perde o rumo na vida. Eu quero e gosto de advogar.”
Samir Traboulsi reclamou do serviço, do vinho, do restaurante – “armadilha para turistas” – e de ser atendido por um garçom negro. Kakay estava constrangido. Ao longo da conversa, o milionário falou sobre suas casas em Paris, Londres e Monte Carlo, onde ofereceu um jantar para Paulo e Sylvia Maluf anos atrás. Segundo ele, o casal só ficava olhando para o relógio esperando a hora de ir ao cassino, dispensou o Château Lafite que ele havia escolhido e exigiu Château Pétrus. Kakay mencionou-me ter um amigo que só toma Pétrus. “Uma vez, jantamos em três e a conta foi de 120 mil reais, acredita?”, disse.
Traboulsi contou que foi José Maurício Bustani, ex-embaixador brasileiro na França, quem lhe falou de Kakay. “Perguntei-lhe quem era o melhor advogado do Brasil, ele me disse que era o Kakay e, no dia seguinte, peguei um avião para conhecê-lo no Brasil”, afirmou. Discretamente, Traboulsi levantou para pagar a conta e Kakay foi alertado pelo empresário brasiliense. “Não sou pobre soberbo, não: deixa pagar”, disse, rindo. À uma da manhã, o advogado voltou sozinho ao Café de Flore. No dia seguinte, retornou à Provence para reencontrar a família.
Uma semana depois, na fila de embarque do aeroporto de Brasília, uma senhora se aproximou. “Ei, você não é o Kakay?”, perguntou. Um homem que estava ao lado se antecipou: “É sim! O Kakay é mais conhecido que nota de 10 reais.” Ele ia a São Paulo para uma série de reuniões, agendadas no hotel onde se hospeda, o Emiliano. Ali, ele contou, os lençóis de seu quarto levam as iniciais de seu nome.
A crise no Ministério dos Esportes piorara. Orlando Silva havia atribuído a responsabilidade pelos convênios sob suspeita a seu antecessor, Agnelo Queiroz, agora governador do Distrito Federal. “Eu disse a ele para não fazer isso, aí é que o PCdoB vai fritá-lo mesmo”, comentou. Também achou um erro o ministro ir à Câmara para defender as obras da Copa do Mundo. “Ele foi massacrado. Por isso, digo sempre: ‘Cliente meu não fala, eu falo.’”
Em três semanas, Kakay publicara três artigos (na Folha, n’O Globo e n’O Estado de S. Paulo), participara de quatro programas de televisão, falara no Jornal Nacional, aparecera na capa de um jornal da OAB, dera duas palestras a estudantes de direito e atendera clientes em Brasília, São Paulo e no Piauí.
No instante em que Orlando Silva passou a ser o sexto ministro de Dilma Rousseff a deixar o cargo, Kakay estava no escritório conferindo a agenda. No dia seguinte, duas semanas depois de ter voltado da França, embarcaria com advogados e estagiários de seu escritório, com os respectivos cônjuges, para uma temporada de vinhos e restaurantes em Portugal.
No Palácio do Planalto, depois de pedir sua renúncia, a presidente Dilma disse ao ministro que ele ainda era muito jovem, e deveria cuidar de sua defesa. Orlando Silva disse a ela que seu advogado continuaria à frente do caso. Num torpedo, Kakay me contou o que aconteceria dali por diante: “Politicamente, a permanência dele era insustentável; mas, juridicamente, o caso é fácil. Na verdade, o processo agora toma um leito normal. Para advogar é melhor, mas perde a adrenalina que eu gosto.”
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