Desde o triunfo dos vândalos no Norte da África no fim do Império Romano, nada jamais pareceu tão súbito, incompreensível e difícil de reverter quanto a ascensão do Estado Islâmico ILUSTRAÇÃO: CHIP BOK EDITORIAL CARTOON_SOB PERMISSÃO DE CHIP BOK & CREATORS SYNDICATE. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS
O mistério do Estado Islâmico
A súbita ascensão do grupo terrorista no Oriente Médio ainda está longe de ser compreendida
Autor Anônimo | Edição 109, Outubro 2015
Ahmad Fadhil tinha 18 anos quando seu pai morreu, em 1984. Fotografias mostram um jovem relativamente baixinho, gorducho, de óculos grandes. Não era mau aluno – concluiu o ensino fundamental com nota boa –, mas decidiu abandonar os estudos. Embora sua cidade natal, Zarqa, na Jordânia, oferecesse emprego em fábricas de roupas e artigos de couro, ele optou por trabalhar numa videolocadora, onde ganhou dinheiro suficiente para fazer algumas tatuagens. Ingeria álcool, consumia drogas e se meteu em encrenca com a polícia. A mãe resolveu enviá-lo a um curso islâmico de autoajuda – ele ficou mais ajuizado e enveredou por um novo caminho. Ao morrer, vinte e dois anos depois, Fadhil havia lançado as bases para um Estado islâmico independente com 8 milhões de pessoas, controlando um território maior que a própria Jordânia.
A ascensão de Ahmad Fadhil – ou Abu Musab al-Zarqawi, como mais tarde ficou conhecido na jihad – e do Estado Islâmico, ou EI, o movimento que fundou, permanece quase inexplicável. O ano de 2003, durante o qual ele deu início às operações no Iraque, para muitos era apenas mais um, numa época marcada por novas empresas de internet e por um sistema de comércio global em lenta expansão – uma era banal, desprovida de qualquer forma de heroísmo. A fronteira da Síria com o Iraque apresentava-se estável, apesar da invasão do Iraque liderada pelos Estados Unidos. O nacionalismo secular árabe parecia haver triunfado sobre as forças tribais e religiosas mais antigas. Diferentes comunidades religiosas – yazidis, shabaks, cristãos, kakais, xiitas e sunitas – seguiam vivendo lado a lado, como vinham fazendo havia mil anos ou mais. Iraquianos e sírios usufruíam de renda, educação, sistema de saúde e infraestrutura melhores, bem como de um futuro aparentemente mais promissor do que a maioria dos cidadãos do mundo em desenvolvimento. Quem, pois, teria imaginado que um grupo concebido por um funcionário de videolocadora do interior da Jordânia arrebataria um terço dos territórios da Síria e do Iraque, destruiria tantas instituições históricas e – após derrotar a coalizão de forças militares de uma dezena dos países mais ricos do mundo – criaria um mini-império?
Narrar essa história é relativamente fácil, o difícil é compreendê-la. Ela começa em 1989, quando, inspirado por seu curso islâmico de autoajuda, Zarqawi partiu da Jordânia para “fazer a jihad” no Afeganistão. Ao longo da década seguinte, ele lutou na guerra civil afegã, organizou ataques terroristas na Jordânia – onde passou anos numa prisão – e, com a ajuda da Al-Qaeda, voltou ao Afeganistão para montar um campo de treinamento em Herat, no oeste do país. Foi expulso pela invasão de 2001, liderada pelos norte-americanos, mas o governo iraniano o ajudou a se reerguer. Então, em 2003 – auxiliado pelos legalistas pró-Saddam Hussein –, implantou uma rede de insurgentes no Iraque. Com ataques aos xiitas e a seus templos mais sagrados, conseguiu transformar uma rebelião contra as tropas norte-americanas numa guerra civil entre xiitas e sunitas.
Zarqawi foi morto num ataque aéreo dos Estados Unidos em 2006. Seu movimento, porém, por mais improvável que pudesse parecer, sobreviveu à gigantesca e repentina escalada das tropas norte-americanas no Iraque a partir de 2007: 170 mil homens a um custo de 100 bilhões de dólares ao ano. Em 2011, após a saída dos americanos, o novo líder do movimento, Abu Bakr al-Baghdadi, tratou de expandi-lo Síria adentro e de restabelecer sua presença no noroeste do Iraque. Em junho de 2014, o EI se apoderou de Mosul, a segunda maior cidade do Iraque, e, em maio de 2015, de Ramadi, também no Iraque, além da cidade síria de Palmira, ao passo que seus afiliados tomaram o aeroporto de Sirte, na Líbia. Hoje, trinta países, incluindo Nigéria, Líbia e Filipinas, abrigam grupos que se declaram parte do movimento.
A despeito de ter mudado de nome sete vezes, sob quatro líderes diferentes, o Estado Islâmico continua a tratar Zarqawi como seu fundador e a propagar grande parte de suas crenças originais e técnicas de terror. O New York Times se refere ao movimento como “Estado Islâmico, também conhecido como ISIS [Islamic State of Iraq and Syria] ou ISIL [Islamic State of Iraq and the Levant]”. Zarqawi também o chamava de “Exército do Levante”, “Monoteísmo e jihad”, “Al-Qaeda no Iraque” e “Shura dos Mujahidin”. (Ainda que conhecido pela sua capacidade de marketing, o EI raras vezes se importou com a coerência de sua marca.) Vou simplificar as muitas alterações de nome e liderança e me referir a ele como EI, embora o movimento com certeza tenha se modificado ao longo de seus quinze anos de existência.
O problema não está em relatar seus êxitos, e sim em entender como algo tão improvável se tornou possível. As explicações frequentes para a ascensão do EI – o ódio nas comunidades sunitas do Iraque,[1] o auxílio logístico prestado por outros Estados e grupos, as campanhas do movimento nas mídias sociais, sua liderança, as táticas, a gestão, o fluxo de receitas e a capacidade de atrair dezenas de milhares de combatentes estrangeiros – não bastam para formular uma teoria convincente que dê conta de tamanho êxito.
A britânica Emma Sky, que atuou como consultora no Iraque entre 2003 e 2010, escreveu The Unraveling: High Hopes and Missed Opportunities in Iraq [O Esclarecimento: Grandes Esperanças e Oportunidades Perdidas no Iraque], um relato matizado e muitas vezes divertido dos anos em que trabalhou no país, ilustrando o crescimento da raiva entre os sunitas. A autora mostra como as políticas norte-americanas, tais como a des-baathização[2] de 2003, promoveram a alienação dos sunitas, e como isso se exacerbou com as atrocidades cometidas por milícias xiitas em 2006 (diariamente, nas ruas de Bagdá, eram abandonados cinquenta corpos com o crânio perfurado por furadeiras elétricas). Sky também explica as medidas para reconquistar a confiança das comunidades sunitas durante o reforço das tropas americanas em 2007, e como o primeiro-ministro do Iraque, Nouri al-Maliki, mais uma vez se afastou dessas mesmas comunidades após a desocupação em 2011, ao prender líderes sunitas e agir de forma discriminadora e brutal, dispersando suas milícias.
Contudo, muitos outros grupos insurgentes pareciam estar em melhor posição que o EI para se tornar o veículo dominante da “ira sunita”. De início, os sunitas no Iraque tinham muito pouca simpatia pelo culto à morte promovido por Zarqawi e pela imposição, por parte de seu movimento, de códigos sociais semelhantes aos dos primórdios da Idade Média. A maioria ficou horrorizada quando ele explodiu o quartel-general da ONU em Bagdá; quando divulgou uma gravação em que, pessoalmente, serrava a cabeça de um civil americano; quando mandou pelos ares o grande santuário xiita em Samarra e matou centenas de crianças iraquianas. Depois que Zarqawi articulou três bombardeios simultâneos a hotéis jordanianos – matando sessenta civis numa festa de casamento –, os principais líderes de sua tribo jordaniana e seu próprio irmão assinaram uma carta pública de repúdio aos seus atos.
O jornal inglês The Guardian apenas dava eco a esse sentimento quando, no obituário de Zarqawi, concluiu: “Em última instância, sua brutalidade maculou toda e qualquer aura, ofereceu-nos pouco mais que niilismo e repugnou muçulmanos do mundo todo.” Outros grupos insurgentes pareciam mais eficazes. Em 2003, por exemplo, baathistas seculares eram mais numerosos, estavam mais bem equipados e organizados e contavam com comandantes militares mais experientes; em 2009, a milícia Despertar Sunita– dispunha de mais recursos, e seu braço armado estava bem mais arraigado no cenário local. Em 2011, o Exército Livre da Síria– incluindo ex-oficiais do regime de Bashar al-Assad– configurava-se uma liderança muito mais plausível para a resistência na Síria, assim como, em 2013, a milícia Jabhat al-Nusra, mais extremista. No livro Estado Islâmico: Desvendando o Exército do Terror, o analista sírio Hassan Hassan e o jornalista americano Michael Weiss mostram que a Al-Nusra forjara vínculos bem mais estreitos com grupos tribais do leste da Síria, inclusive casando seus combatentes com mulheres dessas tribos.
Esses grupos já justificaram seus próprios colapsos e insucessos, assim como a ascensão do EI, atribuindo a culpa à falta de recursos. O Exército Livre da Síria insiste há tempos que poderia ter suplantado o Estado Islâmico caso seus líderes tivessem recebido mais dinheiro e armas de Estados estrangeiros. E os líderes da Despertar Sunita no Iraque argumentam que perderam o controle de suas comunidades apenas porque o governo de Bagdá parou de lhes pagar salário. Todavia, não há prova de que, no início, o EI tenha chegado a receber mais dinheiro e armas do que esses grupos – muito pelo contrário.
Hassan e Weiss sugerem que esse apoio inicial ao Estado Islâmico tenha sido em grande medida limitado porque o movimento era inspirado por ideólogos que, na verdade, também desprezavam Zarqawi e seus seguidores. O dinheiro da Al-Qaeda que em 1999 lançou Zarqawi, por exemplo, seria “uma ninharia, se comparado ao que a Al-Qaeda era capaz de desembolsar”. Bin Laden, filho de mãe xiita, tinha horror à matança de xiitas levada a cabo por Zarqawi, cujas tatuagens também lhe repugnavam – daí não ter destinado montante maior de recursos ao líder jordaniano.
Embora os iranianos lhe tenham concedido ajuda médica e refúgio seguro em 2002, quando Zarqawi era um fugitivo, ele logo perdeu a simpatia do Irã por ter enviado o próprio sogro, vestindo um colete suicida, para matar o aiatolá Mohammed Baqir al-Hakim, o principal representante político do país no Iraque, e por ter explodido um dos mais sagrados santuários xiitas. E embora o EI se fie há mais de uma década nas habilidades técnicas dos baathistas e do general sufista iraquiano Izzat al-Douri – que esteve no controle de uma milícia baathista clandestina depois da queda de Saddam Hussein –, essa relação se desgastou. (O movimento não faz segredo de seu desprezo pelo sufismo,[3] da destruição que promoveu de santuários sufistas ou de sua aversão a tudo que os nacionalistas seculares árabes baathistas defendem.)
A liderança do EI tampouco tem se mostrado especialmente simpática, magnânima ou competente – ainda que se deva dar algum desconto à compreensível repugnância dos biógrafos. Zarqawi já foi descrito como “semiletrado”, “um valentão e um facínora, fabricante clandestino de bebidas e beberrão, e, segundo dizem, proxeneta” (Mary Anne Weaver); “um intelectual peso-pena” (Weiss e Hassan); um “facínora que virou terrorista”, “estudante medíocre que não era nada quando chegou ao Afeganistão” (Jessica Stern e J. M. Berger); mentor de “operações grosseiras” na Jordânia e do emprego de “um infeliz como candidato a homem-bomba” (Weaver). Foi rejeitado por Bin Laden e seus seguidores porque “era um rufião metido a besta, sem quase nenhuma educação” (Stern e Berger).
Se os autores têm bem menos a dizer sobre o atual líder do EI, Al-Baghdadi, isso se deve ao fato de sua biografia, como admitem Weiss e Hassan, “ainda pairar não muito acima de conjecturas e rumores, muitos dos quais promovidos por concorrentes da jihad”.
A própria visão que o EI tem da insurgência – desde o controle de territórios até o combate a exércitos regulares – não representa nenhuma vantagem óbvia. Lawrence da Arábia aconselhava insurgentes a ser como a névoa – estar por toda parte e em lugar nenhum – e a jamais se ater ao território conquistado ou desperdiçar vidas em batalhas contra exércitos regulares. O comandante Mao insistia que guerrilheiros deveriam ser peixes nadando no mar da população local. Visões como essas são corolários lógicos da “guerra assimétrica”, em que um grupo menor e aparentemente mais fraco – como o EI – se defronta com um adversário poderoso, como as Forças Armadas norte-americanas e iraquianas. Estudos do Exército dos Estados Unidos a respeito de mais de quarenta rebeliões históricas sugerem sistematicamente que insistir em manter terreno conquistado, engajar-se em batalhas ferozes e alienar-se da sensibilidade cultural e religiosa da população local são fatais.
Mas são justamente táticas desse tipo que constituem a estratégia explícita do EI. Zarqawi perdeu milhares de combatentes na tentativa de manter Fallujah, em 2004, e desperdiçou as vidas de seus suicidas em ataques pequenos e constantes. Além disso, ao impor castigos draconianos e códigos sociais obscurantistas, enfureceu as comunidades sunitas que dizia representar. Combatentes do EI deixam-se agora atrair pela capacidade do movimento de controlar território em lugares como Mosul. Nada indica que essas táticas, embora sedutoras e até o momento associadas a uma campanha de sucesso, tenham se tornado menos arriscadas.
A postura do EI, no entanto, não se tornou menos temerária ou, do ponto de vista tático, menos bizarra desde a morte de Zarqawi. O historiador norte-americano Larry Schweikart estima que, mesmo antes de 2006, quando os Estados Unidos começaram a enviar mais soldados ao Iraque, 40 mil insurgentes já haviam sido mortos; cerca de 200 mil, feridos; e 20 mil, capturados. Por volta de junho de 2010, o general Ray Odierno declarou que 80% dos 42 líderes mais importantes do movimento haviam sido mortos ou capturados – apenas oito seguiam à solta. Contudo, após a saída dos norte-americanos em 2011, em vez de reconstruir suas redes no Iraque, os combalidos remanescentes optaram por se lançar à invasão da Síria, enfrentando não apenas as forças do regime de Assad, mas também do bem estabelecido Exército Livre da Síria. Além disso, atacaram os próprios militantes sírios do EI, cujo braço era a Jabhat al-Nusra, quando eles decidiram se separar do movimento; enfureceram a Al-Qaeda em 2014, matando seu principal emissário na região; provocaram, deliberadamente, dezenas de milhares de milicianos xiitas a se juntar à luta do lado do regime sírio e, depois, desafiaram a Força Quds[4] iraniana ao avançar rumo a Bagdá.
Em seguida, já em luta contra esses novos inimigos, em agosto de 2014 o movimento abriu outra frente de batalha ao atacar o Curdistão, provocando uma retaliação das forças curdas, até então alheias ao conflito. Ainda em agosto o EI decapitou o jornalista americano James Foley e, no mês seguinte, o britânico David Haines, que prestava auxílio humanitário na Síria, o que atraiu a fúria dos Estados Unidos e do Reino Unido. Terminou 2014 com um assalto suicida a Kobane, na Síria, sob mais de 600 ataques aéreos dos americanos, resultando na perda de milhares de combatentes e nenhum terreno conquistado. Iniciou o ano de 2015 enfurecendo também o Japão ao pedir resgate de centenas de milhões de dólares por um refém já morto. Assim, quando o EI perdeu Tikrit – a 170 quilômetros de Bagdá – em abril passado, e parecia estar em decadência, a explicação afigurava-se óbvia. Os analistas estavam a ponto de concluir que o movimento tinha afinal perdido porque agia de forma temerária, repugnante, demasiado ampla, lutando em diversas frentes e sem nenhum apoio popular real, não só incapaz de transformar o terrorismo num programa popular como fadado a ser inevitavelmente derrotado por exércitos regulares.
Mas alguns analistas concentraram seus argumentos não na estratégia militar aparentemente contraproducente do movimento, e sim em sua gestão e recursos financeiros, no eventual apoio recebido da população e na confiança em dezenas de milhares de combatentes estrangeiros. Em seu blog, Aymenn Jawad al-Tamimi, do centro norte-americano de estudos e pesquisas Middle East Forum, explicou recentemente que em algumas cidades ocupadas, como Raqqa, na Síria, o EI criou complexas estruturas de serviços públicos, controlando inclusive o sistema de esgoto. Al-Tamimi também descreve os proveitos que o movimento obtém da renda local, dos impostos prediais e territoriais e do aluguel de ex-escritórios estatais para empresários, o que lhe conferiu uma base de rendimentos ampla e confiável, apenas complementada pelo contrabando de petróleo e a pilhagem de antiguidades.
O poder do EI viu-se reforçado pelo assombroso arsenal tomado dos exércitos iraquiano e sírio em fuga, o que inclui tanques, Humvees e grandes peças de artilharia. Ao longo dos últimos doze meses, relatos do New York Times, do Wall Street Journal, da Reuters e da Vice News vêm mostrando que muitos sunitas no Iraque e na Síria têm a percepção de que hoje o EI é a única garantia de ordem e segurança em meio à guerra civil, bem como sua única defesa contra um revide brutal por parte dos governos de Damasco e Bagdá.
Também aí, porém, os sinais são confusos e contraditórios. Um documentário da BBC sobre Mosul – realizado pela jornalista australiana de origem afegã Yalda Hakim – imputa à brutalidade acachapante o segredo da dominação do EI. Por outro lado, Malise Ruthven, acadêmico e jornalista anglo-irlandês, o descreve como “uma organização bem gerida, que combina eficiência burocrática e expertise militar com um uso sofisticado da tecnologia da informação”. Autor de um excelente relato sobre Tikrit, o ex-conselheiro da ONU Zaid al-Ali menciona a “incapacidade de governar” do EI, o colapso total do abastecimento de água e eletricidade, do sistema educacional e, em última instância, da população subjugada. “Explicações” com base em recursos financeiros e poder tendem a ser tautológicas. O fato de o EI ser capaz de atrair o aparente apoio (ou a aquiescência) da população local e de controlar territórios, receita governamental, petróleo, monumentos históricos e bases militares resulta do sucesso do movimento e de seu monopólio da insurgência. Não é, portanto, causa, e sim consequência.
Especialistas em terrorismo, os norte-americanos Jessica Stern e J. M. Berger publicaram em março deste ano uma excelente análise do uso que o movimento faz do vídeo e das mídias sociais. No livro ISIS: The State of Terror,assinalam que pelo menos 45 mil contas pró-EI estavam online no Twitter no final de 2014. O rastreio dessas contas individuais permitiu aos autores mostrar que, para escapar dos administradores da rede, os usuários mudavam constantemente o nome do perfil, trocavam as fotos e substituíam a bandeira do movimento pela imagem de gatinhos. Além de criar novos aplicativos e bots para incrementar a audiência, os tuiteiros pegaram carona na Copa do Mundo e inseriram imagens de decapitações em bate-papos sobre os jogos. Isso, contudo, apenas põe em evidência a questão fundamental: por que a ideologia e as ações do movimento possuem apelo popular?
Tampouco dispomos de explicações mais satisfatórias sobre o que teria atraído os 20 mil combatentes estrangeiros que se juntaram ao EI. De início, atribuiu-se o grande número de britânicos no movimento ao fato de o governo do Reino Unido ter feito esforços insuficientes para absorver as comunidades de imigrantes; depois, culpou-se o governo francês por ter forçado a assimilação. Na verdade, porém, esses novos combatentes parecem ter brotado de todos os sistemas políticos ou econômicos possíveis e imagináveis. Eles vieram de países muito pobres (Iêmen e Afeganistão), mas também dos mais ricos do mundo (Noruega e Catar). Quem alega que os combatentes estrangeiros resultaram da exclusão social, da pobreza ou da desigualdade deveria reconhecer que eles surgiram tanto das sociais-democracias escandinavas como de monarquias (mil vieram do Marrocos), regimes militares (Egito), democracias autoritárias (Turquia) e democracias liberais (Canadá). Pouco importou se um governo libertou milhares de islamitas (Iraque) ou os trancafiou (Egito), se não admitiu que um partido islâmico ganhasse eleições (Argélia) ou se permitiu que ele fosse eleito. Embora tenha realizado a transição mais bem-sucedida, indo da Primavera Árabe a um governo islâmico eleito, a Tunísia foi o país que mais produziu combatentes estrangeiros no EI.
O aumento das adesões de soldados estrangeiros tampouco foi desencadeado por alguma alteração nas políticas domésticas europeias ou no islamismo. Nada de fundamental ocorreu no panorama da cultura ou da crença religiosa entre 2012 – quando não havia quase nenhum desses combatentes no Iraque – e 2014, quando somavam 20 mil. A única mudança foi que de repente havia um território para onde atraí-los e abrigá-los. Se o movimento não tivesse tomado Raqqa e Mosul, muitos desses estrangeiros provavelmente teriam continuado a viver suas vidas nos mais variados graus de tensão – como produtores de leite na Normandia ou funcionários da administração municipal em Cardiff. De novo, nos deparamos com uma tautologia: o EI existe porque pode existir, está aí porque está aí.
Por fim, há um ano parecia plausível imputar boa parte da culpa pela ascensão do movimento ao governo desastroso do ex-primeiro ministro do Iraque, Al-Maliki. Não é mais o caso. Ao longo do ano passado, um líder novo, mais construtivo, moderado e inclusivo, foi nomeado primeiro-ministro: Haider al-Abadi. Além disso, um novo ministro da Defesa, sunita, reestruturou o Exército iraquiano; os antigos generais foram afastados e governos estrangeiros têm competido pelo fornecimento de armas e treinamento ao país. Cerca de 3 mil conselheiros e instrutores norte-americanos apareceram no Iraque. Estados Unidos, Reino Unido e outros têm efetuado ataques aéreos expressivos e minuciosa vigilância. A Força Quds iraniana, os países do Golfo e a Peshmerga curda juntaram-se ao combate em terra.
Por todas essas razões, esperava-se que o EI fosse rechaçado e perdesse Mosul, no norte do Iraque, em 2015. Em vez disso, em maio o movimento capturou Palmira, na Síria, e, quase ao mesmo tempo, Ramadi, a quase 500 quilômetros de distância, no Iraque. De Ramadi, 300 combatentes doei expulsaram milhares de soldados iraquianos treinados e muito bem equipados. O secretário de Defesa norte-americano, Ashton Carter, observou: “As forças iraquianas simplesmente não mostraram vontade de combater. Não estavam em minoria. Na verdade, o número era muito maior que o da força adversária e, no entanto, não lutaram.”
Hoje o EI controla um “Estado terrorista” bem mais extenso e desenvolvido do que qualquer um que George W. Bush possa ter evocado no auge de sua “guerra global ao terror”. À época, a possibilidade de extremistas sunitas tomarem a província iraquiana de Anbar foi evocada para justificar o já referido envio de 170 mil soldados americanos adicionais ao país e gastos de mais de 100 bilhões de dólares ao ano. Agora, anos depois, o EI domina não apenas Anbar, mas também Mosul e metade do território da Síria. Seus afiliados controlam grandes faixas de território do norte da Nigéria e áreas significativas da Líbia. Centenas de milhares de pessoas já foram mortas, e milhões, deslocadas; horrores inimagináveis inclusive para o Talibã – entre eles, o retorno da escravidão e da prática de estupros de crianças – foram legitimados. E essa catástrofe não apenas dissolveu a fronteira entre Síria e Iraque, como também provocou as forças que lutam no Iêmen uma guerra por procuração entre Arábia Saudita e Irã.
A prova mais clara de que não entendemos esse fenômeno é nossa contínua incapacidade de prever – e, pior, controlar – tais acontecimentos. Quem poderia dizer que Zarqawi se fortaleceria depois que os Estados Unidos tivessem destruído seus campos de treinamento em 2001? Parecia improvável que o movimento fosse se reagrupar tão depressa depois da morte de seu fundador, em 2006, ou, de novo, depois do aumento das tropas americanas em 2007. Hoje sabemos cada vez mais sobre o EI e seus membros, mas isso não impediu que, há apenas quatro meses, analistas acreditassem que as derrotas em Kobane e Tikrit tivessem virado o jogo e que seria improvável que o movimento tomasse Ramadi. Há nisso tudo alguma coisa que não estamos vendo.
Parte do problema talvez resida na preferência dos comentaristas por explicações políticas, financeiras e físicas, tais como a discriminação contra os sunitas, a corrupção, a ausência de serviços públicos nos territórios capturados e o emprego da violência por parte do EI. Raras vezes se chama a atenção do público ocidental para o desconcertante apelo ideológico do movimento. Surpreendi-me ao ver que até um oponente sírio do EI ficou profundamente comovido com um vídeo que mostrava como o movimento destruiu a fronteira entre Iraque e Síria – estabelecida de comum acordo por França e Reino Unido, em 1916, e imposta à região –, reunindo assim tribos que haviam sido separadas. Intrigou-me a condenação proferida pelo grande imã de Al-Azhar, Ahmed al-Tayeb, um dos clérigos sunitas mais reverenciados do mundo: “Esse grupo é satânico – seus integrantes deveriam ter os membros amputados ou deveriam ser crucificados.” Espantou-me a elegia que Bin Laden dedicou a Zarqawi: sua “história será eterna como as dos nobres […]. Ainda que tenhamos perdido um de nossos maiores cavaleiros e príncipes, estamos felizes por ter encontrado um símbolo”.
Mas também a “ideologia” do EI não explica o bastante. A Al-Qaeda entendeu melhor do que ninguém a mescla peculiar de versos corânicos, nacionalismo árabe, histórias das Cruzadas, referências poéticas, sentimentalismo e horror capaz de animar e sustentar tais movimentos. Até seus líderes, contudo, julgavam a postura de Zarqawi irracional, culturalmente inapropriada e desprovida de apelo. Em 2005, líderes da Al-Qaeda o aconselharam a não mais propagandear seus horrores. Para tanto, empregaram o jargão da estratégia moderna – “mais da metade dessa luta tem lugar no campo de batalha midiático” – e disseram-lhe que a “lição” aprendida no Afeganistão era a de que o Talibã havia perdido por, como Zarqawi, ter confiado numa base sectária demasiado estreita. E os líderes da Al-Qaeda não eram os únicos jihadistas salafistas a supor que seu núcleo de apoiadores preferia ensinamentos religiosos sérios a vídeos de pessoas sendo mortas (da mesma forma que o imã Al-Tayeb aparentemente não imaginou que um movimento islâmico queimaria vivo, numa jaula, um piloto árabe sunita).
Boa parte do que o EI tem feito contradiz as intuições e os princípios morais de muitos de seus apoiadores. E pelas entrevistas feitas por Hassan e Weiss, percebemos que esses apoiadores têm consciência, ao menos parcial, dessa contradição. De novo, podemos listar os diferentes grupos externos que têm financiado e apoiado o EI. Mas inexistem conexões lógicas em termos de ideologia, identidade ou interesses capazes de vincular Irã, Talibã e baathistas, seja uns aos outros, seja ao Estado Islâmico. É de se pensar que grupos e países profundamente distintos em matéria de teologia, política e cultura improvisem continuamente parcerias letais, e até contraproducentes, ditadas pela conveniência.
Os pensadores, formuladores de táticas, soldados e líderes do movimento que conhecemos como EI não são grandes estrategistas. Suas políticas são com frequência acidentais, temerárias e até absurdas. Independentemente de seu governo ser hábil (como argumentam alguns) ou não (como sugerem outros), o fato é que ele não está produzindo nem crescimento econômico genuíno nem justiça social sustentável. A teologia, os princípios e a ética dos líderes do EI não são nem sólidos nem defensáveis. Nossa pá analítica muito rapidamente depara com a rocha dura.
Várias vezes me vi tentado a argumentar que precisamos simplesmente de mais e melhores informações. Mas isso é subestimar a natureza bizarra e desconcertante do fenômeno. Para dar um exemplo: cinco anos atrás, nem mesmo os mais austeros teóricos salafistas defendiam o retorno da escravidão, mas o EI a impôs de fato. Desde o triunfo dos vândalos no Norte da África nos anos finais do Império Romano, nada jamais pareceu tão súbito, incompreensível e difícil de reverter quanto a ascensão do Estado Islâmico. Nenhum de nossos analistas, soldados, diplomatas, agentes de inteligência, políticos ou jornalistas logrou produzir até o momento uma explicação rica a ponto de – mesmo a posteriori – poder ter previsto a ascensão do movimento.
Nós ocultamos esse fato de nós mesmos com teorias e conceitos que não resistem a um exame mais acurado. E não conseguiremos remediar essa situação pelo continuado acúmulo de fatos. Não está claro se nossa cultura é capaz de produzir conhecimento, rigor, imaginação e humildade suficientes para compreender o fenômeno do EI. Por enquanto, deveríamos admitir que não estamos apenas horrorizados, mas também perplexos.
[1] Após a invasão americana e a retirada do grupo de Saddam Hussein do poder – composto sobretudo por sunitas, que, no entanto, comandavam uma ditadura secular e nacionalista –, a maioria xiita passou a controlar o governo e as tensões entre os dois grupos no país aumentaram.
[2] O Partido Baath, que teria em Saddam Hussein o seu líder mais conhecido, tomou o poder no Iraque em 1968, impondo sua ideologia secular e nacionalista a um país bastante dividido entre diferentes grupos étnicos e religiosos. Após a invasão americana, em 2003, integrantes do partido foram impedidos de participar da vida pública e do governo iraquiano, além de terem sido expulsos das escolas e das universidades.
[3] Dimensão mística e contemplativa do Islã.
[4] Unidade especial do Exército dos Guardiões da Revolução Islâmica.
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