John Kennedy, o bebê Fábio e Francisca Oliveira em Castelo dos Sonhos FOTO: JORGE TADEU_2006
Auto de natal aéreo
Fábio nasceu sobre a selva onde tantos morreram
Luiz Maklouf Carvalho | Edição 2, Novembro 2006
Castelo dos Sonhos é um povoado paraense de quinze mil moradores que fica às margens da BR-163, a Cuiabá-Santarém, num trecho em que a rodovia não tem asfalto. Ele fica a mais de mil quilômetros da sede da comarca à qual pertence, Altamira, que, por sua vez, é o maior município do mundo (161 mil km², quase quatro vezes o Rio de Janeiro), o que, pensando bem, não é nenhuma vantagem. Por ter sido criado quando os garimpos estavam no ápice, nos anos 70, Castelo dos Sonhos tem o nome que tem. “É um lugar perigoso e violento”, atesta Deoclécio Garcia, diretor do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Altamira. A empresária Ieda Burille, dona do Posto Zelândia, mãe de duas adolescentes, discorda: “Castelo dos Sonhos é o melhor lugar do mundo para criar os filhos”, diz. A distância da sede deu origem a um movimento separatista. “A última vez que a prefeita esteve aqui foi em janeiro. De 2002”, diz Ieda, que é favorável à independência administrativa do lugarejo.
Francisca de Souza Oliveira, nascida em Castelo dos Sonhos, tem dezoito anos. Ela é mãe (solteira) de John Kennedy, de dois anos. Ela estudou até a segunda série, sabe ler e escrever, e já passou por poucas e boas na chamada escola de vida. “Essa menina dá trabalho”, diz sua mãe.
Raimunda de Souza Oliveira, mãe de Francisca, é maranhense de Buriti Bravo. Está com 44 anos e teve doze filhos do casamento com o lavrador Valdemir Alves de Oliveira. Cinco morreram. Valdemir também, assassinado. Dos sete vivos, Francisca é a do meio. Raimunda mora no Castelo dos Sonhos com o segundo marido e a filha caçula.
Antônio Capixaba, o pai de John Kennedy, é dono de uma pequena fazenda no Castelo dos Sonhos. Não vive com Francisca, mas ajuda a criar o filho.
Francinaldo, borracheiro de profissão, namorou e engravidou Francisca, que, no entanto, nem sabe o sobrenome dele. “Francinaldo matou um cara para roubar e me batia”, diz Francisca, que o abandonou. Francinaldo fugiu da polícia, desapareceu.
Ricardo Aleixo, 2º tenente-médico da Força Aérea Brasileira, serve na base militar da Serra do Cachimbo, que fica a 120 quilômetros de Castelo dos Sonhos. Em julho do ano passado, Aleixo obteve seu diploma na Faculdade de Medicina do Triângulo Mineiro. Aos 28 anos, ele ganha três mil. Casado, sem filhos, sua única experiência com partos foi a que teve na faculdade e nos estágios.
O ônibus saiu do Castelo dos Sonhos no final da tarde da sexta-feira, 6 de outubro. Ele levaria Francisca e Raimunda até Peixoto de Azevedo, onde Francisca teria o segundo filho. Como no nascimento de John Kennedy, o médico prescrevera uma cesariana. Com o hospital do povoado em obras, a recomendação era Peixoto de Azevedo. Trajeto relativamente curto, coisa de 270 quilômetros, mas a nada menos de doze horas de viagem, tais as condições da estrada. Pagaram trinta e oito reais cada uma pelas passagens, saídos, suados, do bolso de Antônio Capixaba, pai de John. Lá pelas onze da noite, a moça começou a ter contrações. Raimunda achou que podia ser alarme falso. A diminuição progressiva da frequência mostrou que não. A cidade mais próxima, Guarantã do Norte, estava longe. Peixoto de Azevedo, nem se fala: só chegariam lá ao raiar do dia. O que havia, no meio da escuridão, era a base militar da Serra do Cachimbo. As dores lancinantes de Francisca e os apelos de Raimunda fizeram com que o chofer do ônibus pegasse a estradinha de asfalto que chega à entrada do quartel. Era 1h30 da madrugada.
A base militar do Cachimbo vivia há sete dias o lúgubre azáfama provocado pela queda do vôo 1907, da Gol. Era ali que eram transitoriamente guardados os cadáveres dos 154 passageiros do Boeing. Os gritos de Francisca alertaram os sentinelas, abriram os portões, aceleraram as providências, acordaram quem devia ser acordado. “Ela chegou na base com muitas dores abdominais e contrações”, conta o tenente Ricardo Aleixo. “Eu fiz o exame de toque, a dilatação era de dois centímetros, e a indicação, até pelo histórico do primeiro filho, era de cesariana.” Não havia como fazer a operação no Cachimbo: a base não tinha aparelhagem. Decidiu-se levar Francisca para Cuiabá.
O avião, um bimotor Bandeirantes C-95, abriu a porta às 3h40 da madrugada para que Francisca e sua mãe entrassem. Era a primeira vez que elas viajavam de avião. Junto com ela foram seis tripulantes, entre eles o 2º tenente Aleixo, o cabo-enfermeiro Rocha e o tenente-coronel João Bosco. Deitada numa maca, Francisca entrou em trabalho de parto meia hora depois.
Raimunda Oliveira conta o que ocorreu a bordo: “As dores foram aumentando, e os gritos da Francisca também. Vi logo que a criança queria nascer, que estava na hora dela, mas eles mandavam a Francisca fechar as pernas. Diziam que não sabiam fazer parto, só cuidar de curativo, de perna e de braço quebrado. Quando vi que não tinha jeito, que a criança estava vindo, mandei eles forcejarem a barriga, e segurarem a cabeça da Francisca, que estava toda descangotada de tanto sofrimento, coitada. Aí eles ajudaram, e eu tirei a criança. Fiquei segurando até chegar em Cuiabá, quando cortaram aquele cordão. No meio de toda a tristeza com a queda do avião, foi uma alegria, para nós e para eles, o menino ter nascido ali.”
O relato de Aleixo: “Nós ficamos um pouco assustados que nascesse dentro do avião, porque podiam acontecer complicações mais sérias. Mas a dona Raimunda estava certa, e nós ajudamos, pressionando a barriga pra criança descer. Depois eu amarrei o cordão umbilical, que só foi cortado quando chegamos a Cuiabá.”
A pressa de nascer era tanta que o irmão de John Kennedy veio ao mundo, contra todos os prognósticos, de parto normal. Ele nasceu com quatro quilos e 70 gramas. “Subiram oito e desceram nove”, brinca o tenente-coronel Feijó, da base do Cachimbo.
Em Cuiabá, uma ambulância da prefeitura já os esperava, com um médico, para as providências imediatas e, depois, as fotos feitas na pista do aeroporto com a câmera digital de Aleixo. Levado para um hospital, onde se constatou que o bebezão estava bem de saúde, o trio teve alta no mesmo dia. Foi encaminhado para uma instituição assistencial da prefeitura. Saiu de lá para o aeroporto de Cuiabá na manhã do feriado do dia da criança. Um avião da FAB os levou para a base do Cachimbo — e de lá, num helicóptero, para o Castelo dos Sonhos. O bebê foi registrado em Cuiabá, como Fábio de Souza Oliveira, e não Fabiano, como a FAB disse que a mãe o chamaria, em homenagem ao socorro da base. “Fábio é mais bonito”, diz Francisca.
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