Enterro de Maysa, uma das dezenove pessoas da mesma família que morreram na Rua Hamad, quando explosões atingiram crianças que dormiam e adultos que se preparavam para as primeiras orações FOTO: AP PHOTO_ADEL HANA_2006
O castigo desabou do céu
Maya, uma menina palestina de três anos, é morta num bombardeio israelense em Gaza; e em Amsterdã, a castanheira que Anne Frank amava é condenada à morte
Dorrit Harazim | Edição 3, Dezembro 2006
No ranking de acontecimentos de interesse global, violência e morte na Faixa de Gaza costumam ter pontuação baixa. Foram tantas as guerras, intifadas, deslocamentos humanos e territoriais naquele enclave do Oriente Médio que notícias de nova erupção entre palestinos e israelenses parecem já nascer velhas. Não seria diferente em novembro passado. O mundo estava ocupado olhando para a agonia eleitoral de George W. Bush nos Estados Unidos, a condenação à forca de Saddam Hussein, a colisão de dois aviões no céu brasileiro. Foi a imagem da menina Maysa Al-Athamna, envolta no pranto fúnebre de sua gente, que entreabriu, fugazmente, a fresta de interesse por Gaza.
Numa manhã de junho, a base militar de Kerem Shalom, na fronteira de Israel com Gaza, foi surpreendida pelo assalto de um grupo de militantes palestinos. Os invasores tinham conseguido cavar um túnel de 1 km de extensão para chegar até a fortificação. Pior: causaram duas baixas no poderoso inimigo, fizeram um prisioneiro e sumiram com ele. Desde então, o cabo Gilad Shalit, nascido na Galiléia e com dupla nacionalidade (franco-israelense), está seqüestrado. Completou 20 anos e deixou as Forças de Defesa de Israel insones e humilhadas. Estava com uma mão quebrada e tinha um ferimento no ombro quando foi raptado.
Preço inicial do resgate exigido pelos terroristas no dia seguinte: a libertação de todas as mulheres e todos os homens palestinos de menos de 18 anos presos em Israel. Preço adicional, comunicado cinco dias mais tarde: libertação de outros mil prisioneiros palestinos e interrupção dos assaltos militares de Israel contra Gaza, desencadeados pelo sequestro do soldado.
A essa altura, já estava em curso a Operação Chuvas de Verão, desencadeada por Israel contra um território do tamanho de Belo Horizonte, com uma das populações mais jovens do mundo – 49% dos seus 1,4 milhões de habitantes têm menos de 14 anos. “Os céus desabarão”, haviam advertido as autoridades militares, alertando para a integridade física do cabo Shalit. Disparos tombaram sobre Gaza três dias depois do sequestro do soldado, matando pelo menos 370 palestinos, metade deles civis. Entre eles, a pequena Maysa, de 3 anos.
Foi por volta das cinco e meia da manhã que os primeiros foguetes de 155mm atingiram a localidade de Beit Hanun. Eles acertaram os prédios da Rua Hamad, quase toda ocupada pela extensa parentela dos Al-Athamna. As crianças ainda dormiam e os adultos terminavam de se lavar para a primeira oração do dia. No caos das explosões, cabeças foram arrancadas dos corpos e a rua se transformou num painel de Bosch. “Vi a perna da minha tia Jamila soltar-se no ar”, conta Haneen, de 20 anos, que morava num quarto andar. “Tentei socorrê-la, mas ela gritou que eu deveria correr e me salvar.”
o final, havia sessenta feridos e dezenove mortos, sendo treze da mesma família. Vinte e quatro horas depois, o taxista Madji Al-Athamna chegava ao necrotério do hospital Kamal Adwan para dar conta das perdas. Anotou, um a um, num maço de cigarros aberto, os nomes dos cadáveres que lhe iam sendo apontados no frigorífico – dois filhos seus, três irmãos, oito primos e sobrinhos. Entre eles, a menina Maysa. Todos foram transportados para seus túmulos em macas ou caixões abertos, exceto Maysa e a caçula do clã, Maran, de 18 meses, carregadas nos ombros da multidão.
Por um fiapo de tempo, os protagonistas dessa longa história de relações marcadas a sangue interromperam a engrenagem. Em Telavive, o pai do soldado ainda em mãos dos palestinos irrompeu no hospital em que se encontravam feridos da Rua Hamad e se encontrou com o palestino Osama Al- Athamna, primo de Maysa. Juntos, pediram o fim da violência. O primo Madji, que havia anotado as perdas no maço de cigarros, considerou a visita respeitosa, um alento.
O governo israelense atribuiu a matança à falha de um componente eletrônico do sistema de lançamento de artilharia, e ordenou a abertura de (mais um) inquérito para apurar responsabilidades. Segundo o primeiro-ministro Ehud Olmert os ataques visavam um laranjal usado pelos palestinos para lançar foguetes caseiros Qassam contra civis do outro lado da fronteira.
Mas a engrenagem já retomou seu ritmo habitual. Na última semana de novembro, foguetes palestinos voltaram a freqüentar quintais israelenses. Uma mulher-bomba palestina foi explodida por uma granada antes de se estourar contra um pelotão de soldados israelenses. Ela tinha 57 anos, era mãe de nove filhos, avó de quarenta netos e estava revoltada com as mortes de Beit Hanun.
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“Nossa castanheira está toda florida. Coberta de folhas está ainda mais bonita do que no ano passado. (Maio, 1944).”
Foi condenada à morte a castanheira de 150 anos que se tornou conhecida dos mais de 31 milhões de leitores, em 67 línguas, do Diário de Anne Frank. Vítima de um fungo agressivo, ela terá de ser abatida da frente do sobrado que escondeu a família Frank dos campos de extermínio nazistas por 25 meses. Em 1990, a prefeitura de Amsterdã já havia desembolsado o equivalente a R$440 mil para sanear um vazamento de óleo doméstico que ameaçava destruir as suas raízes. Mais recentemente, uma equipe de botânicos combateu por seis meses o asfixiamento da árvore por outros parasitas.
Prevendo a sua morte, foram feitos três enxertos, e uma nova árvore será plantada no mesmo local. Além disso, a castanheira tem direito a uma sobrevida virtual, através do sítio www.annefranktree.com. No Oriente Médio, poucas vidas recebem tantos cuidados.
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