Chamar isso de fascismo não faz justiça ao fascismo. O fascismo tinha uma ideologia e uma coerência que Trump não tem. Mas seu movimento é claramente fascista na demonização dos estrangeiros ─ muçulmanos e mexicanos são os novos judeus ILUSTRAÇÃO: JOOP E FRANCE 24_WWW.TJEERDROYAARDS.COM
Trump e os limites da democracia
Por que os Estados Unidos se tornaram um terreno fértil para a tirania
Andrew Sullivan | Edição 117, Junho 2016
O modo como a presente – e distópica – campanha eleitoral pela Presidência dos Estados Unidos tem se processado me faz recordar com frequência uma passagem de A República, de Platão. É um trecho que me perturbou e me surpreendeu desde a primeira vez em que o li, na pós-graduação. Faz parte do diálogo entre Sócrates e seus amigos sobre a natureza dos diferentes sistemas políticos – sobre o modo como esses sistemas mudam ao longo do tempo, e como alguns deles podem lentamente acabar se transformando em outros. Na conversa, Sócrates se mostra bastante assertivo acerca de um ponto preocupante. “É provavelmente a partir da democracia, e de nenhum outro regime, que a tirania se estabelece”, ele afirma. O que Platão quis dizer com isso?
Para o filósofo grego, a democracia, como vim a descobrir mais tarde, é o sistema político de máxima liberdade e igualdade, no qual todos os estilos de vida são permitidos, e os cargos públicos são preenchidos por sorteio. Quanto mais tempo durar uma democracia, afirma Platão, mais democrática ela se tornará. Suas liberdades, com o tempo, se multiplicariam; e a igualdade se difundiria cada vez mais. A deferência a qualquer tipo de autoridade ruiria; a tolerância a qualquer tipo de desigualdade ficaria sob intensa ameaça; o multiculturalismo e a liberdade sexual criariam uma cidade ou um país que seriam como “um manto multicolorido, decorado com os mais variados matizes”.
Esse Estado que é como uma bandeira do arco-íris, argumenta Platão, é, para muita gente, o mais justo dos regimes. É preciso ter tido a experiência dessa liberdade, própria à democracia, para acreditar que ela é realmente possível – um regime em que a ignomínia e o privilégio com o tempo se tornam anátema. Mas esse é também um regime essencialmente instável. À medida que a autoridade das elites se esvai, que os valores tradicionais cedem aos valores das massas, as visões de mundo e as identidades das pessoas podem terminar por se tornar tão diversas que acabam se tornando incapazes de compartilhar qualquer tipo de pertencimento e identificação. Quando todas as barreiras à igualdade, formais e informais, foram retiradas; quando todos são iguais; quando as elites são desprezadas e se estabelece a plena licença de cada um fazer “o que quiser”, atinge-se então o que se poderia chamar de estágio final da democracia. A essa altura já não há subserviência à autoridade, e muito menos à experiência política ou à competência política.
Os muito ricos passam a ser atacados, uma vez que a desigualdade é cada vez mais intolerável. O patriarcado também é desmantelado: “Quase nos esquecemos de mencionar a extensão da lei da igualdade e da liberdade nas relações das mulheres com os homens e dos homens com as mulheres”, escreve Platão, descrevendo a democracia. As hierarquias familiares são invertidas: “Um pai se habitua a ser como seu filho e a temer seus filhos, e um filho se habitua a ser como seu pai e a não ter vergonha nem medo dos pais.” Nas salas de aula, “enquanto o professor […] tem medo dos alunos e trata de adulá-los, os alunos fazem pouco dos professores”. Os animais são considerados iguais aos seres humanos; os ricos andam à vontade nas ruas em meio aos pobres e tentam se misturar a eles. O estrangeiro é igual ao cidadão.
É quando uma democracia amadurece assim plenamente, diz Platão, que muitas vezes surge um aspirante a tirano e tira proveito do sistema político.
Em geral ele provém da elite, mas tem uma natureza em sintonia com a época – entregue a prazeres e caprichos, banqueteando-se de comida e sexo, deleita-se com a ausência de crítica e julgamento que é a religião civil da democracia. Ele age tendo sob seu controle “uma multidão particularmente obediente” e acusa seus congêneres ricos de serem corruptos. Se não for detido a tempo, seu apetite por atacar os ricos em nome do povo crescerá mais e mais. Ele é um traidor da sua classe – mas logo seus inimigos, membros da elite despojados da legitimidade popular, terão como única saída encontrar maneiras de satisfazer suas exigências, ou então se verão forçados a fugir.
Por fim resta apenas o aspirante a tirano, sozinho, prometendo acabar com a paralisia da incoerência democrática. É como se ele oferecesse aos cidadãos confusos, distraídos e autoindulgentes algum alívio contra as inesgotáveis opções e inseguranças da democracia. Ele tira proveito da revolta geral contra os excessos – “parece que a liberdade excessiva se transforma em escravidão excessiva” – e se oferece como resposta e solução personificada para os conflitos internos da confusão democrática. Ele promete, acima de tudo, bater de frente com as elites, cada vez mais desprezadas. O povo se entusiasma com esse líder, como uma espécie de solução – e enquanto isso a democracia, voluntária e até impetuosamente, pouco a pouco se autorrevoga.
Assim, em dezembro passado, não pude deixar de sentir certa náusea quando vi, pairando numa tela de tevê sobre as cabeças dos convidados, a imagem raivosa do rosto de Donald Trump transmitida pela Fox News, enquanto eu bebia e conversava numa festa de Natal em Washington. Meses depois, ao assistir aos frenéticos comícios de Trump, e ver como ele passou por cima de adversários políticos muito mais qualificados nos debates do Partido Republicano valendo-se de apelidos ofensivos, a náusea virou medo. E quando ele pareceu consentir na violência física como reação aceitável à discordância política, sirenes de alarme dispararam. Platão havia plantado uma preocupação torturante em minha mente, algumas décadas antes, sobre o perigo intrínseco da fase tardia da democracia. Parecia cada vez mais difícil não tomar aquela descrição como uma versão sombria do que está acontecendo em nossa própria época, com sua hiperdemocracia – bem como reconhecer em Trump um personagem demagógico, tirânico, saído diretamente de um dos primeiros livros já escritos sobre a política.
Será, pergunto, que “o Donald” surgiu dos circos populistas da luta livre[1] e dos tabloides nova-iorquinos, por meio do Twitter e dos reality shows da tevê,[2] para provar que não apenas Platão tinha razão, mas também o quarto presidente norte-americano, James Madison, quando disse que as democracias “sempre foram espetáculos de turbulência e discórdia […], em geral tão breves em sua vida como violentas em sua morte”? Talvez Trump esteja testando a fraqueza específica da democracia – sua suscetibilidade aos demagogos – ao atravessar cada uma das barreiras que no passado tínhamos levantado justamente para impedir que uma pessoa como ele alcançasse o poder. Ou será que minha reação é exagerada?
Talvez. A náusea vai e vem, e já houve dias em que os algoritmos de notícias me asseguraram que havíamos chegado ao “pico Trump”. Mas o pico não cedeu, tampouco Trump. Após seus mais recentes triunfos nas primárias do Partido Republicano, num momento em que ele já conquistou o número suficiente de delegados para garantir a nomeação do partido, penso ser necessário superar nossos temores e enfrentar com clareza o que esta eleição já revelou sobre a fragilidade do nosso modo de vida – e a ameaça que a democracia avançada está começando a representar para si mesma.
Platão, é claro, não era vidente. Sua análise de como a democracia poderia se transformar em tirania é complexa, e mais apropriada às sociedades antigas do que à nossa (além de conter mais detalhes e reviravoltas do que posso resumir aqui). O desprezo de Platão pela vida democrática era motivado, em grande medida, pelo fato de que foi uma democracia que executou seu mestre, Sócrates. E Platão ficaria atônito, creio, ao ver como a democracia americana conseguiu prosperar nos dois últimos séculos, com uma estabilidade sem precedentes ao mesmo tempo em que acolhia um número cada vez maior de pessoas.
A democracia nos Estados Unidos continua a ser, na minha opinião, um milagre resultante da combinação da resistência da cultura americana com a habilidade dos autores da Constituição. Não existe nenhum outro lugar onde eu preferisse viver. Mas a democracia não é imortal, nem devemos admitir que esteja imune às forças que tantas vezes a puseram em perigo ao longo da história.
A estabilidade da democracia americana se deve, em parte, ao fato de que os fundadores do país – os autores da Declaração de Independência e da Constituição – conheciam Platão bastante bem. Para proteger a democracia americana da tirania da maioria e das paixões das massas, eles levantaram grandes e pesadas barreiras entre a vontade popular e o exercício do poder. O direito ao voto foi estritamente circunscrito. Presidente e vice-presidente não deviam ser eleitos pelo voto direto popular, mas sim escolhidos por um Colégio Eleitoral, cujos representantes eram selecionados pelos estados, em geral por meio da legislatura estadual. A estrutura do Senado (com dois membros por estado) foi concebida para moderar o poder dos estados mais populosos na Câmara dos Representantes, e seu mandato de seis anos (em comparação aos dois anos no caso dos deputados) se destinava a esfriar e conter as paixões populistas temporárias. A Suprema Corte, com membros escolhidos pelo presidente e confirmados pelo Senado, era o baluarte final contra quaisquer fúrias democráticas que pudessem ascender por meio da Câmara e ameaçar a Constituição. Essa separação de poderes foi projetada precisamente para criar portas corta-fogo contra os incêndios democráticos.
Ao longo dos séculos, contudo, muitas dessas regras não democráticas acabaram enfraquecidas ou abolidas. O direito ao voto foi conferido a muito mais gente do que a uma minoria de homens brancos proprietários de terras. A Presidência é agora eleita, efetivamente, por voto direto, com o Colégio Eleitoral quase sempre refletindo a vontade democrática nacional. Esses avanços democráticos formais foram acompanhados por outros, informais, enquanto a cultura da democracia ia aos poucos criando raízes mais profundas.
Durante muito tempo, apenas as elites dos partidos políticos se encarregavam de selecionar os candidatos, o que era feito nas convenções quadrienais das legendas, em geral com o voto restrito às autoridades partidárias dos estados. (E muitas vezes o resultado era de fato decidido – conforme uma imagem que se tornou clichê – numa sala enfumaçada de algum grande hotel.) No início do século XX, porém, os partidos começaram a fazer experiências com eleições primárias, e depois do caos da Convenção Democrata de 1968,[3] o sistema atual, muito mais democrático, tornou-se a norma.
A democracia direta não apenas passou a eleger o Congresso e o presidente, mas ampliou a noção de quem poderia se qualificar para um cargo público. No passado, os candidatos construíam uma carreira com a experiência acumulada em cargos eletivos, ou em ministérios, ou como comandantes militares; ou seja, na prática, eram escolhidos – ou vetados – por seus próprios pares. Esse mecanismo de seleção elitista foi paulatinamente implodido.
Em 1940, Wendell Willkie, um homem de negócios que nunca havia ocupado um cargo político, venceu a nomeação republicana para presidente, prometendo manter os Estados Unidos fora da guerra e ufanando-se de que sua fortuna pessoal o inoculava contra a corrupção: “Não terei obrigações para com ninguém, exceto com o povo.” Willkie perdeu de lavada para Franklin D. Roosevelt. Mesmo assim, desde essa época os candidatos não políticos proliferaram, de Ross Perot[4] e Jesse Jackson[5] a Steve Forbes[6] e Herman Cain[7], chegando à safra deste ano: Ben Carson[8], Carly Fiorina[9] e, é claro, Donald J. Trump. Essa nova ampliação da nossa democracia – nossa abertura para sermos liderados por qualquer um; na verdade, nossa crescente preferência por pessoas de fora da política está agora quase concluída.
As barreiras contra a vontade popular, em especial quando se trata de escolher o presidente, são hoje quase inexistentes. Em 2000, George W. Bush perdeu o voto popular mas ganhou a eleição graças à matemática do Colégio Eleitoral e, num golpe mais flagrante, graças a uma decisão da Suprema Corte guiada pela preferência partidária.[10] No fim das contas, a admissão de derrota por parte de Al Gore poupou a nação de uma crise constitucional, mas o episódio gerou mal-estar generalizado, e não só entre os democratas. Em 2016, o sistema de delegados estabelecido pelos partidos políticos também está sob ataque. Trump chegou a argumentar que o postulante que obtivesse a maioria dos votos nas primárias deveria ser nomeado candidato republicano à Presidência e pronto, independentemente das regras em vigor. A discussão se mostrou desnecessária, uma vez que ele acabou alcançando o número suficiente de delegados para ser nomeado sem contestação. Seja como for, ele venceu o debate. Metade dos americanos hoje acredita que o sistema tradicional de nomeação é manipulável.
Muitos afirmam, é claro, que na verdade a democracia americana está batendo em retirada, perto de ser destruída pela crescente desigualdade econômica do último quarto de século e pela capacidade dos muito ricos de comprar influência política. Essa é a principal crítica de Bernie Sanders, pré-candidato democrata. Mas as últimas eleições presidenciais demonstraram que, a rigor, o dinheiro dos milionários tem se mostrado anódino. Barack Obama, cuja campanha de 2008 foi bancada por pequenos doadores e ganhou força pela internet, abriu o caminho para os atuais insurreicionistas ao conseguir derrotar a candidata que era a favorita absoluta nas primárias do Partido Democrata e, em seguida, o adversário republicano. (Sendo que ambos eram pilares do establishment de seus partidos, além de terem o apoio de elites endinheiradas.)
Em 2012, nem todo o poder de arrecadação de recursos de Mitt Romney – o representante do 1% – conseguiu desalojar Obama da Casa Branca. E no atual momento da corrida presidencial, os candidatos que romperam com a ordem em seus próprios partidos, em ambas as legendas, foram longe na disputa sem precisar contar com o apoio financeiro das elites. Sanders, que vem sustentando sua campanha à custa de pequenos doadores e grandes multidões, é, para falar sem rodeios, uma negação viva do seu próprio discurso. Trump, claro, é um bilionário que está em grande medida se autofinanciando – mas, tal como Willkie, ele argumenta que sua riqueza é na verdade o que lhe possibilita resistir à influência dos ricos e seus lobistas.
Os que se desesperam com a influência do big money na política americana precisam explicar a desistência tão rápida quanto humilhante de Jeb Bush[11] da corrida presidencial, e a combalida campanha de Hillary Clinton, a candidata do establishment. As evidências sugerem que a democracia direta, longe de estar sendo estrangulada, está, na verdade, aprofundando seu controle sobre a política americana.
Nada disso constitui necessariamente motivo de alarme, embora seja bem provável que causasse um ataque apoplético nos autores da Constituição americana. O surgimento do primeiro presidente negro – inimaginável antes da nossa democracia mais inclusiva – é milagroso, só reforça o sistema, em vez de enfraquecê-lo. A época em que as máquinas partidárias simplesmente “arranjavam” as coisas ou fraudavam as eleições felizmente já passou. A maneira como candidatos de fora, de Obama até Trump e Sanders, trouxeram milhões de novos eleitores para o processo eleitoral é um avanço inegável. A inclusão de vozes antes excluídas ajuda e amplia o debate público. Mas é justamente devido às grandes realizações da nossa democracia que devemos ficar vigilantes quanto a sua vulnerabilidade particular, específica: a suscetibilidade, em tempos difíceis, ao apelo de um demagogo desavergonhado.
O que o século XXI acrescentou a essa história, como agora é mais do que óbvio, foi a democracia midiática – de maneira verdadeiramente revolucionária. Se o estágio final da democracia política levou dois séculos para amadurecer, o equivalente na mídia aconteceu no intervalo de duas décadas, apagando rapidamente, quase por completo, a moderação ou o controle das elites sobre nosso discurso democrático. O processo se originou nos programas de rádio partidarizados do final do século XX.[12] A ascensão da internet – um acontecimento tão rápido e abrangente que seu efeito político só agora começa a ser compreendido – democratizou ainda mais todas as fontes de informação, expandiu drasticamente o público leitor de cada veículo de mídia, e deu a cada pessoa uma plataforma própria de comunicação. Todas as velhas barreiras à entrada no setor – o custo do papel, da impressão e da distribuição – desmoronaram.
Muitas dessas novidades são bem-vindas. Eu mesmo me beneficiei dessas mudanças no início dos anos 2000, ao lançar um blog e em pouco tempo conseguir atingir um número de leitores igual ou superior ao de algumas pequenas revistas. As velhas e emboloradas instituições da mídia tradicional, que haviam ficado gordas e indolentes, bem que mereciam levar essa surra. A blogosfera independente, assim que surgiu, corrigia fatos publicados na imprensa, expunha as parcialidades de seus veículos, conseguia furos de reportagem. Quando a nova mídia amadureceu e o Facebook e o Twitter se firmaram, cada pessoa se tornou uma espécie de blogueiro. De um modo que nenhum jornalista do século XX teria acreditado ser possível, todos nós agora temos, em nosso feed de notícias do Facebook e nas timelines do Twitter, nossos próprios jornais virtuais, selecionando artigos a partir de incontáveis fontes e criando uma mídia entre iguais, quase totalmente livre de edição ou interferência das elites. Era evidente que isso terminaria por tornar também a política mais fluida. A organização política – convocar uma reunião, um comício para promover uma causa – sempre foi algo extremamente trabalhoso. Agora é possível convocar um movimento de massa com uma única página da web. Leva não mais do que alguns segundos.
A internet também demonstrou uma capacidade especial para absorver outras mídias, mesclando gêneros e categorias inimagináveis. A distinção entre política e entretenimento ficou mais vaga; a cobertura das eleições passou a se inspirar ainda mais nas transmissões esportivas; seu site de pornografia preferido aparece na tela do computador bem ao lado do Facebook da sua mãe. Os algoritmos da web praticamente eliminaram qualquer tipo de julgamento e decisão editorial, de tal modo que os programas de notícia na tevê a cabo, imersos na disputa pelos cobiçados pontos de audiência, abandonaram até mesmo a pretensão de perguntar “Será que isso é relevante?” ou “Será que precisamos mesmo transmitir isso ao vivo?”. No final, todas estas categorias foram reduzidas ao tráfego online, medido com uma precisão muito maior do que qualquer meio de comunicação jamais havia feito.
E o que mais impulsiona tudo isso é justamente aquilo que os autores da Constituição americana mais temiam na cultura democrática: o sentimento, a emoção e o narcisismo, no lugar da razão, da atenção aos fatos e do espírito de serviço público. Os debates online se tornam pessoais, passionais e insolúveis praticamente no momento em que começam. A Lei de Godwin – “É só uma questão de tempo até que uma seção de comentários mencione Hitler” – é um reflexo do colapso do debate racional que os fundadores políticos do país consideravam indispensável para o bom funcionamento de uma república.
Sim, por vezes ainda acontece alguma troca de argumentos racionais, mas quase não há mais árbitros de elite para definir quais desses argumentos são realmente verdadeiros, ou válidos, ou relevantes. Perdemos as fontes de autoridade reconhecidas até mesmo para que pudéssemos nos basear, em nossas discussões, no mesmo conjunto de fatos. E sem essa base empírica comum, o componente emocional da política se torna inflamado e a razão recua ainda mais. Quanto mais emotivo o candidato, mais seguidores ele ou ela terão.
Politicamente, no início tivemos sorte. Obama nunca teria sido nomeado para a Presidência, e muito menos eleito, se não tivesse aproveitado o poder da web e seu carisma de celebridade midiática. Mas ele também era, paradoxalmente, uma figura da elite, ex-senador estadual e federal, um produto da Escola de Direito de Harvard e, como se viu, um sujeito abençoado com um temperamento extraordinariamente racional e calmo. Por tudo isso ele foi capaz de mascarar, por um tempo, os verdadeiros riscos ao sistema que sua campanha pioneira revelava. Vem daí a frustração de muitos democratas em relação a ele. Aqueles que vislumbraram em sua campanha as sementes de uma mudança revolucionária, os que foram atraídos por ilusões messiânicas, sofreram uma decepção amarga com sua moderação e pragmatismo ao governar.
Mas o ambiente em que Obama obteve sucesso também criava as condições para oportunistas muito menos comedidos. Em 2008, Sarah Palin[13] surgiu como prova de que uma republicana fervorosa, distante do establishment político, feita sob medida para um reality show, orgulhosa de sua ignorância sobre o mundo – e que atingia o público de maneira direta, por meio da mídia online – também podia triunfar nesta nova era. Ela foi, como só depois saberíamos, uma espécie de João Batista para o verdadeiro messias do populismo conservador, esperando paciente e estrategicamente pela chegada do tempo messiânico.
Trump, como agora se sabe, vinha pensando em concorrer à Presidência havia décadas. Os que foram pegos de surpresa com sua aparição – ou continuaram a acreditar que ele era apenas uma piada – ainda não tinham compreendido bem os precedentes de Obama e de Palin, nem o poder desse novo sistema, totalmente aberto, para mudar as regras do jogo político. Trump foi tão subestimado durante todo o ano de 2015 quanto Obama havia sido em 2007 – e pelas mesmas razões. Ele intuitivamente compreendeu o enfraquecimento da autoridade das elites políticas e midiáticas no país, e já criara havia muito tempo uma persona pública perfeitamente calibrada para simplesmente passar por cima delas.
Apesar da imensa riqueza e dos privilégios que herdou, Trump sempre cultivou um ar de “gente comum”. Ele não escondia a própria riqueza – ele a ostentava de um modo que o fazia se conectar com as massas. Levava a vida de riqueza e conforto que é o sonho da maioria dos trabalhadores – muito luxo e incontáveis mulheres, por exemplo –, sem abrir mão de uma maneira de falar e ver o mundo que não soaria estranho nos canteiros de obras que costumava visitar.
Trump cultivou essa imagem e mais tarde se adaptou aos reality shows da tevê com um talento natural. A cada semana, durante as catorze temporadas de O Aprendiz, ele olhava alguém nos olhos e dizia: “Você está demitido!” Esse tipo de conversa com um funcionário, temida por chefes com alguma capacidade de empatia, era algo que deleitava Trump, sem dúvida; e a crueldade se tornou entretenimento. Olhando em retrospecto, parece evidente que ele estava treinando – tanto a si mesmo como aos espectadores. Se você queria compreender como uma figura tão amplamente detestada conseguiu, mesmo assim, chegar à eleição presidencial como se estivesse se aproximando dos episódios finais de um reality show, eis aqui a resposta. As táticas televisivas de Trump, aplicadas aos debates das primárias, acabaram por aniquilar rivais acostumados a outro tipo de jogo. E todo o nosso treinamento em reality shows nos condicionou a ter esperança de que ele seria o vencedor – ou, pelo menos, que ele permaneceria no jogo até a rodada final. Num ambiente de mídia assim, despido de qualquer pudor, muitas vezes os cretinos vencem. E no final você torce por eles justamente porque são cretinos.
O clássico ensaio de 1951 de Eric Hoffer, Do Fanatismo: O Verdadeiro Crente e a Natureza dos Movimentos de Massa, esboça a dinâmica de um genuíno movimento de massa. Hoffer tinha em mente as turbulências na Europa da primeira metade do século XX, mas o livro continua a dar o que pensar, sobretudo agora. O insight central de Hoffer foi localizar a origem de todos os verdadeiros movimentos de massa numa sensação coletiva de frustração aguda. Não desespero, tampouco revolta, nem resignação – mas frustração, num crescendo.
Os movimentos de massa, ele observa (como também Tocqueville havia notado, séculos antes), raramente surgem quando a opressão ou a miséria estão no auge (digamos, em 2009); eles tendem a aparecer quando, ao que tudo indica, o pior já passou, mas o futuro não promete ser muito melhor (digamos, 2016). É quando a raiva começa a subir. Após o sofrimento da recessão ou do desemprego, e apesar do esforço e do trabalho duro, com os salários ainda estagnados ou em queda, o futuro se estende a nossa frente como uma espécie de alívio fora do alcance. Quando aqueles que ajudaram a criar a última recessão não precisam enfrentar suas consequências, mas ganham novas e fabulosas riquezas, a raiva vai aumentando.
As razões mais profundas, de longo prazo, para essa raiva que muitos sentem hoje nos Estados Unidos, não são difíceis de encontrar, embora muitos de nós, da elite, as tenhamos ignorado, vergonhosamente. Os empregos disponíveis para a classe operária já não exigem habilidade, nem oferecem a satisfação e a promessa de sentido capazes de mitigar o ferrão dos salários baixos e estagnados. Os caminhos bem conhecidos para a socialização – igreja, sindicato, associações dos veteranos de guerra – perderam vitalidade e importância, e o isolamento social passou a ser cada vez mais comum. As forças econômicas globais vêm golpeando os operários mais implacavelmente do que os demais segmentos da sociedade, obrigando-os a competir contra centenas de milhões de trabalhadores igualmente qualificados de todo o planeta. Ninguém lhes perguntou, nos anos 90, se era esse o futuro que eles queriam. E o impacto tem sido mais brutal do que muitos economistas previam. Não admira que o suicídio e os índices de mortalidade entre os trabalhadores brancos pobres estejam aumentando dramaticamente.
“Em geral são aqueles cuja pobreza é relativamente recente, os ‘novos pobres’, que se agitam com o fermento da frustração”, argumenta Hoffer. A religião fundamentalista há muito oferece algum consolo e apoio emocional para os que foram deixados para trás (entre outras razões, porque convida seus praticantes a desafiar as elites, censurando-as como imorais), mas sua influência diminuiu à medida que a modernidade foi penetrando em quase todas as áreas da vida.
Vivemos numa época em que uma mulher poderá suceder a um negro na Presidência, mas também uma época em que um homem branco da classe trabalhadora tem cada vez menos oportunidades para alcançar um nível de vida decente. Uma época em que os gays podem se casar nos cinquenta estados americanos e em que, ao mesmo tempo, as famílias da classe trabalhadora experimentam enormes dificuldades financeiras. Uma época em que nos tornamos muito mais conscientes das injustiças históricas que continuam afetando os afro-americanos, mas ainda assim quase nos esquecemos das enormes dificuldades enfrentadas pela classe trabalhadora branca. E assim o capitalismo avançado vai criando uma espécie de ira justa, uma revolta revolucionária que a democracia avançada tem pouquíssima capacidade para moderar ou limitar – algo que, na verdade, a democracia ajudou a exacerbar.
Pois a classe trabalhadora branca, ao assistir a seus valores morais serem ridicularizados, sua religião ser considerada primitiva e suas perspectivas econômicas dizimadas, agora descobre que até mesmo o sexo e a raça a que pertencem – na verdade, a própria forma como falam sobre a realidade – são vistos como uma espécie de problema que o país deve tentar superar. Esse é apenas um dos aspectos daquilo que Trump chamou, magistralmente, de metástase do “politicamente correto”. Ou, na verdade, algo que poderia ser mais bem descrito como uma renovada e crescente paixão progressista por igualdade racial e sexual – uma igualdade de resultados, e não a aspiração liberal à mera igualdade de oportunidades.
Grande parte da esquerda passou a ver a classe trabalhadora branca não mais como uma aliada, mas basicamente como um grupo de pessoas preconceituosas, misóginas, racistas e homofóbicas, condenando os que estão muitas vezes nos degraus mais baixos da economia a ficar também no degrau mais baixo da cultura. Um homem branco que passa dificuldades no interior do país agora também tem que ouvir, dos estudantes de universidades de elite, que ele precisa “considerar seus privilégios”. Mesmo se você concordar que existe o privilégio, é difícil não simpatizar com uma pessoa que é objeto desse tipo de desdém.
Essa parte da classe trabalhadora, já alienada, ainda tem que ouvir – e como poderia não ouvir? – os sermões, tão fáceis e loquazes, de que “os homens brancos heterossexuais” são a origem fundamental de todos os nossos males. Os trabalhadores sentem o cheiro da condescendência e das generalizações a respeito deles – atitudes que seriam repugnantes se dirigidas contra minorias raciais – e se veem, nas palavras de Hoffer, “deserdados e feridos por uma ordem injusta das coisas”.
E assim eles esperam, e vão acumulando desgostos, até que partem para o ataque. Esse foi um elemento da grande força emocional do Tea Party: não só o avanço das minorias raciais, dos gays e das mulheres, mas a demonização simultânea do mundo da classe trabalhadora branca, de sua cultura e seu modo de vida. Obama nunca pretendeu isso, mas ele se tornou um símbolo, para muitos, dessa marginalização cultural.
E quando o Tea Party tomou conta de Washington em 2010, quando por diversas vezes seus representantes chegaram a paralisar a execução do orçamento governamental, e ameaçaram a própria classificação de crédito dos Estados Unidos, e se recusaram a realizar as audiências necessárias para confirmar um juiz nomeado para a Suprema Corte, o establishment americano, da política e da mídia, interpretou esse tipo de comportamento como tudo, menos como o que realmente era: algo absolutamente novo e sem precedentes. Mas Trump enxergou o que os outros não viram, como observou Hoffer: “Os indivíduos frustrados e os verdadeiros crentes estão mais aptos a fazer previsões sobre o futuro do que aqueles que têm motivos para desejar a manutenção do status quo.”
Os movimentos de massa, argumenta Hoffer, se distinguem por sua “disposição para o faz de conta, […] sua credulidade e prontidão para tentar o impossível”. Colocamos, então, a pergunta: o que poderia ser mais impossível do que examinar, de uma hora para outra, cada pessoa que chega aos Estados Unidos em busca de indícios de uma possível crença islâmica? O que poderia ser mais faz de conta do que um grande e belo muro, estendendo-se ao longo de toda a fronteira com o México, pago pelo governo mexicano? O que poderia ser mais ingênuo do que acreditar que poderíamos pagar nossa dívida pública por meio de uma guerra global de comércio exterior? Num partido político convencional, e num discurso político racional, tais ideias provocariam riso e seriam excluídas da disputa, pois sua evidente inviabilidade as excluem de qualquer tipo de consideração séria. No entanto, no fervor emocional de um movimento de massas democrático, essas impossibilidades se tornam símbolos da esperança, emblemas de uma nova forma de fazer política. Sua atração consiste justamente na sua inviabilidade.
Mas o motor mais poderoso para tal movimento – aquilo que o faz crescer e tomar forma, o que o solidifica e permite com que crie raízes – é sempre a evocação do ódio. O ódio, como definiu Hoffer, “é o mais acessível e o mais abrangente de todos os elementos unificadores”. Assim Trump lançou a sua campanha afirmando que os imigrantes mexicanos ilegais são, de modo geral, uma população de estupradores e assassinos. Passou então para os muçulmanos, tanto no país como no exterior. E a certa altura acrescentou a esses dois inimigos – num golpe brilhante de astúcia – o próprio establishment republicano. O que torna Trump particularmente perigoso na história da política americana é a resposta que ele dá a esses três inimigos, ameaçando-os com coerção bruta e dominação.
E assim, depois de demonizar a maioria dos imigrantes mexicanos sem documentos, ele prometeu arrebanhar e deportar todos eles – 11 milhões de pessoas –, à força. “Eles têm que ir embora”, foi a frase usada por Trump, sem rodeios – e de algum modo as pessoas não reconheceram de imediato os monstruosos ecos históricos do que estava sendo dito.
Chamar isso de fascismo não faz justiça ao fascismo. O fascismo tinha, em certa medida, uma ideologia e uma coerência de ocasião que Trump não tem de modo algum. Mas seu movimento é claramente fascista na demonização dos estrangeiros, na promoção da ideia de que uma minoria nacional representa uma ameaça (muçulmanos e mexicanos são os novos judeus), em seu foco num único líder supremo, líder de algo que só pode ser chamado de culto, e sua profunda crença na violência e na coerção como instrumentos aceitáveis, no seio de uma democracia que até agora se baseou no debate e na persuasão. Esse é o aspecto República de Weimar de nosso momento atual. Nossa hiperdemocracia paralisada, emocional, leva eleitores abalados, frustrados, irados, em direção à panaceia quimérica que é Trump.
Sua reação ao terceiro de seus inimigos declarados, a Convenção Nacional Republicana, responsável por escolher formalmente, no mês que vem, o candidato do partido, também estava infundida de ameaças de violência. Haveria tumultos em Cleveland (onde acontecerá a convenção, em julho) se ele não conseguisse o que queria. A convenção vai ter “problemas” se não cooperar, ele chegou a ameaçar. Em abril, delegados escolhidos para ir à convenção de Cleveland receberam ameaças de morte; um dos capangas de Trump, Roger Stone,[14] já ameaçou publicar o número do quarto de hotel de cada delegado que se recusar a votar no magnata do ramo hoteleiro.
O que é notável nos apoiadores de Trump é precisamente o que se esperaria de membros de um movimento de massas: a lealdade a toda prova. Trump é seu líder, ainda que tenham dificuldades em explicar por quê. Ele é durão, ele é verdadeiro, dizem – e eles estão prontos a defendê-lo, sobretudo quando é atacado por todos aqueles que passaram a desprezar: democratas liberais e republicanos tradicionais. Nos comícios, sempre que um manifestante contra Trump é retirado do local, quase se pode sentir a raiva crescente da identidade coletiva canalizada contra um único dissidente solitário, encontrando uma forma de catarse na força bruta que uma multidão é capaz de infligir a um indivíduo. Trump já disse à multidão, em seus comícios, que teve vontade de dar um murro na cara de um manifestante, ou que gostaria de vê-lo ser posto para fora numa maca. Nenhum político moderno tão perto da Presidência chegou a defender a violência dessa maneira. Poderia ser um elemento suficiente para desqualificá-lo da disputa – se a nossa hiperdemocracia já não tivesse abolido as desqualificações.
E embora ainda esteja faltando um elemento crítico do fascismo do século XX – a violência de rua organizada –, podemos começar a vê-lo em forma embrionária. A falange de guarda-costas ao redor de Trump aumenta a cada dia; surgiram seguranças à paisana na multidão, como pseudopoliciais para conter a agitação incipiente que sua candidatura só vai continuar a provocar; partidários de Trump atacaram manifestantes contrários com uma ferocidade por vezes impressionante. E a cada vez que Trump legitima a violência potencial de seus partidários dizendo que ela provém do amor ao país, ele planta as sementes da desordem.
Trump celebra a tortura – o único verdadeiro amor dos tiranos em toda parte. Em seus comícios, ele relatou a lendária reação de um certo general John J. Pershing, quando confrontado com um suposto surto de terrorismo islâmico nas Filipinas. Pershing, segundo conta Trump, colocou em fila cinquenta prisioneiros muçulmanos, mergulhou os projéteis que usaria para executá-los na banha de porcos recém-abatidos, e ordenou aos seus homens que usassem essas balas, em seus rifles, para matar 49 dos 50 militantes islâmicos capturados. A vida de um deles teria sido poupada, na narrativa do candidato republicano, para que pudesse voltar e contar o que aconteceu a seus amigos. Fim do problema do terrorismo.
De certa forma, essa história contém todos os elementos básicos da atração exercida por Trump. O intrincado problema de combater o terrorismo jihadista? Basta torturar e matar um número suficiente de terroristas e eles vão sumir do mapa. A intrincada questão dos trabalhadores ilegais, atraídos por empregos que muitos americanos não querem? Deportá-los todos, um por um, e construir um muro para conter os restantes. Foda-se o politicamente correto. Como disse um de seus partidários, quando um repórter lhe perguntou se apoiava Trump: “Claro que sim! Com ele não tem conversa fiada. O que ele tem é colhão. Foda-se todo mundo – para mim, o negócio é ter colhão.” É aí que reside o apelo dos tiranos, desde o início dos tempos. Irracionalidade e músculos.
O aspecto racial disso tudo também é óbvio. Quando o inimigo interno é mexicano ou muçulmano, e a base dos partidários é extremamente branca, está armado um esquema para um possível conflito racial. E o que de fato aterroriza em Trump é que ele não parece se esquivar dessa possibilidade: ele se deleita com ela. Pois, como todos os tiranos, ele é totalmente carente de autocontrole. Dormindo só algumas horas por noite, tuitando impulsivamente na madrugada, improvisando loucamente sobre assuntos dos quais não sabe nada, Trump vai espalhando suas bravatas e seus delírios. Mais uma vez, Platão acertou em cheio: o tirano é um homem “que, sem ter controle sobre si mesmo, tenta governar os outros”; um homem inundado de medo, amor e paixão, mas com pouca ou nenhuma capacidade de refrear ou moderar esses sentimentos; “um verdadeiro escravo da bajulação”. Soa familiar? Trump é tão inconstante, tão imprevisível e tão emocional como um fluxo de comentários no Twitter. E eis que estamos contemplando a possibilidade de lhe entregar os códigos de acesso às armas nucleares.
Aqueles que acreditam que o populismo abjeto e brutal de Trump não tem nenhuma chance de chegar à Casa Branca não compreendem essa dinâmica, me parece. Os movimentos neofascistas não avançam de maneira gradual, valendo-se de sua capacidade de persuasão; eles primeiro transformam os termos do debate, criam um novo movimento baseado na emoção sem freios, assumem o comando das instituições existentes e então tiram proveito, sem comedimento, de tudo que acontece a seu redor. Assim, as atuais pesquisas de opinião só são tranquilizadoras[15] se ignorarmos o potencial de impacto de algum evento repentino, externo – uma recessão econômica, ou um ataque terrorista a uma grande cidade americana antes da eleição. Não tenho dúvida, por exemplo, de que Trump é sincero em seu desejo de “cortar a cabeça” do Estado Islâmico, seja lá o que isso queira dizer. Mas permanece o fato de que os interesses do Estado Islâmico e da campanha de Trump estão agora em perfeita sintonia. O medo é sempre o maior aliado do aspirante a tirano.
E embora as opiniões desfavoráveis sobre Trump sejam extraordinariamente altas (por volta de 65% do eleitorado), ele já começa a dar sinais de mudança de tom, adotando (aos trancos) as maneiras mais solenes e respeitáveis que pretende apresentar na eleição geral. Suspeito que isso dê, para alguns idiotas em cima do muro, uma espécie de alívio. Os tiranos, tal como os chefões da máfia, conhecem o valor de um sorriso: justamente devido ao medo que ele já gerou, você quer, desesperadamente, acreditar no calor humano que ele agora transmite. Com o apelo a sua base já garantido, Trump pode muito bem se encaminhar para posições mais moderadas em questões sociais, como o aborto ou os direitos dos gays e até mesmo dos transexuais. Ele é coerente na sua incoerência, pois para ele a única coisa que conta é a vitória.
Trump, ademais, tem um argumento de uma força preocupante contra sua adversária democrata – ou “Hillary, a Trambiqueira”, como ele agora a chama. A proposta do republicano é simples. Lembrem-se da pergunta básica do marqueteiro James Carville[16] na eleição de Bill Clinton, em 1992: mudança ou continuidade? No passado, esse desejo de mudança elegeu o marido de Hillary, e pode muito bem eleger o adversário dela neste ano. Se você gosta do país tal como ele é, vote em Clinton. Afinal, ela faz parte da elite política americana há um quarto de século. Além disso, ela não vem mostrando capacidade de inspirar ou arregimentar ninguém exceto seus velhos e leais partidários.
As opiniões desfavoráveis a Hillary estão apenas onze pontos abaixo daquelas dirigidas a Trump (muito mais elevadas do que as que Obama, John Kerry ou Al Gore enfrentavam nessa mesma etapa da campanha). E quanto mais Hillary faz campanha, mais aumentam as opiniões desfavoráveis a ela (inclusive em seu próprio partido). Hillary tem um problema parecido com o do ex-vice-presidente e candidato democrata Al Gore: a ideia de recebê-la em nossa sala de estar durante os próximos quatro anos pode parecer, às vezes, francamente masoquista.
Pode acontecer que a evolução demográfica dos eleitores venha nos salvar. Os Estados Unidos já não são mais um país predominantemente branco, e a questão central para Trump – a imigração ilegal – é a origem da sua força, mas também da sua fraqueza. No entanto, é interessante notar como os modelos de pesquisa de opinião vêm se enganando repetidamente quanto à amplitude do apoio a Trump. Provavelmente ele fará de tudo para incluir as minorias em sua campanha no segundo semestre; e aqueles que acreditam que ele não conseguirá convencer um grande número de eleitores brancos a se engajar novamente no processo político – e votar – devem se lembrar de 2004, quando Karl Rove ajudou a elaborar emendas constitucionais estaduais contra o casamento gay, aumentando assim o número de conservadores que foram às urnas. Tudo que Trump precisa é de uma fração dos votos das minorias, inspirados pela nova energia de sua campanha – e o alegado predomínio da “coalizão” de eleitores que elegeu Obama pode rachar (sobretudo sem Obama como candidato). Nos últimos anos tem se constatado, em todo o Ocidente, da França à Grã-Bretanha e à Alemanha, que as pesquisas de opinião não são capazes de captar o poder de insurgência da direita.
Caso Trump conquiste a Casa Branca, as defesas institucionais contra ele seriam fracas. Ele provavelmente traria uma maioria republicana para a Câmara. O atual impasse de 4 a 4 na Suprema Corte[17] iria ser desfeito em seu favor. E se as medidas propostas por Trump fossem barradas pelos outros braços do governo, como ele reagiria? Basta ver sua reação às regras do processo de nomeação do Partido Republicano. Ele não está interessado em regras. E mal compreende a Constituição.
Num momento revelador, no início deste ano, perguntaram a Trump o que ele faria se os militares se recusassem a obedecer alguma ordem ilegal sua, como a de torturar um prisioneiro. Trump simplesmente insistiu que o militar iria obedecer: “Eles não vão recusar. Eles não vão recusar, acredite no que estou dizendo.” Mais tarde ele voltou atrás, mas essa afirmação diz muito sobre sua maneira de ver o poder. O ex-vice-presidente Dick Cheney deu ordens ilegais para torturar prisioneiros e coagiu advogados da Casa Branca a elaborar defesas “legais” absurdas. Trump faria as atitudes de Cheney parecerem modestas e sem ambição.
Em seu romance It Can’t Happen Here [Não Pode Acontecer Aqui], de 1935, Sinclair Lewis imaginou o que aconteceria se o fascismo, na época se alastrando pela Europa, triunfasse também nos Estados Unidos. Não é um bom romance, mas sua mensagem continua a ressoar. O líder fascista americano imaginado por Lewis, um senador chamado Buzz Windrip, é, segundo o autor, um “Homem Comum de Carteirinha”.
Windrip “era vulgar, quase analfabeto, um mentiroso público facilmente detectável e, em suas ‘ideias’, quase um idiota”. Por mais fantásticas e vazias que sejam suas promessas, ele consegue magnetizar os fiéis do partido na convenção de nomeação (realizada em Cleveland!): “Ele estava lhes dizendo as verdades, os fatos imperiosos e perigosos que haviam sido ocultados deles todos.”
E quanto às elites que lhe impediam o caminho? Aleijadas por seus próprios fracassos, desacreditadas e moralmente em ruínas, elas primeiro zombam, e depois cedem. Como lamenta um jornalista solitário, que acabará num campo de concentração: “Tenho que me lembrar sempre […] de que Windrip é apenas uma rolha de cortiça levada pelo redemoinho. Ele não tramou essa coisa toda. Com todo o descontentamento justificado que existe contra os políticos espertos e a ostentação da plutocracia – ah, se não fosse um Windrip, seria algum outro […]. Nós merecemos isso, nós, os Respeitáveis.”
E agora, 81 anos depois, muitos de nós merecemos isso. Uma elite americana que vem gerindo uma dívida pública enorme e crescente, que não conseguiu impedir os ataques de 11 de setembro de 2001, que optou por entrar numa guerra desastrosa no Oriente Médio, que permitiu que os mercados financeiros quase destruíssem a economia mundial, e que está agora tão acerbamente dividida que o Congresso se tornou, numa democracia constitucional, irrelevante para todos os efeitos práticos: “Nós, os Respeitáveis” merecemos uma justa punição. A lição fundamental do fenômeno Trump é de que, se as elites não conseguem fazer um governo de conciliação, alguém de fora acabará tentando governar mediante a paixão popular e a força bruta.
Mas as elites ainda têm importância numa democracia. Elas importam não porque sejam inimigas da democracia, mas porque fornecem o ingrediente fundamental capaz de salvar a democracia de si mesma. O establishment político pode estar abatido e desmoralizado, curvando-se perante os monossílabos de um demagogo talentoso, mas este não é o momento de desistir dessa mistura estabilizadora, quase exclusivamente americana, entre democracia e responsabilidade das elites. O país já passou por períodos muito mais difíceis, sem sucumbir à pura demagogia; evitou o fascismo que destruiu a Europa; conseguiu canalizar impulsos extraordinários de energia democrática para formar uma ordem constitucional. Parece chocante argumentar que necessitamos das elites nesta era democrática – sobretudo quando vemos à nossa volta tanta desigualdade de riquezas e tantos fracassos das elites. Mas precisamos delas exatamente para proteger esta preciosa democracia contra seus próprios excessos desestabilizadores.
E, assim, os democratas que alegremente preveem uma vitória fácil para Hillary Clinton em novembro precisam conter seu entusiasmo, e também compreender que a candidatura de Donald Trump não pode mais ser tratada apenas como uma oportunidade de regozijo diante das dificuldades do campo republicano. A situação é muito mais perigosa. Aqueles que ainda apoiam o demagogo da esquerda, Bernie Sanders, poderiam talvez perceber que a crítica que fazem à experiência e à competência de Hillary Clinton – e a maneira leviana com que associam experiência e competência à ideia de corrupção – serve apenas aos interesses de Trump. O fato de que vai recair sobre Clinton a tarefa de moderar as ambições de seu partido será algo difícil de assistir, já que sua disposição para negociar e tergiversar é precisamente o que faz muitos americanos não confiarem nela. E no entanto Hillary será tudo o que restará, tudo o que teremos, muito em breve, para combater a ameaça de Trump. Ela precisa compreender a capacidade mortal de seu inimigo; moderar o recurso ao tipo de política identitária que, involuntariamente, acaba por dar ainda mais força a ele; afirmar, com convicção, que a experiência e a moderação não são vícios; e também abordar muito mais diretamente as angústias da classe trabalhadora branca. Os demais integrantes e eleitores do Partido Democrata, por seu lado, deveriam escutá-la.
Por fim, o que talvez seja o mais relevante – aqueles republicanos ainda capazes de resistir à nomeação de Donald Trump, um candidato radicalmente distante dos valores conservadores, merecem nosso apoio ardoroso, não nosso desdém. Este não é o momento de lembrá-los de que eles próprios, em parte, foram os causadores disso. É o momento de lhes oferecer solidariedade, sobretudo agora que a batalha pela indicação está perdida. Uma candidatura independente, por um terceiro partido, de uma figura da direita tradicional, como Mitt Romney, ainda é tecnicamente viável; ainda é possível, também, que haja uma luta ranhida na convenção de Cleveland contra as políticas neofascistas de deportação em massa, discriminação religiosa e crimes de guerra que Trump propõe; e, na falta disso, se houver no segundo semestre uma forte tomada de posição pública por parte de republicanos, em nome de seus valores, contra o candidato do partido, ainda seria possível influenciar os eleitores indecisos nos estados decisivos.
Acima de tudo, esses republicanos da velha guarda, agora sob intensa pressão, devem resistir a qualquer tentação de lealdade ao partido e apoio ao candidato, ou então se abster de votar na eleição presidencial. Devem lutar contra ele em todas as oportunidades, unir-se aos democratas e aos independentes, e estar preparados para sacrificar uma eleição a fim de salvar o partido e o país. Outros republicanos precisam dizer o que alguns já declararam: que realmente prefeririam ver Hillary Clinton como presidente do que o monstro que sua base partidária lançou contra o país e o mundo.
Pois Trump não é apenas um político meio maluco da extrema direita, ou um divertido espetáculo de televisão, ou um fenômeno do Twitter e um bizarro herói da classe trabalhadora. Não é apenas mais um candidato a ser analisado e destrinchado pelos comentaristas de tevê, como todos os outros. Em relação a nossa democracia liberal e a nossa ordem constitucional, Trump é um evento devastador. Já está mais do que na hora de começarmos a tratá-lo como tal.
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[1] Hotéis e cassinos de Donald Trump sediaram campeonatos de luta livre desde os anos 90, e ele próprio teve sua imagem associada a essa mistura de esporte e espetáculo, fazendo aparições nos eventos e promovendo lutas.
[2] O magnata da construção e do setor hoteleiro ficou conhecido do grande público ao comandar um reality show – The Apprentice [O Aprendiz] – em que, semanalmente, demitia um dos participantes, sempre com a frase, que virou bordão, You’re fired [Você está demitido]. Uma versão brasileira do mesmo programa foi apresentada pelo empresário Roberto Justus.
[3] Com o assassinato de Robert Kennedy, um dos pré-candidatos, os delegados que deveriam apoiá-lo na convenção ficaram livres para votar em qualquer um dos outros postulantes, criando assim maior margem de manobra para as negociações de bastidor por parte dos figurões do partido. Numa convenção confusa, marcada por protestos contra a Guerra do Vietnã, o escolhido acabou sendo o então vice-presidente Hubert Humphrey, favorável à continuidade do conflito militar no Sudeste Asiático e representante da elite do partido – ele conseguiu a maioria dos votos apesar de não ter participado de várias primárias estaduais. Em reação ao conturbado processo de escolha do candidato em 1968, o partido decidiu estabelecer novas regras, mais claras e democráticas, para a escolha de seus delegados, seguidas desde então.
[4] Empresário que concorreu à Presidência, como candidato independente, em 1992 e 1996.
[5] Líder negro, candidato à Presidência nas primárias democratas de 1984 e 1988.
[6] Dono e editor da revista Forbes, concorreu nas primárias republicanas em 1996 e 2000.
[7] Executivo que concorreu nas primárias presidenciais republicanas em 2012.
[8] Neurocirurgião que concorreu nas primárias republicanas deste ano.
[9] Executiva de sucesso que também se lançou como candidata nas primárias republicanas de 2016.
[10] No voto direto, popular, o candidato democrata na eleição presidencial de 2000, o então vice-presidente Al Gore, recebeu um número maior de escrutínios que seu rival, George W. Bush. O candidato republicano, contudo, conseguiu maioria no Colégio Eleitoral e foi eleito presidente. O resultado foi anunciado depois que a Suprema Corte decidiu interromper a recontagem manual de votos da Flórida, o que poderia ter revertido, a favor de Gore, a vitória eleitoral de Bush naquele estado.
[11] Filho do ex-presidente George H. W. Bush e irmão do ex-presidente George W. Bush, Jeb é um representante do establishment político e integra a elite econômica do país.
[12] Talk shows de direita, transmitidos pelo rádio, que se tornaram muito populares nos Estados Unidos da década de 90 em diante.
[13] Governadora do estado do Alasca, escolhida como candidata a vice-presidente na chapa republicana de 2008.
[14] Lobista e consultor político republicano, próximo a Trump.
[15] Hillary Clinton liderava as pesquisas quando o texto foi publicado nos Estados Unidos, no início de maio. Um mês depois, a diferença entre ela e Trump caiu brutalmente.
[16] Um dos principais estrategistas da campanha de Bill Clinton, também conhecido por ter cunhado a frase “É a economia, estúpido” para explicar o que decidiria a eleição, naquele ano.
[17] Com a morte do juiz Antonin Scalia, a Suprema Corte americana, composta formalmente por nove integrantes, ficou dividida entre quatro juízes tidos como conservadores e quatro mais liberais, progressistas. Os republicanos têm se recusado a votar a indicação de Obama para o cargo que está vago, prolongando o impasse.
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