Nos anos 80, nutricionistas recomendaram reduzir gordura e colesterol. Em vez de ficarmos mais saudáveis, estamos mais gordos e doentes ILUSTRAÇÃO: FILIPPO ALESSANDRO CURZI
Conspiração amarga
Se há muito se sabe que o açúcar é o vilão, por que a gordura pagou o pato durante tanto tempo?
Ian Leslie | Edição 117, Junho 2016
Robert Lustig trabalha como endocrinologista pediátrico na Universidade da Califórnia, especializado no tratamento da obesidade infantil. Em 2009, ele proferiu a palestra “Açúcar: a amarga verdade”, que teve mais de 6 milhões de visualizações no YouTube. No decorrer de uma hora e meia, Lustig defende com veemência que a frutose, um açúcar onipresente na alimentação moderna, é o “veneno” responsável pela epidemia de obesidade nos Estados Unidos. Cerca de um ano antes da divulgação do vídeo, o endocrinologista havia dito algo semelhante numa conferência de bioquímicos em Adelaide, na Austrália. À época, um cientista na plateia o abordou, perguntando-lhe se já lera Yudkin. Diante da negativa de Lustig, o cientista lhe explicou que John Yudkin havia sido o catedrático britânico da área de nutrição que, em 1972, fizera soar o alarme contra o açúcar, no livro Pure, White, and Deadly [Puro, Branco e Fatal].
“Se apenas uma fração dos efeitos que sabemos decorrentes do açúcar fosse atribuída a qualquer outro ingrediente adicionado a nossa alimentação”, escreveu Yudkin, “tal ingrediente seria banido de imediato.” O livro vendeu bem, mas Yudkin pagou caro. Nutricionistas de renome se aliaram à indústria alimentícia com o intuito de destruir a reputação do professor, e sua carreira jamais se recuperou. Ele morreu em 1995, decepcionado e, de certo modo, esquecido.
Talvez o cientista australiano buscasse abrir os olhos de Lustig, prevenindo-o do risco que corria ao embarcar numa campanha de tamanha visibilidade contra o açúcar. Hoje, porém, o vento sopra a favor dele. Quase toda semana saem novas pesquisas sobre o efeito nocivo que essa substância produz no corpo humano. Nos Estados Unidos, a edição mais recente do guia alimentar publicado pelo governo federal recomenda uma diminuição do consumo de açúcar. No Reino Unido, o secretário do Tesouro anunciou nova tributação das bebidas açucaradas. Em nossa dieta alimentar, o açúcar tornou-se o inimigo número 1.
Trata-se de uma mudança radical: ao longo das três últimas décadas, no mínimo, o papel de arquivilão era atribuído à gordura saturada. No momento em que Yudkin fazia sua pesquisa, nos anos 60, uma nova ortodoxia nutricional se afirmava: a alimentação saudável deveria ser pobre em gordura. Yudkin liderava um grupo cada vez menor de dissidentes que creditava ao açúcar – e não à gordura – a causa mais provável de males como obesidade, doença cardíaca e diabetes. Quando seu livro saiu, o comando da área estava nas mãos de adeptos da hipótese da gordura. Yudkin se viu lutando uma batalha praticamente perdida, e foi derrotado.
Na verdade, não apenas derrotado, mas também enterrado. Ao voltar à Califórnia, Lustig procurou Pure, White, and Deadly nas livrarias físicas e virtuais, em vão. Fez um requerimento à biblioteca da universidade, e só então conseguiu um exemplar. Ao ler a introdução, levou um choque. “Uau!”, pensou. “Esse cara já tinha chegado lá 35 anos antes de mim!”
Em 1980, depois de extensa consulta a alguns dos maiores especialistas em nutrição dos Estados Unidos, o governo americano lançou seu primeiro guia alimentar, cujas diretrizes moldaram os hábitos de centenas de milhões de pessoas. Com base nelas, médicos aconselharam pacientes, a indústria alimentícia desenvolveu produtos adequados às suas determinações, e a influência do guia ultrapassou as fronteiras nacionais. Em 1983, o governo britânico recomendou práticas que seguiam de perto o exemplo americano.
A advertência que mais saltava aos olhos, fosse nos Estados Unidos, fosse no Reino Unido, dizia respeito à redução de gordura saturada e colesterol (pela primeira vez se aconselhava comer algo em menor quantidade, em vez de comer de tudo um pouco). Os consumidores obedeceram. Bifes e embutidos foram substituídos por massas e arroz, manteiga por margarina e óleos vegetais, ovos por cereais, leite comum por desnatado ou suco de laranja. Contudo, em vez de nos tornarmos mais saudáveis, ficamos mais gordos e mais doentes.
O exame de um gráfico com as taxas de obesidade no pós-guerra mostra que alguma coisa mudou depois de 1980. Nos Estados Unidos, o número de obesos sobe muito gradualmente, até que, no começo da década de 80, dispara. Em 1950, apenas 12% dos americanos eram obesos; em 1980, eram 15%; por volta do ano 2000, 35%. No Reino Unido, o número permanece estável por décadas, até meados dos anos 80, quando também sobe aos céus. Em 1980 os obesos eram 6%; nos vinte anos seguintes, essa porcentagem mais que triplicou. Hoje, dois terços dos britânicos são obesos ou estão acima do peso, o que faz do Reino Unido o país mais gordo da União Europeia. O diabete de tipo 2, intimamente relacionado à obesidade, aumentou nos dois países.
Na melhor das hipóteses, pode-se concluir que as diretrizes alimentares oficiais não atingiram seu objetivo; na pior, que ao longo de décadas elas provocaram uma catástrofe na saúde. Era natural que se buscassem os culpados. Cientistas são, em geral, figuras apolíticas, mas hoje em dia pesquisadores da ciência da nutrição assinam editoriais e escrevem livros que parecem panfletos de ativistas liberais, expressando indignação contra a “indústria do açúcar” e o fast-food. Alegou-se que ninguém teria podido prever como a indústria reagiria ao veto à gordura – isto é, vendendo-nos iogurte com baixo teor de gordura, mas entupido de açúcar, e bolos transbordantes de gordura trans, capaz de corroer nosso fígado.
Os cientistas nutricionais estão com raiva da imprensa, que teria distorcido suas descobertas; dos políticos, que não teriam prestado atenção a essas descobertas; e de nós todos, porque comeríamos demais e faríamos exercício de menos. Em suma, a culpa seria de todos – indústria, mídia, políticos, consumidores. Menos dos cientistas.
Mas não era tão impossível imaginar que a demonização da gordura poderia ser um equívoco. A energia que extraímos dos alimentos se apresenta sob três formas distintas: gordura, carboidrato e proteína. Como a quantidade de energia que obtemos das proteínas tende a permanecer estável, uma alimentação com baixo teor de gordura, qualquer que seja sua composição, na prática só pode significar uma dieta rica em carboidratos. O carboidrato mais versátil e palatável é o açúcar, que John Yudkin já circulara em vermelho. Em 1974, o periódico britânico de medicina Lancet havia alertado para os riscos das possíveis consequências de uma redução da gordura na alimentação: “A cura não pode ser pior que a doença.”
Ainda assim, seria razoável afirmar que Yudkin perdeu essa briga simplesmente porque, em 1980, havia mais indícios incriminando a gordura do que o açúcar.
Afinal, é assim que a ciência funciona, não é?
Se, como parece cada vez mais provável, as diretrizes nutricionais que seguimos por quarenta anos estavam profundamente equivocadas, tal erro não pode ser posto na conta dos bichos-papões das grandes empresas. Tampouco pode ser considerado um engano científico inócuo. O massacre sofrido por John Yudkin contradiz essa interpretação e sugere ter ocorrido um erro que os cientistas impuseram a si próprios – e, por consequência, a todos nós.
Tendemos a pensar que os hereges são pessoas que nadam contra a corrente, indivíduos inclinados a desafiar o conhecimento dominante. Às vezes, porém, um herege é apenas um pensador convencional que permanece olhando na mesma direção, ao passo que todos os demais passaram a olhar na direção contrária. Quando, em 1957, John Yudkin aventou pela primeira vez a possibilidade de o açúcar representar um perigo para a saúde pública, a hipótese foi levada a sério, assim como seu proponente. Ao se aposentar, catorze anos depois, tanto a teoria como seu autor haviam sido ridicularizados e marginalizados. Somente agora, postumamente, é que seu trabalho vem sendo reconduzido ao pensamento científico consolidado.
As guinadas na avaliação do legado de Yudkin pouco têm a ver com a metodologia científica: devem-se em grande medida ao comportamento não científico da ciência da nutrição ao longo dos anos. Essa história começou a vir à tona na última década, menos por obra de nutricionistas de peso do que por céticos em relação à ciência nutricional. Na pesquisa meticulosa que resultou no livro The Big Fat Surprise [A Surpresa Grande e Gorda], a jornalista Nina Teicholz investiga o postulado “gordura saturada provoca doença cardíaca”, e revela que a passagem de teoria controversa a verdade aceita não ocorreu pela comprovação, e sim graças à influência de umas poucas personalidades poderosas – e de uma delas em particular.
Teicholz também descreve como todo um establishment de importantes cientistas nutricionais, inseguro quanto à própria autoridade médica e atento a ameaças a ela, perpetrou tanto a defesa contínua e exagerada de uma alimentação com baixo teor de gordura, quanto o ataque a quem oferecia indícios ou argumentos contrários. John Yudkin foi apenas a primeira e mais célebre vítima.
Hoje, enquanto nutricionistas lutam para compreender um desastre que não previram – mas decerto podem ter deflagrado –, a ciência da nutrição passa por um doloroso período de reavaliação. Aos poucos, evita proibições relativas ao colesterol e à gordura, enquanto intensifica advertências ao uso do açúcar, sem, no entanto, recuar por completo. Seus representantes mais antigos, porém, seguem munidos de um instinto corporativo que os leva a difamar quem desafia, em alto e bom som, aquele conhecimento em ruínas. É isso que Teicholz vem experimentando nos últimos tempos.
Para entender como chegamos a esse ponto, é preciso remontar quase aos primórdios da moderna ciência da nutrição. Em 23 de setembro de 1955, Dwight Eisenhower sofreu um ataque cardíaco. Em vez de fingir que nada tinha acontecido, o presidente norte-americano fez questão de tornar públicos os detalhes de sua enfermidade. No dia seguinte, seu médico, dr. Paul Dudley White, deu uma entrevista coletiva na qual instruiu os americanos sobre como evitar doenças cardíacas: parar de fumar e reduzir tanto a gordura como o colesterol. Num artigo posterior sobre o mesmo assunto, White citou a pesquisa de um nutricionista da Universidade de Minnesota, Ancel Keys.
Doenças cardíacas, relativamente raras na década de 20, agora vitimavam homens de meia-idade em proporções assustadoras, razão pela qual os americanos puseram-se em busca da causa e da cura. Ancel Keys oferecia uma resposta: a “hipótese dieta-coração” (que, para facilitar, chamo aqui de “hipótese da gordura”). Trata-se da ideia, hoje bem conhecida, de que uma alimentação rica em gordura saturada – provinda de carne vermelha, queijo, manteiga e ovos – aumenta o colesterol, que, ao se solidificar no interior das artérias coronárias, torna-as mais rijas e estreitas, até que o fluxo de sangue se estanca e o coração para.
Keys era brilhante, carismático e combativo. Um colega e amigo da Universidade de Minnesota o descreveu como “direto a ponto de ser rude, e crítico a ponto de ser agressivo”. Outros foram menos generosos. Ele exalava convicção numa época em que a confiança era muito bem-vinda. Presidente, médico e cientista compuseram uma cadeia tranquilizadora de autoridades masculinas, e a ideia de que alimentos gordurosos eram prejudiciais à saúde passou a reinar entre médicos e público. (O próprio Eisenhower cortou completamente a gordura saturada e o colesterol de sua dieta, até sua morte, de doença cardíaca, em 1969.)
Muitos cientistas, sobretudo os britânicos, permaneceram céticos. O mais destacado desses céticos era John Yudkin, à época o principal nutricionista do Reino Unido. Quando ele examinou os dados referentes a doenças cardíacas, surpreendeu-se com sua correlação entre o consumo de açúcar, e não de gordura. Procedeu, então, a uma série de experimentos com animais e seres humanos, e observou, como outros já haviam constatado, que o açúcar é processado no fígado, onde se transforma em gordura antes de penetrar na corrente sanguínea.
Notou também que, embora os seres humanos sempre tenham sido carnívoros, os carboidratos só passaram a frequentar nossas refeições há 10 mil anos, com o advento da agricultura em massa. O açúcar, um carboidrato puro, sem fibras ou valor nutritivo, faz parte da alimentação ocidental há meros 300 anos – em termos evolucionários, é como se estivéssemos consumido a primeira dose neste exato segundo. A gordura saturada, pelo contrário, encontra-se intimamente atrelada a nossa evolução: ela é abundante, por exemplo, no leite materno. Para Yudkin, era mais provável que adoecêssemos não pela substância pré-histórica, mas pela inovação recente.
John Yudkin nasceu em 1910, em East End, na periferia de Londres. Filho de judeus russos que fugiram dos pogroms de 1905 e se estabeleceram na Inglaterra, ficou órfão de pai aos 6 anos – a mãe criou os cinco rebentos na pobreza. Yudkin obteve uma bolsa de estudos e conseguiu chegar a Cambridge, onde estudou bioquímica e fisiologia, antes de se dedicar à medicina. Durante a Segunda Guerra Mundial serviu no Exército como médico, e depois se tornou catedrático do Queen Elizabeth College em Londres, onde montou um departamento de ciência da nutrição de renome internacional.
Ancel Keys tinha plena e total consciência de que a hipótese do açúcar contrariava sua teoria. A cada publicação de Yudkin, o americano massacrava tanto o artigo como o autor. Referiu-se à teoria do colega como “uma montanha de absurdos” e acusou-o de publicar “propaganda” das indústrias de carne e laticínio. “Yudkin e seus apoiadores comerciais não se deixam abater por fatos”, afirmou. “Continuam a recitar a mesma cantilena descreditada.” Yudkin jamais respondeu no mesmo tom. Era um homem de maneiras suaves, despreparado para a arte do combate político.
Tal característica o tornou vulnerável a ataques, e não apenas aos de Keys. O Instituto Britânico do Açúcar descartou suas postulações acerca do açúcar – seriam “afirmações emotivas” – e a Organização Mundial para a Pesquisa do Açúcar considerou seu livro uma “ficção científica”. A prosa de Yudkin é precisa e comedida a ponto de ser aborrecida, como seu autor, que só de vez em quando alude à sensação de ver ridicularizada a obra de sua vida: “Podem os senhores imaginar que, às vezes, somos tomados pelo desalento e nos perguntamos se a dedicação à pesquisa científica na área da saúde vale a pena?”
Ao longo da década de 60, Keys acumulou poder, garantindo para si e para seus aliados assentos nas diretorias das mais influentes instituições americanas voltadas à saúde, entre as quais a Associação Americana do Coração e os Institutos Nacionais de Saúde [NIH, na sigla em inglês]. Autorizados por esses baluartes, os cientistas canalizaram fundos para pesquisadores com ideias semelhantes às deles e publicaram conselhos abalizados à nação. “As pessoas devem saber dos fatos”, Keys declarou à revista Time. “Depois, se quiserem comer até morrer, que comam.”
Essa aparente certeza não se justificava: mesmo defensores da hipótese da gordura admitiam que os indícios que a embasavam eram inconclusivos. Keys, contudo, tinha uma carta na manga. De 1958 a 1964, ele e seus colegas reuniram dados sobre alimentação, estilo de vida e saúde de um grupo de 12 770 homens de meia-idade na Itália, na Grécia, na antiga Iugoslávia, na Finlândia, na Holanda, no Japão e nos Estados Unidos. A monografia Estudo dos Sete Países, com 211 páginas, foi enfim publicada em 1970, mostrando uma correlação entre consumo de gordura saturada e morte por doença cardíaca, como Keys previra. O debate científico se rendeu à hipótese da gordura.
Keys era um homem de dados (um contemporâneo comentou: “Sempre que você questiona Keys, ele responde: ‘Eu tenho 5 mil casos, e você?’”). A despeito de sua importância, no entanto, o Estudo dos Sete Países não se sustentava. Não havia razão objetiva para que o autor escolhesse aqueles países, e é difícil não inferir que ele tenha selecionado apenas os que confirmariam sua hipótese. Afinal, é um feito e tanto eleger países europeus e deixar de fora a França e a então Alemanha Ocidental. Mas Keys já sabia que as taxas de doença cardíaca de franceses e alemães eram relativamente baixas, apesar da dieta rica em gordura saturada.
A maior limitação do estudo era inerente a sua metodologia. Uma pesquisa epidemiológica envolve a coleta de dados sobre o comportamento e a saúde das pessoas e, dentro desse universo pesquisado, a busca por padrões. Originalmente desenvolvida para estudar infecções, foi adaptada por Keys e seu sucessores para o estudo de doenças crônicas, as quais, ao contrário da maioria das infecções, demandam décadas para se desenvolver e, mais do que isso, apresentam-se enredadas em centenas de fatores alimentares e de estilo de vida, na prática inseparáveis uns dos outros.
Para poder identificar causas, e não correlações, de maneira confiável, é necessário estabelecer um padrão comprobatório mais elevado: o do experimento controlado. Em sua forma mais simples, recruta-se um grupo de pessoas, das quais a metade segue determinada dieta por, digamos, quinze anos. Ao final do experimento, avalia a saúde daquele grupo e a compara ao do grupo de controle – a outra metade, que não seguiu a dieta. Essa metodologia também é problemática: é virtualmente impossível supervisionar de perto a alimentação de grupos numerosos. Mas um experimento conduzido com propriedade é a única maneira de se concluir com alguma confiança que X é responsável por Y.
Ainda que Keys tivesse demonstrado uma correlação entre doença cardíaca e gordura saturada, sua pesquisa não excluía a possibilidade de que a cardiopatia estivesse sendo provocada por algum outro fator. Anos mais tarde, o principal pesquisador italiano do Estudo dos Sete Países, Alessandro Menotti, retornou aos dados originais e descobriu que o fator alimentar mais intimamente correlacionado com as mortes causadas por doença cardíaca não era a gordura saturada, e sim o açúcar.
Tarde demais. O Estudo dos Sete Países já se tornara canônico, e a hipótese da gordura, verdade sagrada travestida de conselho oficial. A comissão do Congresso americano incumbida do guia alimentar era presidida pelo senador George McGovern. Boa parte dos indícios disponíveis advinha da elite da ciência nutricional: pesquisadores de prestigiosas universidades, a maioria dos quais se conhecia ou trabalhava junto, e que eram unânimes em incriminar a gordura – uma suposição que McGovern e seus colegas senadores nunca questionaram a sério. Só de vez em quando eram solicitados a reconsiderá-la. Em 1973, John Yudkin foi chamado de Londres para dar seu testemunho e apresentou sua teoria alternativa acerca da doença cardíaca.
Perplexo, McGovern perguntou se ele estava de fato sugerindo que um alto consumo de gordura não era problemático, e que o colesterol não representava perigo.
“Exato”, Yudkin respondeu.
“Isso é precisamente o contrário do que meu médico me disse”, observou McGovern.
Em Does science advance one funeral at a time? [A ciência avança de funeral em funeral?], um artigo de 2015, uma equipe de pesquisadores do Escritório Nacional de Pesquisa Econômica saiu em busca de base empírica para uma observação feita pelo físico Max Planck: “Uma nova verdade científica não triunfa porque convence seus oponentes e os faz ver a luz, mas porque tais oponentes morrem e a geração que os sucede a conhece bem.”
Os pesquisadores identificaram, em diferentes áreas, mais de 12 mil cientistas que foram considerados “de elite”, segundo critérios como financiamento, publicações e integrar ou não a Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos e o Instituto de Medicina. Consultando obituários, a equipe encontrou 452 cientistas que haviam morrido antes de se aposentar. Em seguida, examinou o que aconteceu às áreas que esses celebrados pesquisadores haviam deixado precocemente.
Confirmou-se a máxima de Planck. Jovens pesquisadores que haviam trabalhado com os cientistas de elite, assinando artigos em parceria com eles, passaram a publicar menos. Ao mesmo tempo, houve, em cada área, acentuado aumento no número de publicações escritas por recém-chegados, menos inclinados a citar o legado das falecidas eminências. Os artigos dos novos pesquisadores, consistentes e persuasivos, atraíram grande número de citações. Foram os recém-chegados que provocaram o avanço de suas respectivas áreas.
Um cientista é parte daquilo que o filósofo da ciência Ludwik Fleck chamou de um “coletivo do pensamento”: um grupo de pessoas que, ao trocar ideias num idioma compreensível a todas elas, acaba por desenvolver uma mentalidade própria, na medida em que seus membros convergem para um mesmo modo de se comunicar, pensar e sentir.
Assim, a investigação científica está sujeita a reproduzir as leis eternas da vida social: deferência aos carismáticos, adoção da opinião majoritária, punição por desvios e intenso desconforto em admitir o erro. É claro que, precisamente para corrigir essas tendências, inventou-se a metodologia científica, que, no longo prazo, presta excelente serviço. No longo prazo, porém, estaremos todos mortos, e é bem possível que morramos mais cedo por termos seguido uma dieta baseada em conselhos ruins.
Numa série de artigos e livros consistentes – como Por Que Engordamos e o que Fazer para Evitar (L&PM, 2014) –, o jornalista científico Gary Taubes reuniu um conjunto de críticas à ciência da nutrição contemporânea que conquistou a atenção de profissionais da área. Em uma de suas contribuições, menciona pesquisas realizadas por cientistas alemães e austríacos antes da Segunda Guerra Mundial, uma produção que passou ao largo dos americanos que reinventaram essa área de estudos nos anos 50. Os europeus eram médicos praticantes e especialistas no sistema metabólico; entre os americanos, havia mais epidemiologistas, relativamente ignorantes em bioquímica e endocrinologia (o estudo dos hormônios). Tal desconhecimento foi o responsável por alguns dos erros básicos infiltrados nos alicerces da ciência nutricional moderna.
A ascensão e queda (lenta) do propagado perigo do colesterol é exemplar. Depois de detectarem colesterol nas artérias de pessoas que haviam sofrido ataque cardíaco, autoridades da saúde pública, aconselhadas por cientistas, incluíram ovos (as gemas são ricas em colesterol) na lista negra. No entanto, é um erro confundir o que é levado à boca com o que resultará depois da ingestão. O corpo humano, longe de ser um recipiente passivo de tudo aquilo que jogamos dentro dele, é uma indústria química em pleno funcionamento, que transforma e redistribui a energia recebida. O princípio que o governa é o da homeostase, ou o da manutenção do equilíbrio energético (se o exercício nos aquece, o suor nos refresca). O colesterol, presente em todas as nossas células, é produzido pelo fígado. Há tempos os bioquímicos sabiam que, quanto mais colesterol o sujeito ingere, menos o fígado produz.
Assim, não haveria de surpreender ninguém o fracasso de repetidas tentativas de comprovar a correlação entre o colesterol ingerido e o colesterol no sangue. Para a maioria das pessoas, comer dois, três ou 25 ovos por dia não resulta num aumento significativo dos níveis de colesterol. Um dos alimentos mais densamente nutritivos, versáteis e saborosos foi estigmatizado sem a menor necessidade. As autoridades da área da saúde passaram os últimos anos recuando desse erro bem devagar, supostamente na esperança de que, se não fizessem movimentos bruscos, ninguém notaria. Em certo sentido, foram bem-sucedidos: em 2014 o Credit Suisse promoveu uma pesquisa que mostrou que 54% dos médicos norte-americanos acreditam que o colesterol ingerido aumenta o colesterol no sangue.
A favor de Ancel Keys conta o fato de que ele logo percebeu que o colesterol ingerido não era problema. Mas, para sustentar que o colesterol provocava ataque cardíaco, ele precisava identificar um agente que aumentasse seus níveis no sangue – decidiu-se pela gordura saturada. Nos trinta anos que se seguiram ao ataque cardíaco de Eisenhower, testes e mais testes não conseguiram comprovar conclusivamente a associação que Keys afirmava ter identificado no Estudo dos Sete Países.
O establishment da ciência nutricional não ficou muito desconcertado com a ausência de prova definitiva, mas, em 1993, deu-se conta de que não podia se esquivar de outra crítica: as mulheres nunca haviam sido testadas, embora também lhes tivesse sido recomendada uma alimentação com baixo teor de gordura. O Instituto Nacional do Coração, Pulmão e Sangue resolveu apostar todas as suas fichas e encomendou o maior experimento controlado jamais realizado no campo das dietas alimentares. Além de interpelar a outra metade da população, a Iniciativa de Saúde da Mulher deveria dirimir toda e qualquer dúvida sobre os efeitos prejudiciais da gordura.
Não foi isso que aconteceu. Ao final do experimento, constatou-se que mulheres que seguiram uma dieta de baixo teor de gordura não estavam menos propensas a desenvolver câncer ou doença cardíaca. Os pesquisadores ficaram perturbados. O responsável pelo estudo, não muito disposto a aceitar as implicações de sua própria descoberta, observou: “Estamos quebrando a cabeça para entender parte desses resultados.” Sem demora, foram unânimes em admitir que – embora meticulosamente planejado, dotado de farto financiamento e supervisionado por pesquisadores de imponentes credenciais – o estudo certamente apresentava alguma falha bastante grave. A ciência da nutrição foi em frente. Ou melhor, não foi.
Pesquisadores de Oxford realizaram em 2008 um estudo por toda a Europa com o propósito de identificar as causas das doenças cardíacas. Os dados mostraram uma correlação inversa entre gordura saturada e cardiopatia: a França, país com o maior consumo de gordura saturada, possui a taxa mais baixa de doenças cardíacas; e a Ucrânia, a consumidora mais discreta, a mais alta. Quando a estudiosa britânica Zoë Harcombe analisou os níveis de colesterol de 192 países, descobriu que taxas menores estavam, na verdade, associadas a taxas superiores de morte por cardiopatia.
Nos últimos dez anos, uma teoria que, de alguma forma, sobreviveu sem comprovação por quase meio século tem sido rejeitada por diversas e abrangentes revisões dos indícios disponíveis, embora siga cambaleando, qual um zumbi, pelos guias alimentares e recomendações dos médicos.
Em 2008, a Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação analisou todos os estudos sobre a dieta com baixo teor de gordura, não encontrando “nenhum indício provável ou convincente” de que um alto consumo da substância causasse doença cardíaca ou câncer. Outra revisão que constituiu um marco, publicada em 2010 na Sociedade Americana de Nutrição e assinada por, entre outros, Ronald Krauss – pesquisador e médico altamente respeitado da Universidade da Califórnia –, afirmou não haver “indício significativo que conduza à conclusão de que a ingestão de gordura saturada esteja associada a risco maior de doença cardíaca coronária ou doença cardiovascular”.
Muitos nutricionistas se recusaram a aceitar essas conclusões. O periódico que publicou a revisão de Krauss, precavendo-se contra a indignação de seus leitores, precedeu-a de uma refutação por parte do ex-braço direito de Ancel Keys, que sugeriu que, como as descobertas de Krauss contradiziam toda e qualquer recomendação alimentar, nacional ou internacional, elas só poderiam estar erradas. A lógica circular do argumento é sintomática de um campo dotado de altíssima propensão a ignorar provas incompatíveis com seu saber convencional.
Gary Taubes é físico por formação. “Em física”, ele me disse, “você busca o resultado anômalo, e então precisa explicá-lo. Na ciência da nutrição, o costume é confirmar aquilo em que você e seus predecessores sempre acreditaram.” Como explicou um nutricionista a Nina Teicholz, valendo-se de sutil eufemismo: “Os cientistas acreditam que a gordura saturada faz mal, e há uma boa dose de relutância em aceitar prova em contrário.”
Quando a obesidade começou a ser encarada como um problema nas sociedades ocidentais, mais uma vez a culpa era da gordura saturada. Não foi difícil nos convencer de que, se comemos gordura, vamos ficar gordos – e a língua nos prega uma peça: uma pessoa com excesso de peso é “gorda”, mas outra com excesso de músculos não é “proteínica”. A simplicidade do argumento científico também agradava: 1 grama de gordura tem duas vezes mais calorias que 1 grama de proteína ou carboidrato, e todos somos capazes de compreender que, se uma pessoa ingere mais calorias do que despende em atividades físicas, o excedente será gordura.
Simplicidade, porém, não é sinônimo de correção. É difícil compatibilizar essa teoria com o aumento dramático da obesidade a partir de 1980, e com muitos outros indícios. Nos Estados Unidos, a ingestão média de calorias aumentou em apenas um sexto no período em questão. No Reino Unido, o consumo caiu. Em nenhum dos dois países houve declínio equivalente em atividades físicas – no Reino Unido, a prática de exercícios físicos aumentou nos últimos vinte anos. A obesidade também constitui um problema em algumas das regiões mais pobres do mundo, mesmo em comunidades onde a comida é escassa. Experimentos controlados falharam repetidas vezes na tentativa de demonstrar que, no longo prazo, as pessoas perdem peso quando aderem a uma dieta de baixos teores de gordura e calorias.
Aqueles pesquisadores europeus de antes da guerra teriam julgado ridiculamente simplista a ideia de que obesos ingerem um “excesso de calorias”. Bioquímicos e endocrinologistas são mais inclinados a considerar a obesidade um distúrbio hormonal deflagrado pelos alimentos que, ao reduzir a ingestão de gordura, consumimos em quantidade muito maior: amidos facilmente digeríveis e açúcares. Em seu novo livro, Always Hungry? [Sempre Faminto?], David Ludwig, endocrinologista e professor de pediatria na Escola de Medicina de Harvard, refere-se a esse modelo de obesidade como “insulina-carboidrato”. De acordo com esse modelo, um excesso de carboidratos refinados interfere no equilíbrio autorregulado do sistema metabólico.
O tecido adiposo, longe de ser um depósito inerte de calorias excedentes, opera como uma reserva de energia para o corpo. Suas calorias são requisitadas quando a glicose está baixa – isto é, entre as refeições ou durante jejuns e períodos de fome e escassez. A gordura recebe ordens da insulina, o hormônio responsável pela regulagem do açúcar no sangue. Carboidratos refinados transformam-se rapidamente em glicose no sangue, fazendo com que o pâncreas produza insulina. Quando os níveis de insulina sobem, o tecido adiposo recebe um sinal para drenar a energia do sangue e parar de liberá-la. Assim, se os níveis de insulina permanecem altos por tempo demasiadamente longo, o indivíduo engorda, tem mais fome e se sente fatigado. E nós ainda o culpamos por isso. No entanto, como afirma Gary Taubes, pessoas obesas não são obesas porque comem demais ou se exercitam de menos – elas comem demais e se tornam sedentárias porque estão gordas ou engordando.
Tanto quanto Taubes, Ludwig deixa claro que essa não é uma teoria nova – John Yudkin a teria reconhecido –, e sim uma velha teoria reavivada por novos indícios. O que ele não menciona é a histórica atuação dos defensores da hipótese da gordura em prol da demolição da credibilidade daqueles que a propuseram no passado.
Em 1972, ano em que Yudkin publicou Pure, White, and Deadly, um cardiologista formado pela Universidade Cornell, Robert Atkins, lançou A Dieta Revolucionária do Dr. Atkins. Embora divergissem no detalhe, os argumentos de ambos comungavam da mesma premissa: carboidratos são mais perniciosos que gordura. Yudkin concentrou-se nos males de um carboidrato em especial, o açúcar, mas não recomendou explicitamente uma dieta rica em gordura. Para Atkins, uma dieta rica em gordura e pobre em carboidratos era o único caminho para o emagrecimento.
Talvez a diferença mais importante entre os dois seja o tom. Yudkin soava calmo, polido e razoável, por seu temperamento e pelo fato de se identificar mais como cientista do que como clínico. Atkins, menos acadêmico, era um médico praticante que não se intimidou por convenções cavalheirescas. Demonstrou sua raiva por ter sido “enganado” por cientistas da área médica. Não surpreende, pois, que seu ataque tenha enfurecido o establishment da ciência nutricional, que revidou com força. Atkins seria uma fraude, e sua dieta, “moda passageira”. A campanha foi bem-sucedida: até hoje se associa seu nome a certo charlatanismo.
“Moda passageira” implica novidade. Contudo, as dietas pobres em carboidrato e ricas em gordura já eram populares mais de um século antes de Atkins e, até os anos 60, eram endossadas pela ciência como um método para perder peso. No início da década de 70, porém, isso mudou. Pesquisadores interessados no papel do açúcar e de carboidratos complexos na obesidade, confrontados com o destino do mais importante nutricionista do Reino Unido, logo perceberam o terrível passo que dariam caso seguissem essa linha de pesquisa.
A reputação científica de John Yudkin foi destruída. Convites para congressos internacionais de nutrição foram cancelados, seus artigos foram recusados. Colegas cientistas se referiam a ele como um sujeito excêntrico, um obsessivo solitário. Até que, por fim, a vida de Yudkin se transformou num pesadelo. Em 2011, Sheldon Reiser, um dos raros pesquisadores que ao longo dos anos 70 persistiu na investigação dos efeitos dos carboidratos refinados e do açúcar, disse a Gary Taubes: “Yudkin foi muito desacreditado; de certo modo, foi ridicularizado. Quem falasse mal da sacarose era logo estigmatizado: ‘Ele é igualzinho a Yudkin.’”
Se Yudkin era ridicularizado, Atkins era odiado. Apenas nos últimos anos se admitiu estudar o efeito de dietas semelhantes à dele. Em 2014, um experimento financiado pelos Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos arregimentou 150 homens e mulheres que foram divididos em dois grupos. Um deles seguiria uma dieta pobre em carboidratos; o outro limitaria a gordura – as calorias estavam liberadas para ambos. Ao final de um ano, as pessoas do primeiro grupo tinham perdido cerca de 3 quilos e meio a mais do que aquelas que ingeriram pouca gordura. Além disso, a probabilidade de perder peso em tecido adiposo mostrou-se maior entre os praticantes da dieta pobre em carboidratos; o grupo de baixo teor de gordura também perdeu algum peso, mas em músculos. O estudo dos NIH é apenas o mais recente de mais de cinquenta estudos similares – em todos eles, a perda de peso e o controle do diabete de tipo 2 foram mais eficazes em dietas pobres em carboidratos. Como comprovação científica, os resultados estão longe de serem conclusivos, mas apresentam a mesma coerência dos demais estudos que integram a literatura especializada.
A edição de 2015 do guia alimentar americano (revisado a cada cinco anos) em nenhum momento se refere a essa pesquisa mais recente, uma vez que os nutricionistas que assessoraram a comissão – os mais renomados e bem relacionados do país – negligenciaram qualquer discussão a respeito. Trata-se de uma omissão escancarada, inexplicável em termos científicos, mas perfeitamente compreensível do ponto de vista da política da ciência nutricional. Quem busca proteger a própria autoridade não tem motivo para chamar a atenção para indícios que contradigam as afirmações sobre as quais se funda essa autoridade. Se um único fio for puxado, o novelo todo pode ser desenrolado.
Talvez isso já tenha ocorrido. Em dezembro último, os responsáveis pelo relatório receberam uma humilhante reprimenda do Congresso – foi aprovada uma medida que propõe rever a maneira como o documento é compilado. A medida fazia referência a “questões relativas […] à integridade científica do processo”. Os cientistas reagiram com grande irritação, acusando os políticos de subserviência às indústrias da carne e dos laticínios (uma reação ousada, considerando-se o número de cientistas que dependem da indústria alimentícia e farmacêutica para obter financiamento para suas pesquisas).
Mas alguns deles concordam com os políticos. David McCarron, pesquisador associado do Departamento de Nutrição da Universidade da Califórnia em Davis, declarou ao Washington Post: “Tem muita coisa no documento que estava certa quarenta anos atrás, mas que, nesse meio-tempo, já se mostrou equivocada. Infelizmente, às vezes a comunidade científica não gosta de voltar atrás.” Steven Nissen, chefe do Departamento de Medicina Cardiovascular da Cleveland Clinic, foi mais direto, taxando o novo guia de “território livre de comprovações”.
A revisão votada pelo Congresso deveu-se em parte a Nina Teicholz. Desde que seu livro foi publicado, em 2014, ela se tornou uma defensora de melhores guias alimentares. A jornalista integra a diretoria da Nutrition Coalition, uma organização filantrópica voltada à garantia de uma política nutricional com base em ciência de qualidade.
Em setembro do ano passado, Teicholz escreveu um artigo para o BMJ (o antigo British Medical Journal) denunciando a inadequação das diretrizes científicas que norteiam o guia alimentar. A resposta do establishment foi feroz: 173 cientistas assinaram uma carta exigindo que o periódico se retratasse – alguns dos signatários integravam o conselho consultivo da publicação e, dentre estes, havia muitos cujas obras haviam sido criticadas pela jornalista.
Publicar uma réplica é uma coisa, mas solicitar a retratação de um artigo é outra, bem diferente, em geral reservada a casos envolvendo fraude. Como oncologista consultor do Serviço Nacional de Saúde, o sistema público de saúde do Reino Unido, Santhanam Sundar observou no site do BMJ: “A discussão científica ajuda a ciência a avançar. Pedidos de retratação de um artigo, sobretudo quando partem de pessoas em postos de destaque, contrariam a ciência e são claramente embaraçosos.”
A carta dos 173 cientistas lista “onze erros” que, lidos com atenção, vão do trivial ao totalmente capcioso. Falei com vários dos signatários. Todos se sentiram confortáveis em condenar o artigo em termos gerais, mas quando pedi que citassem apenas um dos supostos erros, nenhum deles foi capaz de fazê-lo. Um deles admitiu não ter lido o texto. Outra disse que assinara a carta porque o BMJ não deveria ter publicado um artigo não revisado por pares (o artigo foi, sim, revisado). Meir Stampfer, epidemiologista de Harvard, declarou que o trabalho de Teicholz está “repleto de erros”, mas se recusou a discuti-los comigo.
Embora reticentes quanto a discutir a essência do artigo, os cientistas se revelaram extremamente interessados em tecer comentários sobre a autora. Lembraram frequente e insistentemente que Teicholz é jornalista, e não cientista, e tem interesse em vender seu livro, como se isso encerrasse o assunto. David Katz, de Yale, um dos membros do conselho consultivo e incansável defensor das ortodoxias (ele próprio, aliás, autor de quatro livros sobre dietas), disse que a obra de Teicholz “cheira a conflito de interesses”, mas não especificou a que conflito se referia.
O dr. Katz não fantasia que sua área sempre esteve certa em tudo – admitiu já ter mudado de opinião, por exemplo, no tocante à ingestão de colesterol. Mas retornou várias vezes ao caráter de Teicholz. “É chocante como falta profissionalismo a Nina […] Eu já estive em salas lotadas do ‘quem é quem’ da ciência nutricional e nunca testemunhei rejeição tão unânime à menção do nome da sra. Teicholz. Nunca vi uma criatura como ela.” A despeito de meus pedidos, ele não mencionou nenhum exemplo sobre o comportamento não profissional da jornalista. (O veneno derramado sobre Teicholz raras vezes é aplicado a Gary Taubes, embora os dois se valham de argumentos essencialmente idênticos.)
Em março deste ano, convidaram Teicholz a participar de uma mesa-redonda sobre ciência da nutrição na National Food Policy Conference em Washington, mas logo voltaram atrás, depois que os debatedores deixaram claro que não sentariam à mesa com ela. Os organizadores a substituíram pelo diretor executivo de uma organização que se dedica a promover os benefícios da batata.
Um dos cientistas que exigiu a retratação do artigo de Nina Teicholz para o BMJ, e que conversou comigo pedindo anonimato, reclamou que as mídias sociais criaram um “problema de autoridade” para a ciência nutricional. “Qualquer opinião, por mais desvairada que seja, pode ganhar terreno”, disse.
É uma queixa conhecida. Franqueada a todos, a internet aplainou hierarquias em todos os terrenos. Não vivemos mais num mundo em que elites logram dominar as conversas sobre temas complexos e controversos. Políticos já não podem confiar na aura do cargo público para persuadir, jornais lutam para afirmar a superioridade de suas matérias. Não está claro se essa mudança é, em toda a sua extensão, uma benção para a vida pública. Mas, para áreas em que especialistas possuem um histórico de erros, é difícil imaginar que as coisas piorem. Se existe um caso em que a democracia da informação, ainda que bastante confusa, é preferível a uma oligarquia da informação, essa área é a história das diretrizes nutricionais.
No passado, tínhamos apenas duas fontes na área da nutrição: nosso médico e o governo. Era um sistema que funcionava bem, contanto que o médico e o governo fossem assessorados por ciência de qualidade. Mas o que acontece quando não se pode confiar na ciência?
Ao longo dos anos, o establishment da área nutricional se mostrou versado em demolir reputações, mas hoje é mais difícil fazer com Robert Lustig ou Nina Teicholz o que fizeram com John Yudkin. Também está mais difícil driblar ou abafar a denúncia de que a promoção de dietas de baixo teor de gordura foi um modismo de quarenta anos com resultados desastrosos, uma moda concebida, abalizada e controlada por nutricionistas.
O professor John Yudkin se aposentou do Queen Elizabeth College em 1971 para escrever Pure, White, and Deadly. A instituição voltou atrás em sua promessa de seguir permitindo-lhe o uso de suas instalações de pesquisa. Para o posto de Yudkin, contrataram um sujeito inteiramente comprometido com a hipótese da gordura. Portanto, seria constrangedor manter um adversário dessa teoria. O homem que construíra do zero o Departamento de Nutrição viu-se forçado a constituir advogado para enfim conseguir uma salinha em outro prédio.
Quando perguntei a Lustig por que ele havia sido o primeiro pesquisador em muitos anos a se concentrar nos perigos do açúcar, ele respondeu: “John Yudkin. Acabaram com ele de tal maneira – com tamanha violência – que ninguém mais quis se aventurar no assunto.”
Leia Mais