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    Na noite em que se conheceram, e depois de fingir que não o notava, o chihuahua passou o jantar olhando o Rato, como se exercitasse técnicas desenvolvidas no laboratório de neurociência. Naquele contato, Rato sentiu a presença de um organismo nocivo, contra o qual não tinha defesa ILUSTRAÇÃO: PEDRO FRANZ_2016

ficção

Simpatia pelo demônio

Preparado profissionalmente para as guerras, o Rato era um amador nas questões amorosas

Bernardo Carvalho | Edição 119, Agosto 2016

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Contar é uma forma de se duplicar. Enquanto fala ao homem caído no chão, no quarto de hotel, numa língua que o homem não entende; enquanto ouve a própria voz e o que diz ao homem, o Rato se vê saindo do apartamento onde se hospedara três anos antes, em Kreuzberg, na noite do encontro no teatro, e segue o homem que é ele mesmo até a estação de metrô mais próxima, Schlesisches Tor. Ele se vê subindo as escadas, passando por um mendigo, correndo para não perder o trem que acaba de entrar na estação suspensa e em curva. Lembra-se de que era uma noite espetacular, com o céu variando entre as últimas luzes do dia no horizonte incandescente e os planetas e as estrelas cintilando no azul profundo do zênite. Poderia dizer a si mesmo, gritar a si mesmo (ao homem que corre na plataforma, para pegar o trem), como a voz de Deus ou de um anjo da guarda, se fosse possível voltar ao passado: “Pare enquanto é tempo!” Daria tudo para saber na época o que sabe agora. Porque então teria podido parar e voltar atrás enquanto ainda tinha essa chance. Agora, diante do homem ferido no chão, com um colete de explosivos não detonados, ele tenta acreditar, porque é o que lhe resta, embora cada vez com menos convicção, que os mortos, os seus mortos, todos os que ele tentou salvar ao longo de sua vida, empurraram-no para aquele encontro em Berlim, de propósito, para o seu bem, para que se fortalecesse diante de uma nova provação. Desde aquela noite, ele vem tentando acreditar, cada vez com menos convicção, que pudesse haver outro sentido a não ser a própria morte naquele encontro num teatro de Berlim. É o que se chama pensamento positivo.

A professora universitária estava hospedada a poucas quadras dele. Tinham combinado se encontrar na plataforma do metrô e seguir juntos para o teatro. Na última hora, ela ligou para dizer que se atrasara, já estava com o ingresso, só conseguiria sair de casa em cima da hora, ia de táxi. O Rato ainda tinha de retirar o ingresso na bilheteria. Não queria arriscar. Foi na frente, sozinho.

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Reportagens apuradas com tempo largo e escritas com zelo para quem gosta de ler: piauí, dona do próprio nariz

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