“Eu poderia me embranquecer, caso desejasse. Se não tomo sol, fico quase branca. Se aliso loucamente o cabelo... Só que não me interessa! É um gesto político me afirmar negra” FOTO: ELLA DÜRST_2018
A revanche da babá
Uma atriz em busca da própria cura
Armando Antenore | Edição 140, Maio 2018
Primeiro, as lâmpadas do pequeno teatro carioca se apagaram e todos permanecemos na escuridão por uns trinta segundos. Depois, quando o palco se iluminou tenuamente, pudemos divisar um rapaz negro e esguio, que entrava em cena pela lateral direita, conduzindo algo como… um carrinho de bebê? Sim, um carrinho de bebê, ainda que dos mais extravagantes. Sob a luz tímida, parecia bem maior do que os habituais. À medida que o breu diminuía, a magnitude e a estranheza do carrinho se confirmavam. Era cor-de-rosa, com um design antiquado e uma bexiga de aniversário pendurada na parte de trás. O balão, inflado, estampava a inscrição “A babá quer passear”, manuscrita de um jeito quase relapso. Embora se vestisse muito informalmente, o rapaz empurrava o carrinho com alguma solenidade. De camiseta, jeans, chinelos e tranças afro, deu uma volta pelo palco, agora completamente iluminado, e estacionou no fundo, perto dos bastidores.
Encolhida dentro do carrinho, uma moça de cabelos longos, crespos e soltos – também negra – lia um anúncio em voz alta. “Procuramos uma babá profissional para cuidar de criança com 3 anos e para limpar, lavar, secar, dobrar, enxaguar, estender, arrumar, torcer, organizar, recolher, desempoar, desencardir, catar, cortar, coar, servir”, listou, enquanto rolava as palavras na tela de um smartphone. “Somos exigentes. Requisitos: experiência comprovada e boas referências. Não ter vício de cigarro. Não ter vício de bebida. Não ter vício de celular (proibido o uso nos dias de trabalho). Ser pontual, responsável e zelosa. Que saiba preparar, limpar, lavar, secar, dobrar, enxaguar, estender, arrumar, torcer, organizar, recolher, desempoar, desencardir, catar, cortar, coar, servir. Que saiba alimentar, banhar e cativar as crianças. Que saiba realmente brincar com as crianças. Que saiba mergulhar no mundo das crianças. Que não tenha filhos pequenos. Que seja magra e jovem. Que seja discreta e educada. Que evite falar no serviço. Que evite faltar ao serviço. Que tenha disponibilidade para viajar, limpar, lavar, secar, dobrar, enxaguar, estender, arrumar, torcer, organizar, recolher, desempoar, desencardir, catar, cortar, coar, servir. Servir. Servir.”
Às vezes, a moça lia as frases mecanicamente, como se recitasse um mantra. Outras vezes, expressava certa irritação ou assumia um tom irônico. “Pagamento: 1 mil reais, vale-transporte e bonificação por desempenho. Possibilidade de efetivar o registro em carteira após três meses de experiência”, concluiu, antes de perguntar: “Alguém pode me tirar dessa situação?”
Na plateia, quatro ou cinco pessoas esboçaram uns risinhos. O resto do público se manteve quieto. Depois de uma breve pausa, a moça reiterou: “Alguém pode me tirar dessa situação?” Nada. “É sério, gente, alguém pode me tirar dessa situação?!” De novo, nenhuma alma ousou se pronunciar. “Alguém pode me tirar daqui, deste carrinho?!!” Meio ressabiado, um homem finalmente se levantou, caminhou até o palco e, oferecendo-lhe as mãos, a tirou daquela situação.
A beleza da moça logo se fez notar. Seus cabelos fartos lembravam os de Angela Davis, filósofa norte-americana que se notabilizou por lutar contra o racismo. “Quantos pretos tem aqui?”, indagou, aproximando-se dos espectadores. Magra e alta, usava uma calça larga de algodão, um blusão igualmente folgado e um tênis muito simples. O conjunto, branco, pouco se diferenciava das roupas que as babás costumam trajar durante o expediente. “Um, dois, três…”, contou a moça, baixinho. “Oito, nove, dez.” Foram dez os que ergueram o braço e se identificaram como negros, incluindo o rapaz que conduzira o carrinho de bebê. Outras vinte pessoas permaneceram com os braços abaixados. “Eu gostaria que vocês, negros, se sentassem comigo no palco. Tragam as cadeiras da plateia e se acomodem do meu lado”, pediu a moça. “Vou me sentir mais segura, mais confortável… Só os negros, por favor.”
“E as negras?”, questionou uma mulher. “As negras também. Negros e negras…”, respondeu a moça. “Vou pegar aquela cadeirinha para mim enquanto vocês formam uma meia-lua, tá?” De início hesitantes, todos acabaram se rendendo à inesperada solicitação. “Então, pessoal, queria que cada um se apresentasse e dissesse algo sobre o trabalho de vocês. Qualquer coisa, um negócio bem livre, bem informal. Pode ser?”, continuou a moça, já sentada entre os dez.
Uma jovem de calça rasgada nas coxas e nos joelhos tomou a palavra. “Prazer, me chamo Roberta. Eu venho do interior, de um lugarzinho sossegado. Era muito tímida, muito pacata, e resolvi ingressar no grupo teatral Nós do Morro. Fui para lá com 15 anos, por insistência de uma prima”, relembrou, aludindo à trupe do Rio de Janeiro que atua na favela do Vidigal desde 1986. “O Nós do Morro revolucionou minha vida. Tanto que, até hoje, sigo a carreira de atriz. Graças à arte, me transformei e transformo os outros, o que me deixa bastante feliz.”
Mal a jovem interrompeu o relato, uma mulher de blusa alaranjada se adiantou: “Eu vou falar! E depressa, porque isso pode ficar difícil…” Fez uma careta engraçada, deu um tapinha na própria perna e gargalhou deliciosamente. “Tu vai logo tirar o teu, né?”, alguém ironizou. E a mulher: “Não! Vou logo colocar o meu!” Ela se definiu, então, como “atriz, educadora e mãe”. Enquanto discorria sobre “o valor de acreditar e não desistir”, mais três negros adentraram a sala. A moça com trajes de babá os convidou para engrossar a meia-lua. “Não quero, não. Obrigado”, esquivou-se um deles. “Vem cá, nego! Senta aqui!”, insistiu a moça. Mesmo envergonhado, o homem concordou.
Uma jovem de óculos retomou os depoimentos. “Nos hospitais em que faço plantão, sempre se espantam: ‘Jura que você é a médica?! Não brinca!” Um professor se manifestou em seguida. Depois, um jornalista, uma socióloga (“Antes de mim, nenhuma mulher de minha família tinha curso superior”), outra atriz, um animador de festas infantis, um ator (“Como sou o mais preto por parte de mãe e o mais branco por parte de pai, vivo numa espécie de limbo, entre a negritude e a branquitude”), uma doutoranda em educação, uma cineasta e um bartender de cabeça raspada (“Se mantivesse o meu cabelão maravilhoso, ninguém me contrataria”).
Um motorista desempregado encerrou os testemunhos. “Na firma onde trabalhava, comecei como ajudante e, com o tempo, me promoveram. Virei motorista, o que despertou a inveja de alguns. O salário maior me permitiu trocar de carro. Vendi meu Paliozinho, peguei um Sentra e causei mais inveja. Uma hora, decidi me livrar do Sentra e comprar um Honda Civic melhor que o do gerente. Ferrou! Tomei um tremendo pé na bunda. Um pezinho no traseiro… Me demitiram.”
Quando o homem se calou, a moça vestida de babá rapidamente assumiu as rédeas. Ajeitou-se na cadeira, suspirou e principiou um monólogo que se estendeu por dez minutos. “Um dia, minha mãe apareceu com uma novidade: ‘Olha, a Estela engravidou e precisa de uma menina para cuidar dela. Gravidez de risco, a Estela não vai segurar a barra sozinha.’ Eu tinha 15 anos e não pude escolher. Se a mãe da gente é doméstica, a gente acaba doméstica também. Caso dê muita sorte, arranja um trampo de recepcionista. Minha mãe é doméstica. Eu não havia descolado nenhum trampo de recepcionista. Então… A Estela morava longe, num bairro onde não passa ônibus. Eu acordava bem cedo e andava horas até a casa dela. Lá pelas nove da manhã, a Estela saía para bater perna. Era uma gravidez de risco, mas nem tanto, né? Mal a Estela pisava na rua, a folia começava. Eu pirava demais! Experimentava o perfume da Estela, botava as lingeries da Estela, deitava na cama da Estela, curtia os travesseiros da Estela. Tirava uma soneca e, às dez e meia, acordava para lavar os banheiros, porque a Estela sempre pedia: ‘Comece pelos banheiros.’ Só que, num dos banheiros, havia um telefone. Banheiro moderno, lindo, com telefone e tudo. Eu não resistia e ligava para a minha avó: 5588-2857. Deixava tocar um pouco e desligava antes que atendessem. Repetia a molecagem um milhão de vezes: 5588-2857, 5588-2857, 5588-2857. Eu desligava antes do ‘alô’ por não querer que a Telefônica cobrasse a ligação. Deus me livre de a Estela descobrir as minhas pirações!”
Sem interromper a narrativa, a moça se levantou e buscou uma garrafa d’água no carrinho de bebê. Matou a sede e não se sentou novamente. Preferiu zanzar pelo palco. “Tinha um troço bem legal que rolava na casa da Estela… Eu esquentava o almoço, servia o almoço, lavava a louça do almoço. A Estela odiava lavar louça. Quem não odeia? É uma desgraça isso de você lavar a louça dos outros. Se cada um lavasse a própria louça, não sobrava louça dos outros para a gente lavar. Custa enxaguar o pratinho em que você comeu? Tirar a gordura de um talherzinho? Para a Estela, custava. E para o marido da Estela, e os filhos da Estela, também. O bom é que, na hora do almoço, enquanto todo mundo comia, rolava aquele lance bacana: o pessoal me deixava estudar. Eu frequentava a escola à noite. Escola pública, lá no meu bairro. Eu entrava na casa da Estela às oito da manhã e saía às cinco da tarde. Segunda, terça, quarta, quinta e sexta. Ai de mim se faltasse um dia. Nunca entendi por que a Estela gostava tanto de limpeza. Aliás, por que as domésticas limpam tanto no Brasil? O que tanto se limpa no Brasil? A Estela tinha um cachorro grandão, fofo, um labrador. E o labrador fazia uma tonelada de cocô no jardim. A Estela achava que a merda do cachorro devia adubar a grama. ‘Pegue o esguicho e esguiche o cocô até a terra absorver tudo.’ Eu obedecia, lógico. O problema é que a terra demora para absorver a merda. Eu esguichava, esguichava, e a merda permanecia ali. Quanto mais a água batia na merda, mais a merda respingava nos meus pés, nas minhas pernas. Eu estudava justamente naquele jardim em que o labrador cagava. Meia horinha, quarenta minutos, enquanto o pessoal almoçava. Um jardim ‘sussa’, repleto de flores. O marido da Estela não cessava de me aconselhar: ‘Jamais abandone os estudos, menina! Muito importante terminar o colegial!’ Acontece que encarar um curso noturno, depois de ralar das oito às cinco, não é fácil. Pensa que é? Tão bonita a casa da Estela… Continua lá, deslumbrante, no mesmo bairro onde não passa ônibus.”
De volta à meia-lua em que se encontravam os negros, a moça se sentou e cruzou as pernas. “Outro dia, jantei no apartamento de uma amiga. ‘Não lave nada, não! Amanhã a Rita vem. Ela se encarrega da pia.’ Eu teimei que a gente podia jogar uma aguinha na louça para facilitar o trabalho da Rita. Mas minha amiga quase se irritou. ‘Não precisa! Imagine… A Rita é o máximo! Ela está aqui há séculos. Eu nem tinha os meus filhos ainda. Ela praticamente criou os meninos. É ótima, ótima! Prepara um bolinho de fubá que… Minha Nossa Senhora! Uma delícia! Quando chego cansada, vou logo pedindo: ‘Ô, Rita, faz aquele bolinho que só você sabe fazer.’ Ela faz! E faz porque conhece a gente. Conhece os nossos hábitos. Dificílimo achar uma Rita, viu? Minha irmã, por exemplo, retornou agora para o país depois de morar nos Estados Unidos. Quer uma Rita e não descola de maneira nenhuma. Um problemão! Vou acabar emprestando a minha Rita por um tempo. Ela é incrível! De confiança, não mexe em nada.”
Com um olhar desolado, a moça finalmente se aquietou. Ficou mirando o vazio durante 22 segundos. De súbito, pousou as mãos sobre os joelhos, se aprumou e iniciou uma canção:
Ninguém ouviu
Um soluçar de dor
No canto do Brasil
Um lamento triste
Sempre ecoou
Desde que o índio guerreiro
Foi para o cativeiro
E de lá cantou.
Era o Canto das Três Raças, que os compositores Paulo César Pinheiro e Mauro Duarte lançaram em 1976. Clara Nunes gravou o samba no mesmo ano e alcançou enorme sucesso.
Negro entoou
Um canto de revolta pelos ares
Do Quilombo dos Palmares
Onde se refugiou
Fora a luta dos Inconfidentes
Pela quebra das correntes
Nada adiantou.
À medida que a letra avançava, a moça se emocionava, de tal modo que a voz dela embargou. Para impedir que a peteca caísse, parte dos negros resolveu cantar também. Outra parte tratou de marcar o ritmo com palmas.
E de guerra em paz
De paz em guerra
Todo o povo dessa terra
Quando pode cantar
Canta de dor
E ecoa noite e dia
É ensurdecedor
Ai, mas que agonia
O canto do trabalhador
Esse canto que devia
Ser um canto de alegria
Soa apenas
Como um soluçar de dor.
O samba e a apresentação terminaram, mas a moça ainda chorava. Na plateia, nós – os brancos – guardávamos um assombroso silêncio.
Híbrido de espetáculo teatral, debate e performance, a encenação de Ana Flavia Cavalcanti dura aproximadamente quarenta minutos. Com o título de Serviçal, estreou em outubro de 2017 e já percorreu alguns espaços culturais do Rio. No dia 26 deste mês, chega à cidade de São Paulo. O Sesc Ipiranga vai mostrá-la dentro do ciclo Fricções.
Foi num domingo de novembro que assisti à montagem pela primeira vez, sem ter a menor noção do que aconteceria em cena. Tampouco sabia o nome da atriz que a idealizou, dirigiu e protagonizava. Falha minha: à época, a paulista de 35 anos gozava de certa fama por estar representando a pedagoga Dóris Bonfim na 25ª temporada de Malhação, série da Globo que elegeu os adolescentes como público-alvo e cujo elenco muda todo ano. Em decorrência do programa, a artista recebia elogios da crítica, acumulava cerca de 160 mil seguidores digitais e posava para fotos com jovens que a reconheciam pelas ruas.
Naquele fim de semana, a Sede das Cias – espaço da Lapa que costuma abrigar peças alternativas – patrocinava uma mostra de trabalhos capitaneados por mulheres. Dos quatro que vi, Serviçal me pareceu o mais ousado e impactante. Não à toa, procurei Ana Flavia logo depois da apresentação. Queria conhecer melhor o projeto dela.
“Não adianta. Sempre que faço o espetáculo, me desmancho em lágrimas”, comentava a intérprete na entrada do teatro. Um grupo de espectadores a cercava. “Há pouco tempo, uma amiga me repreendeu: ‘Você não devia se emocionar. Segure a onda! A montagem vai ficar mais pauleira se você engolir o choro.’ Respondi: ‘Pô, nega, me deixa chorar! Você pensa que criei Serviçal para quê? Para me purificar, afastar de mim as más energias. Preciso exorcizar meus fantasmas e os de minha gente. Cansei de remoer tanta indignação!’”
Curiosamente, a atriz falava de raiva com doçura, sem aumentar a voz ou gesticular demais. “Por que, no Brasil, boa parte dos que cuidam da limpeza é preta ou quase preta? Reparem: o lixeiro, a empregada doméstica, o varredor, a faxineira. E por que esse povo ganha uma miséria se desempenha tarefas tão essenciais? Por que não tem plano de saúde decente, sobradinho com esgoto e colégio massa para os filhos? Resquício da escravidão, galera! Não tolero mais isso, não… Levar adiante uma empreitada como Serviçal é um jeito de me curar. Cada encenação vai me curando um pouquinho.”
Só então compreendi plenamente que a artista contara a própria história no monólogo. “Sim, tudo real”, confirmou. “A Estela existe e a patroa da Rita idem. Eu trabalhei em casa de família e minha mãe é doméstica até hoje.”
“Ela já viu o espetáculo?”, indaguei.
“Não, ainda não.”
“Pretende ver?”
“Talvez.”
“Se visse, o que acharia?”
“Sugiro que você pergunte diretamente à minha mãe. Ela enxerga as coisas de outra maneira…”
Os cabelos abundantes e libertos que Ana Flavia se orgulha de exibir dentro e fora dos palcos demoraram muito para se soltar. Quando criança, a atriz os conservava invariavelmente presos. Não os alforriava nem mesmo na hora de dormir. Sua mãe – a paulistana Waldeci Cavalcanti – cuidava de lavá-los para depois os desembaraçar, hidratar com azeite de oliva e reprimir em tranças, coques, marias-chiquinhas ou rabos de cavalo. Ela dizia que, assim, ficariam mais bonitos e menos sujeitos à infestação por piolhos. “Eu não gostava nem desgostava daqueles penteados. Simplesmente os aceitava como próprios das meninas com cabelos crespos”, recordou a artista numa cafeteria de Botafogo, bairro da Zona Sul carioca. Pior sina amargavam outras garotas que moravam perto de Ana Flavia e, igualmente negras, só usavam corte à joãozinho. “Mil vezes ter cabelos presos, mas longos, do que praticamente raspar a cabeça”, sublinhou a intérprete, bebericando uma xícara de café com leite.
Ocorre que, num final de tarde, a regra sucumbiu à exceção. Ana Flavia beirava os 12 anos e, enquanto se arrumava para a escola, cismou de ousar. Rejeitou o agasalho esportivo de praxe e colocou um vestidinho comprido, que se assemelhava ao de uma camponesa medieval. “Era branco, com umas pregas, decote quadrado, cintura alta e mangas folgadas.” Observando-se no espelho, concluiu que deveria abdicar de tranças, coques e afins. A roupa inusitada exigia cabelos revoltos. Confiante, soltou a juba e seguiu para o colégio público. Até então, nunca ganhara as ruas sem domar os cachos.
As aulas, noturnas, começavam às sete e cinco. Minutos depois, o diretor Wilson – “um demônio” – passava de sala em sala, cumprimentava os alunos e fazia alguma recomendação. Naquela noite, mal avistou Ana Flavia, o homem vociferou: “Que cabelo é esse?! Pensa que está num hospício? Você parece uma doida!” A classe explodiu em uivos e gargalhadas. “Desmoronei”, lembrou a atriz. “Levei um tempão para me recuperar do trauma.”
Mais tarde, descobriu os alisantes capilares e os adotou com devoção. “Santa química! Eu aplicava uns produtos baratos, que fediam à beça, mas funcionavam perfeitamente. Só que o efeito durava pouco.” Certo dia, folheando a Capricho ou outra revista do gênero, tomou conhecimento de uma técnica que prometia “relaxar” os cabelos encaracolados, tornando-os menos volumosos por um bom período. Infernizou a mãe até arranjar o dinheiro para enfrentar o tratamento num salão de periferia. Valeu a pena: Ana Flavia adquiriu as madeixas escorridas e esvoaçantes que tanto almejava. Felicíssima, saiu da cabeleireira, pegou um ônibus e manteve o vidro escancarado apenas pelo prazer de expor a crina à ventania. Depois, aportou numa festinha e arrasou. “A mulherada não parava de me interrogar: ‘Uau! Que cabelo incrível! O que você aprontou?’ E eu: ‘Nada… Só dei um jeitinho.’”
Na manhã seguinte, porém, o “relaxamento” culminou em martírio. Ana Flavia perdeu uma imensidão de fios enquanto se secava após o banho. Maldita química! “Tufos e tufos se despregaram de minha cabeça durante semanas.” Restou à jovem de 17 anos passar a tesoura na cabeleira e deixá-la bem curta. Como não pôde disfarçar as falhas, cobriu-se com um lenço e o abandonou somente quando os caracóis ressuscitaram. Desde então, cultiva prazerosamente os cachos que a genética lhe transmitiu. “Cansei de lutar com a natureza. Percebi que seria mais fácil me assumir e peitar todos os diretores Wilson que atravessassem meu caminho.”
As batalhas contra os cabelos se travaram principalmente em Atibaia, pequeno município do interior paulista para onde a atriz se mudou na infância. À semelhança do que acontece com diversos negros brasileiros, ela nunca conseguiu mapear direito as próprias raízes. “Meu pai – um construtor de poços – tem sangue indígena e preto. Mas de qual tribo vieram os parentes dele? De qual região africana? Não sei.” Uma vez, Ana Flavia reconheceu os traços paternos em índios bororos retratados pelo pintor francês Jean-Baptiste Debret no século XIX. “É possível que a gente se origine daquele povo.” Já a mãe da artista descende de sertanejos, uma baiana e um pernambucano, cujos antepassados deixaram pouquíssimos rastros.
Natural de Diadema, no Grande ABC, a intérprete migrou para Atibaia em 1989, depois que os pais se separaram. Estava com 6 anos. Junto da mãe e da irmã menor, se estabeleceu numa favela erguida em torno de trens desativados. A casa onde morava, sem água encanada, dispunha de apenas três ambientes: um banheiro, um quarto e uma sala, que abrigava uma minúscula cozinha. “Eu amava brincar nos vagões.”
Pelo fato de ostentar uma tez mais clara (“Não sou negra no último tom”), Ana Flavia demorou para associar os limites que lhe impuseram sobre os cabelos à discriminação racial. “Fui me reconhecer como preta há uns dez anos. Antes, por incrível que pareça, não pensava muito no assunto. Tocava o barco sem maiores questionamentos. No Censo Escolar, por exemplo, me declarava parda e ponto final. Não colocava a classificação em xeque. Meus colegas agiam da mesma maneira: definiam-se como pardos. Mas pardo significa o quê? Cor de envelope? Difícil precisar o momento em que minha percepção se alterou. Foi um processo, uma transformação gradual e profunda.”
Ela esticou o braço e mostrou a pele. “Vê? Eu poderia me embranquecer, caso desejasse. Se não tomo sol, fico quase tão branca quanto você. Se aliso loucamente o cabelo… Só que não me interessa! É um gesto político me afirmar negra. Não vou rechaçar minhas origens apenas para me beneficiar de tudo que a branquitude oferece. Aliás, comigo rolou um negócio sensacional: quanto mais me admiti preta, mais coisas bacanas me aconteceram. Sinto que me fortaleci, que ganhei uma identidade.”
Hoje adepta do candomblé, a atriz já professou o kardecismo e o budismo tibetano. Também frequentou as igrejas batista e messiânica. “Sou filha de Iansã com Oxum. Por isso, salto do oito para o oitenta num piscar de olhos. Posso acordar sem um centavo e dormir com 20 mil, 30 mil reais. Se algo me põe numa vibe de ódio, de confronto, logo depois relaxo e viro a rainha do afeto. Essas mudanças drásticas vêm de Iansã.” E Oxum, o que lhe traz? “A beleza, o talento para seduzir… Meu feitiço é todo de Oxum.”
Embora não esteja imune às agressões racistas, Ana Flavia sabe que os preconceituosos a importunam relativamente pouco. “Negros de pele mais escura enfrentam perrengues bem piores.” Volta e meia, a artista se depara com repórteres que lhe pedem para opinar sobre o racismo. As solicitações a desconcertam. “Opinar? Como assim? Faria sentido me perguntarem o que acho do estupro, do assassinato, do espancamento? Racismo é crime, mano!”
Uma cadeira simplória, um fogão velho e uma panela. Apesar de ter apenas 4 anos, Ana Flavia se recorda com clareza dos utensílios. Ela ainda morava em Diadema, num casebre. “Minha mãe me botou de pé sobre a cadeira. Depois, aproximou a cadeira do fogão em que a panela fumegava e disse: ‘Agora você vai aprender como se faz um arrozinho.’”
A lição prematura decorria da necessidade. Todas as manhãs, perto das 7 horas, Waldeci Cavalcanti levava as filhas até a creche municipal e pegava um ônibus. Entrava às oito na residência onde trabalhava de doméstica. Por volta das 16 horas, uma vizinha passava na creche e recolhia as crianças, que esperavam a mãe em casa, sozinhas. Cabia à primogênita zelar por si mesma e pela irmã dois anos mais nova. Assim que o relógio marcava cinco e quarenta da tarde, Cavalcanti descia da condução e reencontrava as meninas. “Uns minutinhos de atraso já nos causavam uma angústia gigante”, relembrou Ana Flavia.
A doméstica adotou esquema parecido quando se fixou em Atibaia. Um dia, as garotas quiseram lhe preparar uma surpresa enquanto a aguardavam. “Resolvemos lavar a sala.” Jogaram baldes d’água no chão e o esfregaram com uma vassoura. Os fios da casa, porém, não corriam pelo interior das paredes, em tubos. Permaneciam perigosamente à mostra. “Minha irmã decidiu ajeitar o da televisão e, descalça, em cima do piso úmido, foi desligar a chave na caixa de energia. Tomou um choque horroroso. Ela tremia dos pés à cabeça e não conseguia largar a chave. Eu tentei puxá-la, mas só piorei a situação. Ficamos as duas ali, presas uma à outra e sacolejando com aquele baita choque. Pensei: ‘Vamos morrer!’ Desesperada, tirei forças não sei de onde, puxei minha irmã de novo e finalmente nos livramos da chave.” As crianças se abraçaram em prantos. “Catamos a Bíblia da minha mãe – então uma espírita fervorosa – e lemos vários trechos, agradecidas por continuarmos inteiras.”
Em certas ocasiões, diante de algum imprevisto, a doméstica acabava levando as meninas para o trabalho. “As patroas não gostavam. Era nítido. Nenhuma chegou a nos maltratar, mas pairava uma tensão no ar. Um incômodo, um ‘Ai, que saco!’. Minha mãe se afligia e nos inundava de recomendações: não toquem, não aceitem, não baguncem, não peguem, não entrem. Agora, imagine o que aqueles casarões representavam para duas garotas que viviam num lugar minúsculo. Cinco banheiros, seis quartos, três salas, copa, cozinha, quintal, edícula. Claro que a gente desejava explorar tudo.”
Justamente por causa das filhas, Cavalcanti jamais dormia no serviço nem trabalhava durante os fins de semana. “Podiam oferecer a grana que fosse. Ela nunca quebrava a regra. E, quando estava conosco, não bancava a coitadinha. Não reclamava de nada: da pobreza, do cansaço ou das tarefas diárias. Mantinha uma postura altiva, majestosa. Caso nos desse uns safanões, batia somente da cintura para baixo. Explicava que bater da cintura para cima tirava a dignidade de quem apanha.” Elétrica, inventava jogos infantis e construía brinquedos com latas, embalagens plásticas ou pedaços de madeira. Também estimulava que as meninas cultivassem amigos. “Às vezes, nossa casa virara um Sesc. O Sesc da Wal! Transformávamos em piscina uma banheira antiga que havia no quintal e chamávamos a molecada dos arredores para farrear.”
A presença da mãe se revelava tão eloquente que as ausências magoavam Ana Flavia. Por que a doméstica reservava tanto tempo para os filhos dos patrões e não se dedicava igualmente às próprias crias? “Eu queria mais presença, muito mais.” O sentimento de falta se agravava em razão de as garotas terem um pai omisso, ainda que carinhoso. Após a separação, ele raramente as encontrava e não ajudava com as despesas. “Precisei amadurecer rapidinho”, resumiu a atriz. “A partir de uma fase, já não frequentávamos creches em período integral. Íamos à escola por algumas horas e passávamos o resto do dia sem ninguém. Eu vigiava minha irmã, cozinhava e resolvia problemas cotidianos numa idade em que devia apenas brincar ou estudar. Hoje, sempre ouço alguém comentar: ‘Que saudades da infância!’ Saudades? Não, cara…”
Com 10 anos, Ana Flavia arrumou emprego. Tornou-se babá de um neném que mal completara 2 meses. “Wellington ou Washington, não lembro direito o nome do moleque. A mãe dele, também negra e doméstica, vivia perto de nós. Uma noite, bateu em nossa porta: ‘Wal, você deixa a Ana cuidar do meu filho enquanto trabalho?’ Àquela altura, minha irmã já estava maiorzinha. Eu a largava em casa e ficava meio período com o bebê. O coitado tinha muita cólica. Chorava demais.” Tão logo recebeu o primeiro salário, a menina comprou uma caixa de bombons.
Cinco anos depois, arranjou outro emprego, desta vez num bairro refinado de Atibaia. “Fui ajudar a tal da Estela, que menciono em Serviçal, a dona do labrador. Ela, na realidade, se chamava Adriana.” Em seguida, a jovem enveredou pelo universo dos cabeleireiros. “Trampei como auxiliar numa porção de salões, todos animadérrimos – os do Vil, do Marquinhos, do Alvimar e do Edson, o mais chique da cidade, o mais imperial.” Exerceu ainda as funções de recepcionista e tosadora num hotelzinho para bichos de estimação. “Eu atendia o telefone e dizia: ‘Boa tarde! La Mascotte – Toilettage et Hôtellerie.’ Bem cafona…”
Pouco antes de trabalhar com a dona do labrador, Ana Flavia se apaixonou por uma garota mais velha. No início, o casal não se assumia para os familiares. “A gente se apresentava como amigas e beleza.” Mas uma hora a máscara caiu. “Minha mãe sacou tudo, reagiu mal e parou de falar comigo.” A adolescente de 14 anos decidiu, então, morar com a namorada de 18.
Quando o relacionamento terminou, a doméstica e a filha já haviam se reconciliado. Mesmo assim, a moça não voltou para a casa materna. Preferiu trocar Atibaia por São Paulo.
No Edson Cabeleireiro, Ana Flavia conheceu um bailarino que lecionava dança de salão. “Desculpe o clichê, mas tivemos um encontro mágico. De cara, nos tornamos inseparáveis, tipo best friends.” O rapaz, “muito descolado”, a introduziu no mundo do teatro, cinema e balé. “Eu não sabia nada de nada. Via filmes na televisão e só.” Graças à convivência com o bailarino e os artistas que o rodeavam, brotou em Ana Flavia o desejo de virar atriz. Foi na esperança de concretizá-lo que a garota, às vésperas dos 18 anos, se mudou para a capital paulista. Lá terminou o ensino médio e conseguiu se firmar como modelo. Ganhou dinheiro com comerciais e ensaios fotográficos, o que lhe possibilitou ingressar numa escola de atores, o Indac – Instituto de Arte e Ciência. Mal se graduou, resolveu encarar outro curso de formação e seguiu para o Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, coordenado pelo diretor Antunes Filho. Depois, participou de minisséries na TV Cultura e de uma oficina na Record. Também integrou o elenco coadjuvante de S.O.S. Emergência, programa humorístico da Globo.
Em dezembro de 2010, arrumou as malas e embarcou para um sabático na França. Queria aprender francês e se aproximar de um grupo que admirava, o renomado Théâtre du Soleil. Logo que se instalou em Paris, procurou a carioca Juliana Carneiro da Cunha, atriz da companhia desde 1990. “Por sorte, o pessoal me acolheu de boa.” Permitiram que Ana Flavia observasse os ensaios em troca de prestar alguns serviços à trupe. “Eu cozinhava para os atores de manhã e, durante a tarde, acompanhava a rotina deles.”
O retiro europeu terminou em dezembro de 2011, quando a intérprete retomou a carreira no Brasil. Contratada novamente pela Globo, fez a novela Além do Tempo entre julho de 2015 e janeiro de 2016. Quase um ano e meio depois, assumiu o papel que lhe trouxe mais reconhecimento: o de Dóris Bonfim em Viva a Diferença. A temporada de Malhação, concebida por Cao Hamburger, acabou há dois meses e conquistou audiência média de vinte pontos na Grande São Paulo. O índice evidencia que aproximadamente 1,4 milhão de domicílios sintonizaram cada episódio da série vespertina – uma performance surpreendente para o horário. Diretora de um colégio estadual, a personagem de Ana Flavia defendia a educação pública de qualidade e levantava bandeiras contra o racismo, o assédio sexual, a discriminação de gênero e o bullying.
O carrinho de bebê que conduz a atriz em Serviçal lhe apareceu pela primeira vez num sonho. “Era antigo, enorme e cor-de-rosa, exatamente como o do espetáculo. Em torno dele, várias histórias se desenrolavam, embora não me recorde de nenhuma. Guardei apenas o carrinho na memória.”
O sonho a intrigou. “Passei dias fritando os miolos. Por que raios o meu inconsciente acessou um carrinho de bebê? Não tenho filhos nem andava pensando em ter. O que aquela imagem significava?” No Google, Ana Flavia garimpou fotografias de carrinhos similares ao do sonho. “Enquanto as examinava, me ocorreu que detesto os uniformes das babás. São muito deprês – insossos, jecas, desnecessários.” Agarrou o mote e começou a refletir sobre o trabalho delas. Leu reportagens que abordam o tema, vasculhou sites de agências que as contratam, buscou saber como surgiram as amas de leite e se lembrou da época em que, ainda criança, pajeou o bebê da vizinha. “Uma hora, rolou um clique: Porra, quem leva as babás para passear?” Dúvida semelhante a assaltara tempos atrás: “Minha mãe toma conta de todo mundo, mas quem toma conta de minha mãe?” Se as babás levam os nenês para dar uma voltinha, quem se preocupa em diverti-las? Quem as leva para dançar, viajar, pegar um cinema ou saborear uma cerveja?
Nasceu, assim, a performance A Babá Quer Passear. “Depois de semanas pirando na fita, procurei um cenotécnico, descrevi o carrinho e lhe pedi que construísse um idêntico.” A atriz planejava estacionar o trambolhão de 70 quilos em parques, ruas movimentadas ou praças e afixar nele uma bexiga cheia, que ostentasse justamente a frase “A babá quer passear”. Vestida com uma calça de moletom e um agasalho brancos, Ana Flavia se acomodaria dentro do carrinho e esperaria a reação dos transeuntes.
A performance estreou em junho passado, no Rio, onde a artista está morando. “Me apresentei perto da Lagoa Rodrigo de Freitas e junto à praia de Ipanema.” A partir de então, circulou por outros pontos da cidade (Leblon, Flamengo, Copacabana, Madureira) e pelo bairro dos Jardins, em São Paulo. As reações oscilaram da total indiferença à curiosidade bem-intencionada. “Nunca me zoaram pesado. Jamais escutei recriminações explícitas ou xingamentos. No máximo, me fuzilaram com os olhos e sussurraram: ‘Que besteira! Louca para chamar a atenção…’”
Em contrapartida, houve os que lhe contaram histórias infantis e ofertaram presentes – miniaturas, chocolates, pirulitos, bolhas de sabão. E houve, claro, os que empurraram o carrinho. “Nesses casos, me empenhava em puxar conversa, sempre com a intenção de discutir o trabalho doméstico.” Sete questões a norteavam: Qual o nome completo de sua empregada? Ela mora onde? Você já a visitou? Já lhe ofereceu uma carona? Ela conhece as Cataratas do Iguaçu? Gosta de comer o quê? Ela tem um sonho?
As respostas, não raro, a desanimavam. “A maioria das pessoas se mostrou superalienada. Martelava ideias racistas e não se ligava nos próprios preconceitos. Reclamava das minorias que brigam por dignidade e não se reconhecia como beneficiária de mil privilégios.” Chateada, a intérprete cogitou abdicar da performance. “Me perguntei se valia a pena insistir no rolê: ‘Nada vai mudar, Ana! Não perca mais tempo!’ Só que meu astral já havia se contaminado pelas bobagens que ouvi. Eu precisava botar toda aquela bad para fora.” Em vez de abandonar a iniciativa, tratou de aprofundá-la e criou Serviçal. Hoje, se divide entre as duas empreitadas: ora encena a performance, ora o espetáculo. “Aproveito as redes sociais e convido os pretos para assistirem à montagem. Morro de medo que não deem as caras. No Brasil, o público de teatro continua muito branco, né?”
Baixa e miúda, Waldeci Cavalcanti aparenta fragilidade. Quando abre a boca, no entanto, revela-se vigorosa, seja pelo tom grave da voz, seja por evocar com frequência episódios em que se negou a engolir sapos. “Certa vez, uma grã-fina queria me contratar. ‘No meu apartamento, empregado não usa a mesma louça dos patrões’, avisou. ‘Só come em pratos descartáveis.’ Eu respondi na lata: ‘Por quê? Vocês sofrem de alguma doença contagiosa?’ P da vida, apanhei minha bolsa e virei as costas.”
Os 62 anos de idade ainda não a deixam confortável para falar palavrões. Na lanchonete de Atibaia onde conversamos, a doméstica relembrou a infância e, de novo, evitou pronunciar “nomes pesados”: “A bruxa me acordava às seis da manhã com uma porrada. ‘Levanta!’, gritava. Depois me xingava de… você sabe o quê.” A bruxa em questão se incumbiu de criá-la. “Meu pai trabalhava como encanador, mas perdia todo o salário no jogo. Sem a ajuda dele, minha mãe – funcionária de uma tecelagem – não conseguia educar os quatro filhos. Por isso, me entregou para uma mulher que prometeu cuidar de mim. Cuidou? De jeito nenhum!” Dona de uma pensão no bairro paulistano de Santo Amaro, a mulher exigia que Cavalcanti limpasse sozinha os doze quartos do estabelecimento, fizesse as compras do dia e encarasse as filas bancárias para pagar contas. “Ela me batia o tempo inteiro. Rasgava meu couro sem dó. Na hora das refeições, me dava restos de comida e, à noite, me botava para dormir em cima de um papelão, perto da cozinha.” De quebra, não permitia que estudasse. Tirou-a da escola antes que concluísse o ensino fundamental.
A menina viveu assim entre os 11 e os 14 anos, quando regressou à casa da mãe. Com 15, se tornou doméstica. “Melhor do que continuar escrava.” Hoje admira “a coragem” de Ana Flavia, embora não pense exatamente como a atriz. “Lógico que apoio quem luta pela igualdade racial. Só que, no meu íntimo, sinto… Talvez a Ana não goste do que vou dizer… Sinto que a turma exagera. Preocupam-se tanto com os negros que esquecem as outras raças. Eu me considero preta e enfrentei dificuldades tremendas, mas conheço brancos em pior situação do que a minha. Também não vejo todo patrão como sacana. Já trabalhei para carrascos e gente de coração grande. Fiquei, inclusive, amiga de ex-patrões. Então, não me enxergo em guerra com ninguém, sabe? No mundo, existem milhões de pessoas que humilham os mais fracos – tanto faz se negros, brancos ou índios. É mais fraco? Eles exploram. Por outro lado, existem os generosos, os que podem ajudar e realmente ajudam.”
Solteira desde 1994, quando pariu o terceiro e último filho, fruto de uma união relâmpago, a doméstica já não mora na favela dos trens desativados. Mudou-se para um bairro popular de Atibaia, onde ergueu uma casa térrea, com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Há quase uma década, afastou-se do kardecismo e abraçou a umbanda. Diariamente, cuida de uma nonagenária e ganha 1 400 reais líquidos por mês. Não consegue se aposentar porque, sem alertá-la, alguns patrões deixaram de pagar o inss que lhe deviam.
Estávamos ainda no café de Botafogo. Mordiscando um sanduíche, Ana Flavia me contava que nunca teve empregada. “E não pretendo ter. Já contratei faxineiras que iam quinzenalmente à minha casa, mas me agoniava vê-las ralar enquanto a dondoca aqui bancava a preguiçosa. ‘Chega, chega! Não precisa fazer mais nada.’ Eu as dispensava antes que terminassem o serviço.”
De repente, uma jovem negra atravessou a cafeteria e parou diante de nossa mesa. “Você é a Ana Flavia Cavalcanti?”, indagou, com delicadeza. “Não acredito! Que maravilha encontrar você justo agora! Seu papel em Malhação me inspira um bocado. Você nem imagina… Perdão se atrapalho a conversa. É que me aconteceu um negócio terrível. Fiquei completamente devastada.”
Os olhos da jovem marejaram. “Me chamo Ísis. Prazer! Sou de Minas e vim recentemente para o Rio. Faço mestrado em artes cênicas na universidade federal. Estudo a negritude. Ou melhor: a representação do corpo negro no cinema brasileiro, especialmente em Xica da Silva, o filme do Cacá Diegues. Hoje, durante uma aula, expus meu projeto e falei das mulheres pretas, de como nos hipersexualizam o tempo todo. Uma aluna – branca, óbvio – se irritou e me atacou: ‘Que palhaçada! Você está se vitimizando!’ Eu me defendi como pude, mas ninguém me socorreu. Nem o professor! Não havia outros negros na classe… Uma barra! Desculpe, vou chorar…”
E chorou. Ana Flavia lhe ofereceu uma água: “Ô, nega, que corajosa você é! Não recue, não. Insista na pesquisa.” Ísis enxugou as lágrimas e se recompôs: “Vou insistir. Ninguém me derruba, irmãzinha! Luto capoeira!” A atriz sorriu: “Luta? Então volte lá e dê uma voa-dora na branquela!”
Editor da piauí, é autor de Júlia e Coió, Rita Distraída e Sorri, Lia! (Edições SM)
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