Isso ninguém vai negar a Roth: ele escreve bem pra cacete. E seus personagens masculinos estão longe de parecer machos alfa triunfantes EROS_EGON SCHIELE_1911_COLEÇÃO PRIVADA_BRIDGEMAN IMAGES
Entre a pena e o pênis
Uma homenagem solitária a Philip Roth
Reinaldo Moraes | Edição 141, Junho 2018
Os leitores dos 31 livros de Philip Roth publicados entre 1959 e 2010 sabem que seus personagens, mulheres e homens, se ligam uns aos outros atraídos por um tesão muitas vezes incontrolável, quase sempre mútuo, mas quase nunca em base equitativa. Eles e elas partem pras cabeças e depois é que vão ver o que dá e o que não dá certo nas outras dimensões de um relacionamento. Mas os corpos e seus genitais, matéria falível, desgastável, finita, têm a primazia no palco dos dramas rothianos. No seu romance de 1995, O Teatro de Sabbath, exemplo máximo do que estou dizendo, só os amantes é que deitam e rolam, pelo menos enquanto a vida assim o permite. Os cônjuges de ambas as partes ou são odiados e desprezados ou, na melhor das hipóteses, tolerados com impaciente benevolência. Drenka e Mickey Sabbath, os amantes clássicos que buscam alguma forma de transcendência na carne ilícita, permitem-se toda sorte de aventura erótica, urbi et orbi, ao largo dos cônjuges. São insaciáveis e passam bem, obrigado. Nem por isso se tornam imunes a crises existenciais profundas, depressão, doença e morte. Mas se divertem um bocado enquanto seu lobo não vem.
Pra mim, no entanto, e alguns milhões de leitores do Roth, o grande personagem daquelas três dezenas de livros, entre contos, romances e memórias, é Alexander Portnoy, de O Complexo de Portnoy, de 1969, que causou geral na literatura e nos mores & costumes da época. Sabbath, que veio à luz em 1995, e que só agora me caiu nas mãos, já ocupa o segundo lugar no meu ranking particular de personagens masculinos de Philip Roth, herdeiro que é da verve desbocada e da visão de mundo anarcoerótica e profundamente pessimista de Alex Portnoy. São dois ilustres pícaros de pica em riste, Portnoy mais pro clownesco, Sabbath tendendo ao trágico. Algo mais une esses dois: a masturbação como uma das belas-artes. No caso de Portnoy, a bronha – título de um dos dois únicos capítulos titulados do livro, logo no início – compete com o beisebol nas preferências existenciais do personagem enquanto jovem. Já na saga de Myke Sabbath, que antes de entrar na história como titereiro (criador e manipulador de fantoches) e amante de Drenka foi marinheiro mercante e freguês das putas de todos os portos, não há referência a nenhum outro taco que tivesse empunhado além de seu infatigável pênis.
Roth – que morreu no mês passado – era vidrado em beisebol, do qual tinha sido fanático praticante na infância e adolescência. Seu personagem-narrador, Alexander Portnoy, que desde a primeira página deita num divã pra contar sua vida ao psicanalista, expondo uma das mais bem elaboradas subjetividades da literatura contemporânea, e das mais engraçadas, declara-se grande fã de Joe DiMaggio, o center fielder branco e bronco do New York Yankees, time de beisebol com mais torcedores em Nova Jersey, que não têm um time do estado competindo na liga principal. (Já vejo DiMaggio levantando da tumba brandindo seu taco pra mim: “Sim, branco e bronco, mas tive Marilyn Monroe por esposa e Philip ‘Portnoy’ Roth como fã de carteirinha. Tá bom pra você?”)
O fálico taco e aquela luvona vulvária de couro envolvente e protetora do beisebol me parecem simbólicas dos polos genitais que regem a mente do judeu em rebeldia contra as imposições morais de sua cultura e classe social, a média baixa, de Newark, cidade mais populosa de Nova Jersey. O taco e a luva se conectam lúdica e dramaticamente através da bola no beisebol, do mesmo modo que fazem pênis e vagina na dramaturgia dos romances rothianos através do desejo. Mas é o taco que não dá sossego, em sua busca alucinada pela luva. No capítulo “Bronha”, do Complexo de Portnoy, ele diz, sempre deitado no divã do psicanalista: “Então chegou a adolescência – metade do tempo eu passava trancado dentro do banheiro, disparando porra dentro da privada, ou nas roupas sujas no cesto, ou plaft, bem no espelho do armário de remédios, diante do qual eu me colocava, a cueca baixada, para ver como é que a coisa saía.”
Otaco do herói púbere clama o tempo todo por algum tipo de parceria que não seu próprio reflexo no espelho do banheiro. Uma singela maçã escavada de forma a comportar sua piroca quebrou um grande galho no meio do mato, durante um piquenique da Associação das Famílias. “‘Ah, me arromba toda, Garotão’, gemia a maçã descaroçada em quem dei uma surra de pica naquele piquenique.” Uma garrafa de leite, certamente das antigas, de boca e pescoço largos o suficiente para acolher um pênis adolescente duro, também prestou seu serviço à nação, com a boca devidamente untada de vaselina. Calcinhas e sutiãs roubados da irmã também fazem as vezes de preciosos fetiches nas mãos do onanista voraz.
Na primeira ocasião em que Portnoy vê uma mulher de carne e osso nua na sua frente, a poucos metros de distância, o taco simbólico e a luva de beisebol real encontram-se diretamente na realidade alucinante da ficção. Foi quando Portnoy, adolescente já taludinho, mas ainda menor de idade, entra cheio de medos e paranoias num teatro de revista fuleiro pra ver mulher pelada. Traz com ele a luva de beisebol com a qual tinha acabado de sair da escola. Uma das coristas, que ele apelida de Genuína, o deixa maluco de tesão e ele se masturba acariciando a luva esportiva em cuja palma ejacula delirantemente, bradando lá com os neurônios envolvidos na fantasia: “‘Ah, Genuína, estou gozando, estou gozando, sua puta rampeira’, e assim me torno a primeira pessoa a ejacular sobre uma luva de beisebol dentro do Empire Burlesque de Newark.”
Nessa mesma ocasião, Portnoy vê outro masturbador, um velho sentado na mesma fileira que ele, gozar dentro do chapéu. “Oy, estou enojado! Quero chorar. Dentro do chapéu, não, seu shvantz [idiota, em iídiche], quero ver você pôr essa porcaria na cabeça!” Relendo agora tal cena, me veio à cabeça o conto “Cine privê”, do livro homônimo de Antônio Carlos Viana, escritor brasileiro também falecido, em que convivemos com as agruras de um zelador de cinema pornô, frequentado por uma horda de tristes masturbadores que vertem esperma pra todo lado, matéria orgânica que o zelador tem que limpar, maldizendo sua sina, com balde, pano e desinfetante, ao término de cada sessão.
Lembrei também de uma, para mim, célebre apresentação da peça Cacilda!!!, de cinco horas de duração, no teatro Oficina. No primeiro intervalo, esticando as pernas no foyer junto com minha mulher, sou atingido bem no meio do cocoruto por uma porca pesada que se desprendeu de alguma peça da estrutura metálica do plafond. O teatro não veio abaixo, como cheguei a temer, mas o impacto da porca de ferro doeu muito e tirou sangue. Ensaiei um início de rebelião contra o teatro de vanguarda, quis cair fora, mas fui convencido pela Marta a voltar aos nossos lugares quando soou a campainha para mais um ato da peça. Uns dez minutos depois de recomeçado o espetáculo, olho pro alto e vejo, no balcão acima de nossas cabeças, junto à balaustrada, quatro atores de pau pra fora tocando punheta. Se os inflamados intérpretes chegassem à dissolução final inundariam de porra fresca nossas cabeças desprotegidas, a minha já ferida pela porcada solerte. “Pra mim chega”, declarei em juízo, e dei no pé, seguido por uma contrariada esposa que estava achando tudo ótimo. “Que mal faria um laquezinho orgânico no cabelo?”, Marta argumentou, já na rua, tentando inutilmente me convencer a voltar.
Voltando ao Portnoy, até uma posta de fígado serve à sanha sexual do Garotão. Conta o analisando-narrador ao seu analista: “‘Goza, Garotão, goza’, gritava o pedaço de fígado que eu mesmo comprei no açougue e, acredite ou não, violei atrás de um cartaz de rua a caminho do meu curso preparatório de Bar Mitzvá.”
O jovem punheteiro também confessa que outra posta de fígado fêmea já havia sido desfrutada com ardor anteriormente. “Aquela… aquele fígado não foi o primeiro. O primeiro, eu comi na privacidade da minha própria casa, enrolado no meu pau, dentro do banheiro, às três e meia – e depois o comi, espetado no garfo, às cinco e meia, junto com os outros membros da minha pobre e inocente família.” Confesso que não resisti a clonar essa mesma cena no meu romance Pornopopéia, fazendo meu protagonista fornicar uma lula eventrada, que no seu imaginário onanista equivalia a uma vagina naturalmente lubrificada. Punheta também é cultura.
Curioso é que essa não é a única cena que sugere algum grau de espermofagia por parte de um personagem masculino dos livros do Roth. Sabbath, no romance que ele publicou 26 anos depois do Portnoy, num delírio de saudade sexual da amada morta, vai ao cemitério de noite homenageá-la com uma sentida punheta ao pé da lápide, sobre a qual verte seu sêmen. Quando está indo embora, avista a chegada de uma limusine ao mesmo local. Escondido atrás de umas árvores, Sabbath vê descer da limu outro devoto das carnes ardentes da falecida Drenka, um milionário da área financeira. O fulano deposita um rico ramalhete de flores no túmulo, saca a mandioca pra fora e bate uma pra amante falecida, ejaculando sobre as flores. Quando o ricaço se manda, Sabbath vai recolher o ramalhete fartamente orvalhado de esperma, que gruda em seus dedos. Na solidão do cemitério, e no desvario de seu luto erótico, não lhe ocorre nada melhor a fazer senão sorver os dedos lambrecados com a porra do outro, urrando pra lua cheia: “Eu sou Drenka! Eu sou Drenka!” Sendo que, noutro dia, Sabbath, de volta ao cemitério à noite, ainda flagra um terceiro sujeito que vem descarregar sua saudade numa punheta fúnebre sobre o mesmo túmulo.
Não faltará quem veja nessas cenas onanistas exemplos berrantes de misoginia, acusação de que legiões e gerações de feministas não têm poupado Roth já há várias décadas. Pra elas, o púbere Portnoy apenas se adestra nas artes da reificação da mulher, investindo um pedaço de fígado e uma luva de beisebol de identidade feminina passível de desfrute a qualquer hora, em qualquer lugar. Nas mãos do futuro homem, as mulheres serão manipuladas como tediosos bifes de fígado, que servem só para lhe dar prazer sexual e nada muito além disso. E aquele festival de amantes da adúltera promíscua a homenageá-la com bronhas líricas ao pé do jazigo, numa noite de luar, não passaria de romantismo do tipo mais machista e falocrata que se poderia imaginar. E a pobre amante-cadáver ali, inerte debaixo da campa, submetida aos caprichos necrófilos dos machos abusadores que já estavam quase formando fila pra socar uma em cima dela. Nada mais machista e misógino: nem morta deixam a mulher em paz!
O próprio Philip Roth respondeu a essa fuzilaria incessante e estridente em artigos e entrevistas, como numa de 2014 concedida a Daniel Sandström para um jornal sueco e reproduzida pelo New York Times Book Review. Roth se defende argumentando que era difícil ver em sua obra “uma ode à superioridade do macho”, uma vez que a macholândia dos seus livros é sempre representada “cambaleante, constrangida, humilhada, devastada e rebaixada”.
Há controvérsias. A psicanalista Fabiane Secches e a jornalista Juliana Cunha, ambas mestrandas em letras na USP, num excelente artigo publicado na Folha de S.Paulo poucos dias depois da morte do escritor, reconhecem que ele “parece interessado em investigar os efeitos da masculinidade decaída, incluindo o maniqueísmo e a amargura que vários personagens expressam em relação às mulheres”. Mas ressalvam: “É perfeitamente possível ler os romances de Roth como uma exaltação dessa masculinidade que, embora decaída, permanece como ruína triunfante.”
A metáfora do mundo masculino, em sua versão patriarcal, como uma “ruína triunfante” me parece perfeita, na vida como literatura. Todavia, como as próprias Secches e Cunha admitem, pode não ser muito apropriado botar na conta do autor os pensamentos e atitudes de seus personagens. Segundo elas, “é tarefa ingrata e, mesmo que cheguemos a uma conclusão, é complicado saber o que fazer com isso”.
Mas, voltando à vaca fria e à punheta quente, e retomando a metáfora beisebolística, vale lembrar que Roth se mostrou bom de taco também ao descrever uma siririca, tarefa que ocupa duas páginas e meia do Teatro de Sabbath. O narrador explica como a personagem siririquenta faz: “Utiliza os três dedos: os dedos exteriores nos lábios, o dedo médio pressionando o botão. Movimento circular dos dedos e, logo, a pélvis também num movimento circular. O dedo médio no botão – não a ponta do dedo, a parte arredondada. Primeiro, uma pressão muito leve. Sabe automaticamente, é claro, onde se acha o botão. Depois uma breve pausa.”
E a coisa segue nesse nível de minúcia, até o apogeu da siririca: “Agora ela começou, está gozando, e a pressão é mais forte, mas não extremamente forte, não tão forte que machuque, dois dedos para cima e para baixo, uma pressão ampla, ela deseja uma pressão ampla porque quer gozar de novo…”
Dá pra se ter uma boa ideia do quanto Roth continuaria a ser o Roth se tivesse nascido mulher e se chamasse Philippa. Só que a cena da siririca de Rosie é, na verdade, imaginada por seu marido Sabbath: um onanista macho fabulando uma onanista fêmea em plena ação. Muita leitora feminista deve ter torcido o nariz pra esse expediente narrativo que me parece muito bem sacado e resolvido no livro. Pra minha grande surpresa, ao fuçar na internet, me vejo apoiado nessa percepção por um artigo da revista eletrônica Salon, assinado por Raina Lipsitz, jornalista freelancer e blogueira feminista, que vive no Brooklin nova-iorquino. Lipsitz, a certa altura do artigo, comenta esse mesmo trecho do Teatro de Sabbath: “É superdetalhado e específico para um homem que, segundo muitos insistem, não entende nada de mulher. O que me pega mais é o foco dele no prazer sexual feminino: pode ser voyeurístico, mas, ainda assim, é sobre uma mulher se levando ao gozo.”
E olha que Lipsitz abre seu artigo sobre o Roth comentando que sempre deu por estabelecida a bisonha misoginia do autor e seus personagens masculinos. “Meus colegas no colegial”, diz ela, “pareciam ver Roth como um bode velho: embaraçosamente lascivo, antiquado e incapaz de ver numa jovem, em carne e osso ou ficcional, nada além de um par de peitos ambulantes. Meus professores, mesmo os que mais claramente admiravam Roth, falavam nele em aula num tom quase apologético, como quem se resguarda contra um ataque.”
Quem vê Philip Roth como o grande autor que ele é, capaz de tirar drama, som e fúria da vida sexual de seus personagens, e não como um Bolsonaro americano metido a escritor, tem toda uma selva humana a desbravar, deleitando-se com narrativas capazes de cativar até seus detratores, como a escritora americana com nome de homem, Lionel Shriver, citada por Raina Lipsitz em seu artigo. A autora de Precisamos Falar Sobre o Kevin vê as personagens femininas do Roth nitidamente inferiores aos personagens masculinos: “Às vezes suas mulheres não passam muito de corpos.” Mas conclui, revelando-se admiradora do colega: “Não me incomodo muito com misoginia, desde que seja misoginia bem escrita.”
Isso ninguém vai negar ao homem: ele escreve bem pra cacete. E seus personagens masculinos, de fato, estão longe de parecer machos alfa triunfantes. Em suas próprias palavras, naquela mesma entrevista concedida ao sueco, eles se mostram “cabisbaixos, com uma visão moral embaçada, arcando com uma culpabilidade real e imaginária, alianças conflituosas, desejos urgentes, saudades incontroláveis, amores intratáveis, paixões criminosas, transes eróticos, raiva, divisão do ser, traições, perdas drásticas, vestígios de inocência, ataques de amargura, rolos lunáticos, maus julgamentos e suas consequências, escasso entendimento das coisas, dores infindas, falsas acusações, esforços em vão, doença, exaustão, estranhamento, bagunça mental, envelhecimento, morte…”
E mesmo assim são caras que reivindicam seus direitos à existência e à expressão de seus desejos ao lado das mulheres, desenhadas, muitas delas, com essas mesmas tintas sombrias. E como nós, leitores, também eles e elas ruminam o tempo todo sobre o sentido da arte e da vida. O da arte, pode ser discutido ao infinito, com milhares de respostas. O da vida, me faz lembrar uma frase do Kafka, ídolo do Roth, que o grande autor americano gostava de citar: “O sentido da vida é que ela para.”
Philip Roth acaba de encontrar o sentido de sua vida. Eu tenho ainda uns vinte de seus 31 livros pra ler antes de encontrar o meu, o que, em si, já é uma boa razão pra não ter pressa.
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