Vinhos finos… cristais
Sartre diz em Que é a literatura? que a poesia, diferentemente da prosa, está lado a lado com a pintura, a escultura e a música. Estas artes, para ele, não são linguagem, não buscam significar algo através delas, são coisas: Aquele rasgo amarelo no céu sobre o Gólgota, Tintoretto não o escolheu para significar angústia, nem para provocá-la: ele é angústia feita coisa(...). Diz Sartre que as cores, as formas, os sons musicais são coisas que existem por si mesmas, não remetem a nada que esteja fora delas e o trabalho do artista será o de transformar estas coisas em objetos imaginários.
Sartre diz em Que é a literatura? que a poesia, diferentemente da prosa, está lado a lado com a pintura, a escultura e a música. Estas artes, para ele, não são linguagem, não buscam significar algo através delas, são coisas: Aquele rasgo amarelo no céu sobre o Gólgota, Tintoretto não o escolheu para significar angústia, nem para provocá-la: ele é angústia feita coisa (…). Diz Sartre que as cores, as formas, os sons musicais são coisas que existem por si mesmas, não remetem a nada que esteja fora delas e o trabalho do artista será o de transformar estas coisas em objetos imaginários. Assim, o significado de uma melodia é a própria melodia: Diga que a melodia é alegre ou sombria; ela estará sempre além ou aquém de tudo que se possa dizer a seu respeito. As paixões do artista, que podem ser o motivo da sua criação, sofrem uma transubstanciação, transformam- se em som musical. Ouvindo o Prelúdio de Tristão e Isolda de Wagner, posso sentir isso, sim, a melancolia feita coisa, transubstanciada em música.
Melancolia, tristeza profunda e vaga que toma conta da alma, rouba a vontade de viver. A tristeza não passa e o melancólico vive num mundo de sombras que se perpetua pois ele não consegue esquecer. J’ai plus de souvenirs que si j’avais mille ans, eu tenho mais recordações do que se eu tivesse mil anos, disse Baudelaire.
Seguindo a senda de Sartre fico pensando que a música não traduz alguma coisa, ela encarna, incorpora algo; não é intérprete, é medium. A encarnação da melancolia está marcada e sincopada nas canções dos grandes sambistas cariocas dos anos 50 a 70, como Nelson Cavaquinho, Cartola e Paulinho da Viola.
Trecho do documentário de Leon Hirzman
Neste samba de Nelson Cavaquinho e Ary Monteiro, Paulinho da Viola canta a angústia da espera incerta, o vazio de sentido deixado pela ausência da mulher amada. Voltará? Nunca mais? Never more? O tempo, frio algoz, vai lentamente matando a esperança no sem lugar do desejo de quem foi, talvez, abandonado.
O amor doente é feito canção na belíssima e estranha valsa de Paulinho da Viola e José Carlos Capinan, Vinhos finos…, cristais.
O que me causou espanto quando ouvi esta valsa foi, além de sua estranha beleza, o choque entre o tema corrosivo da canção e a sua forma musical diáfana, pois há uma tensão quase insuportável entre a letra da canção, que fala de um mundo decadente, fragmentado e podre, com a forma delicada e leve do tema musical, uma linda valsa. O verso inicial refere-se à própria melodia, forma “elevada” da canção, valsa, dança de salão, mundo dos costumes requintados, mundo cristalino, polido e artificial, vinhos finos… cristais,talvez uma valsa.No segundo verso, o poeta já fala que este mundo está doente: os dentes da vida estilhaçam uma imagem cristalina que se parte e sangra, e tudo adoece e morre até, finalmente, apodrecer. Lembrei-me do famoso poema de Baudelaire, Uma carniça, da primeira e da última estrofe:
Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.
– Pois hás de ser como essa infâmia apodrecida,
Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol de minha vida,
Tu, meu anjo e minha paixão!
Em Baudelaire, a forma do poema é tradicional, bem ao estilo dos grandes poemas românticos, mas o conteúdo, a carniça, entra em conflito com esta forma e, desta tensão, surge o espanto e uma nova lírica. A gente sente o choque entre a estrutura tradicional e o tema corrosivo, como na valsa de Paulinho da Viola e Capinan. Nela, a aparência polida deste paraíso artificial adoece e é devorada pelos dentes da vida, pelos dentes da saudade, pelos dentes da morte, pelos dentes da engrenagem, pelos dentes de um cão, pelos dentes da paixão e, finalmente, a valsa e o mundo requintado que ela representa se mostra em toda a sua deterioração: ela é vazia, apenas um jogo de palavras entre tudo e nada, e os dentes devoradores também são devorados, dentes podres da canção. Tudo se corrói. Da síntese deste conflito, onde a aparência requintada vai revelando a podridão interior, forma-se o tecido da canção, encarnação do desengano amoroso e do topos do tempo que tudo devora, motivo que ecoa em nossa lírica desde os gregos.
Com Sartre direi que esta canção não fala disto, mas que ela é isto, o amor doente feito valsa, invadindo o salão da nossa imaginação e, entre vinhos finos e cristais, fazendo sua bela e sinistra aparição.
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