Em 2015, Otavio Frias Filho – diretor de redação da Folha de S.Paulo – contou histórias para as crianças com quem passou o Ano-Novo FOTO_FERNANDA DIAMANT_2015
A vida de Sidarta Gautama
Uma história budista
Otavio Frias Filho | Edição 144, Setembro 2018
Entre 2013 e 2016, Otavio, eu e nossa filha mais velha, Miranda (a Emilia ainda não tinha nascido), passamos o Ano-Novo na praia dos Carneiros, em Pernambuco. A gente se hospedava com amigos numa casa amarela. Muitas vezes, enquanto os adultos estavam reunidos em conversas de bar, Otavio contava histórias para as crianças. Isso virou uma tradição e uma atração. Numa noite de Réveillon, às duas da madrugada, com a pista de dança a mil, ele foi pego hipnotizando não só os pequenos como alguns adultos. O naufrágio do Titanic, a Revolução Russa, episódios da Odisseia e da Bíblia, Romeu e Julieta, as aventuras de Gulliver e um conto de horror creditado ao poeta alemão Heinrich Heine figuravam no repertório de Otavio. Os relatos, nem sempre fiéis às versões originais, provocavam perguntas filosóficas e metafísicas das crianças. Ele adorava respondê-las, frequentemente com outras perguntas. Violeta, Tom, Lina, Bel, Jorge e a própria Miranda foram seus ouvintes mais assíduos (além de seus sobrinhos, que conheciam havia muito tempo esse lado do tio). Recentemente, Otavio decidiu escrever A Vida É Sonho e Outras Histórias para Pensar. A coletânea deverá sair em 2019 pela editora Ubu e reúne algumas narrativas daqueles dias de verão, seguidas dos comentários das crianças. Otavio finalizou o livrinho no hospital.
FERNANDA DIAMANT
Era uma vez, muito tempo atrás, num reino à beira do rio Ganges, na Índia, um jovem príncipe chamado Sidarta Gautama. Único filho do rei e da rainha, ele era um rapaz bom e doce. Por isso, quando Sidarta ainda era muito pequeno, seu pai decidiu que ele nunca deveria deixar o palácio.
Até os 15 anos, Sidarta conhecia apenas os corredores, os aposentos e as escadarias do palácio dourado de seu pai. Só que, comparado ao mundo, o palácio não passava de um grão de areia.
Na tarde em que Sidarta completou 15 anos, enquanto os empregados preparavam uma grande festa, um deles, por esquecimento, deixou aberta uma porta que dava acesso à rua. Curioso, Sidarta saiu por essa porta e começou a andar pela cidade que tinha crescido ao redor do palácio. Quantas maravilhas! Quantas cores e sons desconhecidos! No mercado da cidade, havia tigelas e vasos com todo tipo de frutas, doces, flores e carnes. O ar estava tão cheio de perfumes de temperos e incensos que quem respirasse fundo ficava até tonto.
Sidarta, que nunca havia visto nada daquilo, continuou caminhando sem se importar para onde seus passos o levavam. Aqui, mercadores alegres brincavam com os fregueses. Ali, um casal enamorado se beijava. Mais adiante, uma mãe dava leite a seu bebê.
Acontece que, a partir de um ponto, o ambiente foi mudando: as construções ficaram menores; a rua, mais suja; as árvores e plantas, menos exuberantes. Quando chegou próximo ao rio Ganges, Sidarta viu três cenas que o perturbaram imensamente.
Uma mãe dava restos de laranja ao filho de uns 10 anos, pois não tinha água para acalmar a febre que o atormentava. Um homem batia num velhinho para roubar suas roupas. E uma senhora idosa, que tinha acabado de morrer, era colocada sobre uns feixes de lenha aos quais seus parentes ateavam fogo, pois é costume na Índia queimar os mortos e jogar as cinzas no rio.
Doença, violência e morte. Por que elas existiam no mundo? Protegido como era por seus pais no palácio, Sidarta não tinha conhecimento de nada daquilo. Ele resolveu não voltar mais para casa. Decidiu perambular – quero dizer, andar a esmo pelo mundo – para voltar somente quando houvesse entendido o porquê de tantas aflições.
Ao dar conta da ausência de Sidarta, seus pais ficaram desesperados. Despacharam servos para todos os bairros da cidade em busca do filho. Estipularam recompensas para quem soubesse dar informações acerca de seu paradeiro. Mas ninguém o encontrou.
Dias, meses, anos se passaram e todos deram Sidarta por perdido. O que acontecera a ele?
Muitas coisas. Sidarta virou um mendigo, vivendo apenas do que as pessoas lhe davam na rua. Depois, se converteu em marinheiro, viajou pelos sete mares e conheceu o mundo. Passados muitos anos, voltou à Índia, onde trabalhou como carroceiro, lavrador nas plantações de arroz e comerciante no mercado.
Já era, então, um adulto. E mesmo se alguém que o tivesse conhecido antes o visse agora, dificilmente o reconheceria, tão mudado ele estava. Seus cabelos ficaram mais brancos, assim como sua barba. Ele trazia as feridas do tempo em seu corpo, cicatrizes, machucados, e estava muito magro, pois comia bem pouco.
Em algum momento, Sidarta desistiu de tudo. Sentou-se debaixo de uma figueira e ficou ali parado, sem fazer nada, a não ser pensar. De vez em quando, bebia água do rio, comia uma fruta ou outra e voltava para debaixo da figueira, sempre pensativo.
Os meninos que brincavam perto daquela árvore costumavam visitar Sidarta, que achavam meio maluco. Uma bela manhã, encontraram Sidarta morto. Achavam que o frio da noite é que o tinha matado. Na verdade, Sidarta tivera uma iluminação, ou seja, compreendera algo muito profundo que não é possível explicar em palavras.
Assim, Sidarta Gautama se transformou no primeiro Buda. Houve poucos como ele até hoje.
***
Comentários das crianças:
“Ôta, ôta!”, disse Emilia, que às vezes ficava um pouco impaciente e queria ouvir mais histórias. Nem todas as crianças gostaram tanto de conhecer a vida de Sidarta Gautama. “Essa história não tem pé nem cabeça!”, disse Violeta. “Por que não tem pé nem cabeça?”, perguntei. “Pra mim tem cabeça até demais”, eu disse. Tom pensava como Violeta: “O cara sai de casa, anda, anda, anda e daí morre debaixo de uma árvore. Não acontece nada!” Mas Lina discordou: “Às vezes tem muita coisa numa história que fica implícita, meu.” Jorge logo quis saber o que é implícita. Eu disse: “Concordo com a Lina, e implícita, Jorge, é uma coisa que está ali, mas que nunca foi dita, que nem a tal iluminação do Sidarta.”
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