A ONU nomeou Maha Mamo embaixadora do programa que luta pelos direitos dos apátridas GUIDO FERRO
Passaporte azul
A “mulher sem pátria” finalmente se naturaliza brasileira
Cláudio Goldberg Rabin | Edição 147, Dezembro 2018
“Olho o meu RG e não consigo deixar de pensar: ‘Tanta luta só para isso?’”, disse Maha Mamo por telefone, de Belo Horizonte, num português muito compreensível, mas com forte sotaque árabe. Fazia três semanas que a jovem de 30 anos se tornara brasileira e apenas três dias que obtivera sua carteira de identidade.
Naquela manhã de outubro, algumas horas antes do telefonema, Mamo havia comparecido à Polícia Federal e estreado o documento. Apresentou-o no guichê ao finalmente requerer um passaporte comum, o azul, a que todo brasileiro tem direito. Os funcionários da PF quebraram o protocolo da impessoalidade no serviço público e a abraçaram. Como já a conheciam, sabiam que estava abandonando uma condição terrível – a de apátrida.
Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), a apatridia afeta 10 milhões de pessoas no mundo. É uma espécie de limbo institucional em que, por questões legais, um indivíduo não dispõe de uma nacionalidade. Vê-se, assim, obrigado a viver sem documentos e com os inúmeros problemas que decorrem dessa situação.
Hoje existem duas maneiras de se conseguir uma cidadania logo após o nascimento. Há países, como o Brasil, que priorizam o território: se o bebê nasce num deles, ganha automaticamente a nacionalidade local. Outros Estados dão preferência ao sangue. É o caso da Suíça. Quem nasce ali só vira suíço se tiver ascendência suíça.
Na década de 80, os pais de Mamo trocaram a Síria natal pelo Líbano para se casarem. A emigração se deu por motivos religiosos. Como o pai da jovem é cristão e a mãe, muçulmana, a Síria proibia a união. Mamo acabou nascendo no Líbano, à semelhança da irmã mais velha e do irmão caçula. Em ambos os países, o direito à cidadania vem pelo sangue. Desse modo, Mamo e os irmãos não puderam ser sírios porque o Estado de seus pais rejeitava o casamento deles. E não se transformaram em libaneses porque o Líbano descarta o critério da territorialidade.
A recém-brasileira cresceu procurando solução para um impasse que todos ao redor dela julgavam insolúvel. Estudou de favor num colégio armênio de Beirute porque sua mãe era amiga do proprietário, que deixou a garota se matricular sem exibir nenhum documento. Mais tarde, depois que cerca de 40 instituições de ensino superior a recusaram, Mamo ingressou numa faculdade e se diplomou em sistemas de informação. Desde os 16 anos, pedia ajuda para políticos e funcionários públicos libaneses, além de embaixadas, mas não conseguia nada. À medida que o tempo passava, sentia que não poderia mais ficar no Líbano, por causa dos tantos conflitos que o assolavam. Havia o risco de ser parada num checkpoint e não ter o que apresentar.
Em novembro de 2013, o México chegou a aceitá-la. A burocracia local, no entanto, impediu que o processo andasse. Nesse ínterim, a irmã de Mamo procurou a representação brasileira em Beirute e encontrou, enfim, uma alternativa para a família. A embaixada decidiu classificar os três jovens como refugiados sírios e emitiu um visto especial que, em 2014, lhes permitiu fazer uma viagem só de ida ao Brasil. Mamo tinha 26 anos à época. “O jeitinho brasileiro nos salvou, graças a Deus”, resumiu pelo telefone.
No aeroporto libanês, outro problema: como deixar alguém sair de uma nação onde, sob a ótica das autoridades, nunca havia entrado? Mamo acionou sua rede de contatos e encontrou a solução: o trio pagaria uma multa pelos anos de “ilegalidade” no Líbano e não poderia retornar. Com o auxílio dos pais, um caminhoneiro e uma dona de casa, os irmãos desembolsaram a quantia e partiram. Qual o valor da multa? Mamo preferiu não dizer.
Uma família de Belo Horizonte topou abrigar os três temporariamente. Mal começou a pegar jeito com o português, Mamo – que já falava inglês, francês, árabe e armênio – arranjou emprego numa fazenda em Ibitinga, no interior paulista. Foi trabalhar com comércio exterior. Logo depois, a ONU a convidou para se tornar embaixadora nas Américas do programa que reivindica o fim da apatridia.
Lentamente, a jovem foi entrando, com alegria, na malha burocrática brasileira. Graças ao status de refugiada, tirou o Registro Nacional de Estrangeiros. Fez, em seguida, seu primeiro passaporte, o de cor amarela, que o Brasil destina a quem possui o RNE. O documento traz poucas folhas para carimbos, já que muitas nações não o aceitam. Em virtude do trabalho, Mamo precisou viajar três vezes a Dubai. Nas duas primeiras, conseguiu entrar no emirado com o passaporte amarelo. Na terceira, esperou 48 horas no aeroporto e acabou deportada. De tão raro, os próprios agentes da Polícia Federal nem sempre reconheciam o documento, o que dificultava o retorno da viajante ao país que a acolheu.
Em julho de 2016, o irmão de Mamo levou um tiro numa rua de Belo Horizonte, desferido por menores de idade que tentavam assaltá-lo. A bala atingiu o coração do rapaz e o matou. “É triste, mas hoje penso que o Brasil lhe deu o privilégio de uma certidão de óbito, o que muitos apátridas não têm”, consolou-se a jovem. A tragédia tornou mais urgente a aquisição da cidadania. Mamo resolveu lutar para conquistá-la antes do prazo de quatro a quinze anos – tempo que os estrangeiros residentes no país costumam levar até se naturalizarem. “Apressar o trâmite significava honrar a memória do meu irmão.”
Ela aumentou, então, o número de aparições públicas em defesa da causa. Ministrou palestras, protagonizou reportagens na Al Jazeera e na BBC World News, participou do programa da Fátima Bernardes na Globo e até desfilou pela Portela, que retratou o drama dos refugiados no último Carnaval.
Não bastasse, manteve contato com o Congresso a fim de que a nova Lei de Imigração contemplasse situações semelhantes à dela. “Mamo teve um papel decisivo nessa questão”, avalia André Furquim, diretor adjunto do Departamento de Migrações da Secretaria Nacional de Justiça. Promulgada em maio de 2017, a lei prevê que o Brasil não apenas aceite a condição de apatridia, mas também possibilite que os apátridas se naturalizem após dois anos no país. Normativas posteriores definiram como os funcionários públicos devem proceder para garantir o cumprimento das regras.
Em junho de 2018, Mamo e a irmã deixaram de ser refugiadas e se converteram nas primeiras apátridas reconhecidas oficialmente pelo governo brasileiro. Pouco depois, solicitaram a naturalização. No dia 2 de outubro, enquanto o processo ainda tramitava, Mamo viajou para Genebra, onde participaria de uma conferência da ONU. Quando estava saindo do Brasil, passou mais uma vez por apuros: a companhia aérea quase não aceitou o passaporte amarelo.
Na Suíça, a jovem discursou para pessoas do mundo inteiro. Como de hábito, encerrou a apresentação com a frase “Brasil, eu quero a minha nacionalidade.” Vários espectadores não contiveram as lágrimas. Foi então que a embaixadora brasileira Maria Nazareth Farani Azevêdo pediu a palavra. “Você está ficando muito repetitiva, Maha”, disse, emocionada. A seguir, o coordenador-geral do Comitê Nacional para os Refugiados, Bernardo Laferté, adentrou o recinto segurando um papel. Tratava-se de uma surpresa. Era o documento que conferia à então apátrida o título de brasileira. “Na hora, liguei para minha mãe em Beirute”, contou Mamo. “Só que não consegui falar nada. Eu chorava muito… Mesmo assim, ela compreendeu tudo.”
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