Olavo interrompido
Guru do governo Bolsonaro tem participação na Cúpula Conservadora das Américas frustrada pelo meio que o fez famoso, a internet
“Olavo tem razão”, exultou o estudante Eduardo Vargas Marecos, enquanto virava a bolsa que levava no ombro para mostrar um adesivo com o nome do autoproclamado filósofo – e guru intelectual da nova direita brasileira – encimado pelos dizeres “Sapientiam autem non vincit malitia” (“Nenhum mal pode superar a sabedoria”, em latim).
Marecos e o amigo Matheus Simon – que como ele tem 16 anos de idade e é paraguaio filho de pais brasileiros – cruzaram a Ponte da Amizade, que separa os dois países, para passar a tarde de sábado de sol e calor enfurnados na Cúpula Conservadora das Américas, evento promovido em Foz do Iguaçu pela Fundação Indigo, um braço do Partido Social Liberal, de Jair Bolsonaro.
“Até onde sabemos, somos conservadores”, me disse Marecos, um rapaz magro, com algumas espinhas no rosto e cabelos um tanto desarrumados penteados de lado, enquanto examinavam camisetas à venda num estande que prometiam “muito mais opressão” – uma das estampas tinha o perfil de um cão defecando a foice e o martelo, símbolos do comunismo – para matar o tempo.
Àquela altura, ainda faltava uma hora para o evento começar, e suas principais estrelas, o deputado federal reeleito Eduardo Bolsonaro, filho do capitão reformado, e o Luiz Philippe de Orleans e Bragança, tratado por “príncipe”, ainda não haviam chegado. Olavo de Carvalho também participaria, mas à distância, de sua casa nos Estados Unidos, via internet. O saguão do centro de convenções, de cujo teto alto despontavam quatro espalhafatosos lustres de cristal em contraste com a arquitetura moderna do prédio, ainda estava vazio.
“O conservadorismo veio da família”, explicou Simon, que trajava uma camisa social comportadamente metida por dentro da calça e usava um par de óculos que o fazia parecer ter mais que sua idade. Os dois são filhos de famílias de brasileiros que foram ao Paraguai fazer a vida – a de Simon planta soja em dois mil e quinhentos alqueires de terra; a de Marecos importa e vende “uma porção de coisas”.
“Somos da roça, onde muita gente pensa assim”, prosseguiu o rapaz, antes de Marecos interrompê-lo: “É questão de lógica. Por que mudar o que está funcionando?” Emendou um arrazoado sobre a superioridade da cultura ocidental e cristã à moda do guru da nova direita. Olavo de Carvalho e os canais de YouTube “Terça Livre” e do jornalista católico Bernardo Küster fazem parte da dieta de informações dos dois amigos. MBL? “Eles não são conservadores”, Marecos torceu o nariz.
Mrs. Robinson, a canção de Simon & Garfunkel que se tornou célebre no filme A Primeira Noite de um Homem, em que o jovem Dustin Hoffman é seduzido pela madura Anne Bancroft, ecoava dos alto-falantes do centro de eventos à medida que o público entrava. A organização esperava 1 500 pessoas – o número de inscrições –, mas àquela altura menos de 500 estavam lá. A solução foi fechar parte do salão, de forma a acomodar os presentes nas primeiras fileiras de assentos. “Ali tem umas 400 cadeiras”, confidenciou um segurança da casa.
Com 53 minutos de atraso, um documentário produzido pelo canal Brasil Paralelo, espécie de Netflix com produções ao gosto conservador, abriu a mesa inicial do evento, que teve Cultura como tema. Após as críticas ao Foro de São Paulo, ao pedagogo Paulo Freire e aos intelectuais da Escola de Frankfurt – que na primeira metade do século XX reuniu pensadores como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e Walter Benjamin –, anunciou-se o que boa parte da plateia parecia esperar: a presença virtual de Olavo de Carvalho, que debateria com Eduardo Bolsonaro, Orleans e Bragança, o dissidente cubano Orlando Gutierrez e o venezuelano Roderick Navarro.
“Quero ver nosso professor Olavo de Carvalho. Iríamos iniciar [o debate] com ele, mas está havendo um problema na conexão”, anunciou Bolsonaro, que fez o papel de mediador, causando alguma frustração no público. Enquanto tentava-se resolver o problema, o filho do presidente eleito passou a palavra a Orleans e Bragança. “O que está havendo no Brasil e no mundo é um movimento dos valores do campo contra os valores progressistas dos grandes centros urbanos”, disparou o monarquista, de certa forma endossando a opinião do jovem Matheus Simon.
Vinte minutos depois, finalmente a imagem de Olavo de Carvalho surgiu em dois telões que ladeavam o palco. Ouviram-se gritos e aplausos na plateia. “É uma satisfação falar com o senhor”, saudou Eduardo Bolsonaro. A resposta, porém, não foi inteligível. “[O som] Está estranho, dando um eco”, preocupou-se o jovem Bolsonaro. Após o que aparentou ser uma melhora, novos gritos de empolgação da audiência.
“Um evento desses não seria possível há cinco anos”, começou a falar o filósofo, ao mesmo tempo que sacava um lenço de pano do bolso para – sonoramente – assoar o nariz. Risos na plateia.
O guru falava rápido. Não seria fácil acompanhá-lo com o som em boas condições. Com a voz distorcida pela internet, ficou ainda pior. Nos poucos minutos em que esteve audível, Olavo de Carvalho foi a tradicional metralhadora de pensamentos “politicamente incorretos”, como gostam de dizer seus seguidores. Zombou da Comissão de Verdade que tratou dos crimes da ditadura militar – “A começão (sic) da verdade foi uma farsa” – e pediu para que o governo Bolsonaro aja com a oposição como o conquistador espanhol Hernán Cortés fez com os astecas. Não se aprofundou, porém, se o plano era de extermínio ou subjugação.
“Temos que matar até o último, senão os pequenininhos vão crescer”, falou, supostamente citando Cortés. Em seguida, mirou um alvo já tradicional: “A prioridade agora tem que ser a mídia e as universidades. A produção cultural do Brasil foi 100% dominada pelos comunistas desde os anos 60. Temos que investigar tudo, sobretudo as empresas de comunicação, que por dezesseis anos negaram a existência do Foro de São Paulo. Temos que derrubar essa hegemonia de qualquer maneira. Senão vão destruir o governo que o Brasil escolheu”, exortou.
Foi aí que o som voltou a piorar. As frases de Olavo de Carvalho vinham picotadas, como se ele falasse à maneira que Jorge Ben cantava na segunda parte de País Tropical (Mó num pa tropí/Abençoá por Dê/E boní por naturê). “Está muito ruim”, gritou um rapaz poucas cadeiras à minha direita, reclamando do som. Algumas pessoas ignoraram o guru e começaram a conversar. Nos Estados Unidos, ele levava à boca um copo dos que se usam em botequins para servir cachaça, cheio de um líquido de cor âmbar. Algumas pessoas riram, constrangidas.
A fala do guru foi interrompida por ali. Mas não sem um fecho à altura de sua participação. “Vou desligar essa porra”, disse Olavo, se referindo ao microfone, enquanto Eduardo Bolsonaro já fazia uma pergunta ao cubano Gutierrez. Novas gargalhadas.
O filho do presidente eleito saiu do auditório caminhando rápido e cercado por um séquito de seguranças. Dirigiu-se a uma sala um andar abaixo para falar a jornalistas. O tom bem-humorado e casual dele no trato com os repórteres surpreendeu a quem se habituou com as interrupções constantes do pai em entrevistas ou aos impropérios que o irmão Carlos, espécie de porta-voz da família, dispara via Twitter.
Após os habituais ataques à Venezuela – “O Brasil não pode reconhecer o governo de Maduro” – e uma estocada no futuro ministro Onyx Lorenzoni, destinatário de dinheiro em caixa dois da JBS – “Não basta se resolver com Deus, tem que se resolver com a Justiça também” –, o filho deputado de Bolsonaro procurou minimizar a participação frustrada de Olavo de Carvalho. “Teve um pouco [de problema no som], mas o recado foi dado. A imagem estava inclusive melhor do que a gente vê habitualmente [na internet]”, esquivou-se.
Antes da breve entrevista coletiva, eu avistara o jovem paraguaio Eduardo Marecos deixando o auditório. “Acho que o microfone do Bolsonaro ficou aberto e isso deu eco na voz [do filósofo]”, ele arriscou. Frustração? “Que nada. Eu vejo tanto o Olavo que já consigo saber do que ele está falando só de ler nos lábios.” E saboreou: “Esse evento está filé.”
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