CRÉDITO: CAIO BORGES_2019
Rosie
A convicção que ela tem agora só pode ter vindo de suas células
Ayọ̀bámi Adébáyọ̀ | Edição 154, Julho 2019
Tradução de Marina Vargas
Lará imagina se conseguiria se afogar em uma banheira, naquela banheira. Sóbria. Nada de tramadol ou codeína. Apenas a água transbordando, cobrindo, envolvendo seu corpo enquanto afunda. Não que tenha tendências suicidas – não, ela não é esse tipo de mulher. A diaconisa Lará Gbadé-Thomas é uma pessoa muito feliz. E para o banho daquela noite escolheu sais de lavanda, baunilha e capim-limão. A lavanda tem propriedades calmantes, segundo a internet. Calmantes, relaxantes e desestressantes. É realmente maravilhosa. Ela espalha um último punhado de sais na banheira e observa enquanto os grânulos se dissolvem. Se fosse se matar, Deus me livre, mas se um dia quisesse se matar, ela simplesmente entraria caminhando em uma lagoa. Nada de ventiladores de teto ou cordas, cianeto ou tiros na cabeça. Apenas água, seu abraço adamantino enquanto ela submerge no invisível, e escorregadio, quando ela começa a flutuar. O corpo fingindo que está nadando, como antes adorava fazer, perpetuando a memória muito depois de o coração parar de bater; boiando na superfície, esperando ser encontrada.
Ela raramente pensa em se afogar antes ou durante os banhos de banheira, aquele é seu lugar favorito na casa. Os quartos são pequenos demais, ela não alcança as prateleiras da cozinha, mas parou de se queixar. Aquele banheiro maravilhoso, com a banheira perfeita, é motivo suficiente para se sentir grata. Além disso, depois que superassem aquele disparate com a assistente pessoal, ela e Gbadé iam se mudar para a nova casa em Abuja. E então talvez conseguissem persuadir os filhos a irem morar com eles.
Lará cantarola enquanto se movimenta pelo banheiro, acendendo velas aromáticas. Embora prefira usar o difusor de óleos essenciais, nas noites antes de Gbadé voltar de viagem ela se contenta com velas, porque a fragrância dos difusores às vezes permanece no quarto por horas depois do banho. Gbadé não gosta. Depois de acender as velas, ela despe o robe e entra na banheira, sorrindo quando a água fria faz sua pele arrepiar. Lá fora, o cachorro late quando o gerador do vizinho é acionado. Ela se recosta e estica as pernas, tomando cuidado para não encostar na corrente do tampão do ralo. Ela ama o peso da água – como puxa seus membros para baixo e a faz ter a sensação de que vai afundar, a ondulação sobre sua pele enquanto se acomoda –, deleita-se com essas sensações e com a intumescência que quase a deixa excitada. Aquilo é a preparação. Quando Gbadé chegar, no dia seguinte, estará pronta.
Ela se sobressalta quando alguém bate à porta. Janet é a única outra pessoa em casa naquele momento e tem ordens para não entrar no quarto do casal sem permissão. Lará suspira, ela sabe do que se trata: alguém da campanha insistiu que era uma emergência e que, portanto, Janet tinha que chamá-la imediatamente. Mas não há emergência nenhuma, a equipe da campanha só quer se certificar de que ela vai dar a entrevista rebatendo as alegações de Debbie, a assistente pessoal. Se Gbadé a ouvisse mais, ninguém a estaria perturbando no único sábado livre que terá em meses. Ela tinha dito a ele para não contratar aquela garota como assistente, mas o marido a ouviu? Agora, cinco anos depois, essa assistente, ex-assistente, andava dizendo a blogueiros que certa vez Gbadé abriu a blusa dela e que todos na campanha política pareciam sofrer de uma enxaqueca permanente.
Lará sai da banheira, fica de pé sobre o tapete do banheiro e limpa a garganta.
Janet, é você?
Sim, senhora.
Fazia algumas semanas que todos os dias alguém da campanha telefonava ou mandava uma mensagem de texto para ela sobre o que chamavam de “a situação”. No início, queriam que persuadisse Gbadé a se pronunciar a respeito, já que ele não atendia a seus apelos. Então, quando deixou claro que não ia nem sequer tentar fazer isso, eles pediram que ela concedesse uma entrevista à imprensa. Todos na equipe tinham menos de 30 anos. Muitos eram amigos de seus filhos, jovens inteligentes e dedicados a quem ainda faltava experiência. Todos pareciam convencidos de que “a situação” era importante. Naquele país, naquele mundo? Às vezes, Lará tinha vontade de rir durante os telefonemas desesperados, mas se continha.
Ela pega uma grande toalha e a enrola em volta do corpo. Logo aqueles jovens iam se dar conta de que ninguém dava a mínima para aquilo, mas ela concordou em falar com um jornalista escolhido por eles no dia seguinte, depois do culto dominical. O rapaz responsável pela assessoria de imprensa disse que era uma ótima escolha, que seria bom mostrar a todos que ela era uma mulher que frequentava a igreja. Será que a igreja permitiria que tirassem uma foto dela de pé diante do altar? Não no altar, mas perto o suficiente para que dominasse o enquadramento. Quando ela respondeu dizendo que ia pregar a Palavra naquele domingo, ele fez uma dancinha antes de fazer mais perguntas. Então, será que poderiam tirar uma foto dela enquanto estivesse pregando?
Tenho visita, Janet?
Não, senhora, não tem visita. Sou eu mesma que quero falar com a senhora.
Algum problema?
Por favor, senhora. Abeg.
Quando abre a porta do banheiro, Lará se depara com Janet de joelhos. A cabeça da empregada está curvada, de forma que Lará não consegue ver seu rosto, apenas os cabelos, espessos e lustrosos, presos em uma trança grossa sobre a nuca.
Levante-se, Janet. Ela gosta de olhar para o rosto das pessoas enquanto fala com elas.
Deixa eu ficar assim, senhora, por favor.
Sempre de joelhos, a empregada se afasta da porta, enquanto Lará passa por ela e vai se sentar na cama.
Olhe pra mim.
Janet balança a cabeça.
O que você quer?
Vou pra minha aldeia amanhã, senhora.
Amanhã?
Janet faz que sim com a cabeça.
Por que só está me dizendo isso agora, hein? Eu disse pra me avisar pelo menos uma semana antes quando precisar viajar.
Não quero voltar pra cá, senhora.
Já deixei muito claro pra vocês todos que preciso saber com pelo menos uma semana de antecedência se algum empregado… O que você disse? Não quer voltar pra cá?
Janet é a primeira empregada que fica com eles mais de um ano. Até Lará se surpreendeu quando a moça voltou de sua aldeia depois da primeira folga de dezembro. Ela sabe que é uma pessoa difícil de agradar; nenhuma outra empregada suportou lavar os quatro banheiros do chão ao teto com uma escova de dentes duas vezes por semana. Algumas das empregadas anteriores tinham ido embora sem avisar, mas Janet estava com eles havia três anos, e agora Lará se dava conta do quanto precisava dela. Provavelmente levaria mais cinco anos para encontrar alguém capaz de passar uma saia sem deixar vincos nas laterais.
Você quer mais dinheiro? Posso aumentar seu salário.
Não, senhora.
Levante a cabeça, olhe para mim. Você tem sido uma boa moça. Posso pagar o dobro.
Janet balança a cabeça. Não, senhora, quero ir pra aldeia.
Mas por que agora? Por quê? Lará nunca bateu em nenhuma de suas empregadas. Aquela garota tinha o próprio quarto, com cama, ar-condicionado e um armário cheio de roupas seminovas.
Janet, por que você quer ir embora?
Minha mãe está doente.
Lará se inclina para trás e reprime a vontade de dar um tapa na cara de Janet. Ela sabe que a mãe de Janet morreu anos antes de a garota ir trabalhar para ela.
Saia do meu quarto, sua mentirosa… saia. Lará aponta para a porta. Pode ir embora amanhã se quiser. Faça como quiser, está ouvindo? Só não espere que eu lhe pague um kobo sequer do salário deste mês, se você vai embora desse jeito. Saia.
Janet sai do quarto aos tropeços.
Lará agarra os joelhos e fecha os olhos com força. Não poderia haver momento pior para a empregada pedir demissão. O cozinheiro acabou de tirar uma semana de folga para cuidar dos preparativos do casamento do filho, e ela está sem assistente pessoal. Gbadé tinha um novo assistente, mas os dois quase sempre viajavam juntos, então ele não tinha praticamente nenhuma utilidade para ela.
Senhora.
Ela abre os olhos e vê Janet parada à porta. Ainda não tem coragem de dirigir a palavra à garota. Sabe que sua raiva, que já está beirando a ira, assumiria o controle da boca e dispararia palavras afiadas o suficiente para retalhá-la. Já aconteceu antes, vezes suficientes para que ela fosse tomada pela vergonha, mesmo agora.
Na Oga. O patrão.
Meu marido?
Sim, senhora. Janet franze a testa. É por causa dele.
Lará respira fundo e conta até cinco. Você está indo embora por causa do meu marido? Venha aqui, vamos conversar.
Janet entra no quarto e se senta ao lado de Lará.
Antes de o patrão viajar, antes de viajar dessa vez, Janet ergue o queixo e seu olhar parece focar no teto arqueado. Antes de o patrão viajar dessa vez, ele colocou a mão no meu peito.
Lará tenta contar até cinco novamente, mas não consegue se lembrar do que vem depois do um.
Fui na cozinha aquela noite lavar os pratos antes de dormir. O patrão veio por trás, colocou a mão no meu corpo assim. Janet enfia a mão por dentro da gola da blusa. Então apertou eles, apertou. Aí eu empurrei o patrão, e ele caiu.
Cale essa sua boca imunda. Você está mentindo. Lará olha para o peito de Janet; a garota tem seios pequenos, seios empinados, mas que não passam de dois peitinhos. Nas três décadas desde que se casou, Lará contratou apenas empregadas com seios pequenos. Quando chegou, antes de mudarem seu nome qualquer e a rebatizarem de Janet, aquela garota usava sutiãs com enchimento que empurravam os seios comicamente quase até o queixo e faziam com que parecessem ter o dobro do tamanho. Não, impossível, não. Os seios minúsculos daquela mentirosa nem sequer encheriam as palmas de Gbadé.
Não quero causar problema, senhora. Janet seca o rosto com as mangas da blusa. Eu imploro, só quero voltar pra minha aldeia.
Essa mentirosa idiota, ela deve achar que pode ganhar dinheiro fácil agora que Gbadé está concorrendo nas eleições. Será que leu os blogs? Não, ela não sabe ler.
Quem mandou você vir me dizer isso? Me conte, Janet.
Ela se inclina para tocar o ombro de Janet. A garota se afasta como se tivesse sido queimada, pula da cama e começa a recuar. Lará vai atrás, na esperança de segurá-la pelo pulso antes que alcance a porta, mas a toalha escorrega quando ela avança, e Lará tomba de joelhos, tentando sem sucesso impedir que a toalha caia no chão.
A porta se fecha com um estrondo depois da passagem de Janet. Lará se senta no chão, a cerâmica fria do piso contra suas nádegas, a toalha branca fora de seu alcance. É uma toalha branca, pois só pessoas imundas usam as coloridas, e tem o monograma dela em dourado porque Gbadé costuma presenteá-la com coisas assim. O que ele iria querer com uma garota analfabeta, magra como um peixe, que mal completou 20 anos? Não que Gbadé não a traísse. Lará sabe que ele está passando o fim de semana com uma de suas namoradas, a peituda, de 30 e poucos anos, que faz Lará se lembrar de si mesma quando tinha a mesma idade. Ela havia se despedido dele com um abraço quando ele saiu para o aeroporto, bem cedo no dia anterior, sabendo que não havia voo às 7 horas para Port Harcourt, divertindo-se com a insistência dele de que não teria tempo de tomar o café da manhã porque poderia perder o voo, vagamente reconfortada por saber que a única amante que ele estava sempre ansioso por encontrar se parecia muito com a Lará com quem ele havia se casado. Quando ele voltasse, ela perguntaria sobre o voo. Eles conversariam um pouco sobre como podia ser aterrorizante andar de avião na Nigéria, talvez inclusive a distraísse com uma história sobre fumaça na cabine, enquanto ela, mais entorpecida do que distraída, giraria o copo d’água nas mãos, imaginando se ele engasgaria com a água dele caso ela perguntasse: Então, como está a Kenny? Ficaram hospedados no Best Western dessa vez ou passaram o fim de semana enfiados no apartamento dela em Bodija? Mas o apartamento não é pequeno? Só dois quartos, não é?
Sempre houve outras mulheres. Antes de se casarem, Gbadé precisava daquelas mulheres porque ela ainda se recusava a dormir com ele; dormir com ele sem camisinha; deixar que ele gozasse dentro dela. E depois?
Nos primeiros anos de casamento, ela ignorou os nomes que Gbadé murmurava entre um ressonar e outro, dando as costas para ele no meio da noite e deslizando para fora da cama nas primeiras horas da manhã: para tirar teias de aranha da varanda, elaborar um novo cardápio para a cozinheira, verificar o dever de casa dos filhos e erguer a mochila deles no alto, sentindo o peso para ter certeza de que não estavam prejudicando suas pequenas colunas, havia sempre algo por fazer. As mães trabalham até mesmo no túmulo. Você nunca ouviu homens de cabelos brancos pedirem a ajuda da mãe quando têm algum problema? Como eles gritam orí ìyá mi décadas depois de a terem enterrado, sua mãe lhe disse ao telefone no dia em que Lará, depois de conferir as duas mochilas, se encolheu em uma poltrona e discou os números que fora obrigada a memorizar quando criança; sabendo que a mãe já estaria na sala de estar, sentada à meia-luz com uma xícara de café.
Depois que a mãe atendeu ao telefone, Lará divagou por algum tempo sobre teias de aranha e mochilas, antes de mencionar a mulher muito alta que Gbadé chamava durante o sono ultimamente. De salto alto, Lará ficava da mesma altura dele, tornando-se muito fácil para ela imaginar como deviam se beijar, como seus corpos deviam se encaixar perfeitamente um no outro, já que não era necessário se esticar nem se curvar muito. Enquanto falava, ela enrolava o fio espiralado do telefone em torno do braço e puxava. Quando mencionou que a mulher alta era ex-miss, sua mãe perguntou: Você já leu o testamento do seu marido? O braço estava dormente naquele momento. Ela pegou o fio e puxou com mais força, até a dormência se transformar em dor. Mas nem mesmo isso afastou as lembranças daquela noite de vento seco, quando contou à mãe que estava grávida. Seis meses antes do casamento, de forma que seus pais, presbítero e diaconisa da Igreja Apostólica, viram a filha se casar no cartório em vez de na igreja. O rosto de sua mãe se contorceu de angústia como se um trovão se propagasse por baixo das maçãs do rosto, e suas perguntas se seguiram a um suspiro que pareceu esvaziar a alma. Com que cara eu vou contar pro seu pai essa vergonha? Lará mi, você queria isso? E, é claro, o gesto de descaso que fizera com a cabeça ao responder à segunda pergunta, que era irrelevante. Apenas mais uma prova de que a mãe, que durante toda a vida de casada dormira em um quarto diferente do marido, do outro lado do corredor, não sabia nada sobre paixão. Nos anos leves e felizes depois de cursar a escola de enfermagem, quando se apaixonou por Gbadé, ela era LaráGbadé, dois em um, a Lará de Gbadé, como os parentes dele a apresentavam nas festas. Não era esse o sentido de amar? Por que então deveria distinguir seus desejos dos dele?
Por fim, a mulher muito alta se mudou para Kampala e tudo terminou, mas Lará fez amizade com o motorista de Gbadé, como sua mãe instruíra, e a partir do que ele lhe contava sobre as namoradas do marido, reuniu provas, como se montasse um processo, registrando datas e horários, endereços e números de quartos de hotel, ocasionalmente acrescentando uma fotografia. E durante todo aquele tempo não houve nenhuma mulher com seios tão pequenos quanto os de Janet, nunca. Mas ainda assim.
Ela devia ligar para a mãe, mas antes precisava pegar a toalha e enrolá-la em volta do corpo, em seguida massagear os joelhos no local onde tinham se chocado com força contra o piso. Depois disso, vai procurar o telefone, vasculhando o quarto duas vezes antes de encontrá-lo enfiado na dobra de um edredom embolado. Quando discar o número, a mãe vai atender em poucos segundos, como costuma fazer. Como uma mulher que, depois de ficar grudada em telefones fixos a maior parte da vida, agora passa o dia com o celular na mão, atenta à menor vibração.
Lará mi, é você?
Sim, boa noite, mãe.
Estou sem os óculos, como você está?
Estou bem, como estão seus inquilinos? Espero que não estejam dando muito trabalho.
Gbadé está em casa? Como vai a campanha dele?
Está tudo bem, mãe, tudo maravilhoso.
Lará, seu marido está em casa?
Lará não sabe ao certo o que vai responder, mas sabe que haverá um silêncio longo e tenso, como se já saturado de tudo que virá em seguida.
Ela se inclina para pegar a toalha, e seu polegar pressiona o monograma dourado. Ajoelha-se para enrolá-la no corpo, cansada demais para ficar de pé. Vai se levantar e telefonar para a mãe, mas antes se deita de costas no chão, a respiração ofegante enquanto cruza as pernas e os tornozelos e estende os braços. Acima, o estuque intrincado está se dissolvendo, prestes a fazer chover gotículas cremosas. Quando a primeira lágrima escorre do olho direito para dentro da orelha, ela não se move para conter a irritação, apenas estremece; para que o movimento não seja confundido com prazer, sabe que deve ficar parada. Cada minuto com Gbadé está coagulado naquela lágrima ensurdecedora. Ainda assim, vinda de dentro, sua própria voz, e não a voz da mãe, pergunta, três décadas e dois filhos depois: Lará mi, você queria isso?
Você queria isso? Queria?
Gbadé resolveu dar um jantar para comemorar o aniversário de 30 anos, e depois que a tigela de arroz jollof que você passou a tarde preparando estava vazia, a luz acabou. Ninguém queria ir para a cama ainda, então a festa se transferiu para o lado de fora, à beira da piscina. Quando a luz voltou, alguém levou a caixa de som de Gbadé para lá e algumas pessoas começaram a dançar. Mas você, você queria nadar. Então, entrou em casa para se trocar e levou algum tempo até se decidir entre três roupas de banho. Por fim, escolheu o biquíni vermelho em vez do amarelo, porque vermelho é sua cor favorita, era sua cor favorita, até então. Biquíni em vez de maiô porque você tinha acabado de descobrir que estava grávida e queria exibir sua barriga lisa antes que ela inchasse. Gbadé era o único que sabia que você estava esperando um bebê; mesmo sua mãe só ficaria sabendo um mês depois. Ele tinha 30 anos, você, 21, ele era o amor da sua vida, e você o da dele. Você sabia disso porque no jantar estavam apenas os primos, os irmãos e as cunhadas dele. Ele tinha convidado apenas alguns membros da família, e você.
Você foi a primeira a mergulhar na piscina, o corpo já encharcado de suor enquanto se projetava no ar em uma descida eufórica. Antes que você tivesse completado uma volta na piscina, quase todos já tinham caído na água. Cantando Rosie, que tocava no aparelho de som, vocês nadavam e espirravam água no rosto uns dos outros, jogando-a cada vez mais alto, em direção ao céu coberto de estrelas. Gbadé estava sentado em uma das espreguiçadeiras, amassando a bituca de um cigarro em um cinzeiro enquanto ria de algo que o irmão dissera. Estava de calção de banho, mas ainda não tinha tirado a camiseta. Despiu-a ao se aproximar da piscina, revelando a barriga que ia se expandir em uma pança nas décadas seguintes. Sem camiseta, ele parecia um boneco de palito desenhado por uma criança, as pernas finas, a barriga protuberante. O irmão foi o primeiro a mencioná-la, chegando por trás dele e dando-lhe um tapinha antes de pular na piscina com um salto mortal. Gbadé parecia um boneco de palito, Gbadé parecia uma criança desnutrida, Gbadé parecia uma mulher grávida. As provocações continuaram na água. Os risos se misturaram à música e ao som de uma garrafa se quebrando no chão, abafando a voz de Blackky, que cantava Can I have a dance, Rosie? Ah, ah! My friends are watching me, Rosie, ah, ah, ah. They will laugh-laugh at me, Rosie.[1]
Gbadé tinha uma prima chamada Rose; ela estava sentada na beirada da piscina, com os pés na água, que chutava toda vez que Blackky chamava Rosie. Rose não se juntou às provocações, mas quase todos os outros sim. Gbadé parecia uma mulher grávida, Gbadé parecia ter engolido uma bola, quem teria engravidado Gbadé?
Ele foi em sua direção nadando de costas, com braçadas que projetavam a barriga acima da superfície da água, um ato de rebeldia diante dos ataques do irmão. Estava quase do seu lado quando você finalmente se juntou às pessoas e começou a rir, convulsionada pela força com que tinha reprimido o riso por tanto tempo, pois sabia que, embora Gbadé estivesse sorrindo como se não se importasse com as gargalhadas da família, não perdoaria a sua chacota. Quando ele parou à sua frente, você não conseguiu mais se conter, segurou os ombros dele para se manter de pé, tossindo, incapaz de reprimir um sorriso. Você vai se lembrar de como ele a observou enquanto você finalmente recuperava o fôlego, passando a mão molhada pelo rosto como se quisesse remover todo traço de hilaridade. Seus ombros tinham acabado de parar de tremer quando ele a beijou. As mãos dele envolveram sua cintura e já naquele momento, quando ainda podia se afastar para contemplar a lua, ouvir alguém assoviar de uma das cadeiras da piscina, perceber o rádio mudando de Rosie para outra música, você sentiu o toque forte dos dedos entrelaçados na base de suas costas.
Desvencilhou da boca dele, olhando em volta para ver se tinha alguém observando. O irmão mais novo de Gbadé se afastava nadando, de mãos dadas com a mulher, mas Rose estava logo atrás de vocês, sentada na beirada da piscina com a calça jeans dobrada até os joelhos, os pés descalços balançando na água. Você estava passando por um processo seletivo. Primeira etapa, conhecer os amigos, segunda etapa, conhecer os irmãos e os primos favoritos. Você estava na segunda etapa agora, avançando na escada de três degraus que a levaria a esposa. O arroz jollof tinha sido um sucesso. O próximo passo seria conhecer os pais dele, que ouviriam irmãos e primos falar de você e formariam uma opinião antes que seus joelhos tocassem o tapete felpudo da sala de estar. A família dele não era religiosa, então não iam se importar com o fato de você já estar grávida, mas iam se importar com o que os irmãos dele pensavam de você.
Você queria isso?
Você não queria que ele a beijasse na frente dos irmãos e dos primos; eles podiam sair da cama com suas amantes e julgá-la por beijar Gbadé em público. Então, não. De forma que balançou a cabeça em negativa, uma, duas, depois três vezes quando ele se aproximou para beijar o pescoço que você expôs ao inclinar a cabeça para contemplar a lua. Você bateu no ombro dele e sussurrou: pare. Em outro lugar, talvez, mas não ali, não cercados de pessoas que você tinha acabado de conhecer naquela tarde.
Acontece rápido e devagar, no tempo que leva para dar uma piscadela e conter as lágrimas quando ele dobra os dedos e com um deles penetra sua vagina, no tempo que leva para o aparelho de som tocar uma canção de amor do começo ao fim, no tempo que leva para uma vida terminar e começar outra, embora você ainda vá demorar um pouco para se dar conta de que ambas as vidas são suas. Uma das mãos para puxá-la para um abraço, se desculpar por beijá-la em público, se desculpar por chateá-la, a outra para envolver a curva de seu quadril, para quê? Aquilo é um abraço, mas agora a outra mão mexe nos cordões da parte de baixo do seu biquíni, afrouxando-os enquanto você tenta se afastar, aquele braço reconfortante uma faixa de aço. Uma das laterais do biquíni se solta e a outra escorrega enquanto você tenta se desvencilhar. Você está prestes a se livrar daquele abraço com um empurrão que exigirá todas as suas forças e gritar com ele para parar com aquele absurdo, mas a mão dele está entre suas pernas agora.
O braço que envolve sua cintura se afrouxou, mas quando você se move de lado para se livrar da mão que a envolve, ele segura seus pelos pubianos, puxando-a de volta. A dor dos folículos e dos pelos se separando a deixa com lágrimas nos olhos enquanto seus pés tentam se apoiar no fundo da piscina. Da sutura coronal ao osso calcâneo, você está sendo fendida transversalmente, através da carne, dos tendões e dos ossos, até a medula. Você tenta fazer com que ele a encare. Se pudesse ao menos ver o seu rosto, que agora deve estar de tal modo contorcido que você mesma seria incapaz de se reconhecer, ele saberia que você não quer aquilo. Ele está olhando para o céu, como se tentasse memorizar o brilho de uma estrela em particular para futura referência. E então você finalmente para de tentar se desvencilhar e fica imóvel, para que o movimento não seja confundido com prazer, mas como poderia ser? Como seu “pare” febril poderia indicar qualquer outra coisa que não dor? Como tentar se desvencilhar poderia querer dizer que você quer ficar? Quando ele lhe dá as costas e se afasta nadando, segundos, meses ou décadas depois, você está aprisionada em uma garrafa de vidro cuja tampa é fechada lentamente. Tudo do lado de fora desaparece – o som da música, dos risos e da água se transforma em silêncio. Você não lembra se permanece na piscina por um ano até sua pele ficar enrugada e aderir aos ossos ou por um segundo, tempo suficiente apenas para inspirar; mas fica lá o suficiente para que o tempo pare enquanto os relógios continuam a marcar as horas, os calendários têm as páginas viradas, são jogados no lixo e substituídos, vezes sem conta, até o fim dos tempos. E então a única coisa na qual você consegue pensar é que a parte de baixo do seu biquíni escorregou para o fundo da piscina e com certeza Rose pode ver suas nádegas. Você submerge na água para procurá-la, fecha os olhos enquanto tateia o chão em torno de seus pés e pela primeira vez se pergunta como seria ficar ali embaixo, se afogar.
Você vai para dentro de casa e finge estar dormindo quando ele se deita a seu lado, você se afasta bruscamente e sai da cama quando ele tenta abraçá-la. Ele parece confuso, qual é o problema? Você não consegue responder. Está tão nauseada que não consegue pensar, algo revolve em sua garganta, rápido e viscoso, pegajoso como a vergonha. Se abrir a boca, vai espalhar bile por todos os lados. Ele se aproxima, mas você recua, o corpo movido por instinto, driblando sua mente. Você vai envolver as lembranças dessa noite em páginas e páginas de relatos sobre perdão e esquecimento, sobre segundas chances, mal-entendidos e vários lados de uma história. E mesmo depois que as lembranças estiverem enterradas e esquecidas, isso não vai impedir que você se afaste dele momentos antes de despertar. Porque o corpo se lembra, na pele que se retrai e nos músculos que estremecem, de todos os estriamentos cruéis que a alma esconde.
Gbadé interrompe seu avanço e se senta na cama, você está chateada por causa do que aconteceu na piscina? Sério? Por favor! Querida, eu só estava brincando. Não foi nada de mais. É que você estava tão linda esta noite, tão linda. Por favor! Tudo bem, me desculpe, sinto muito. Sinto muito mesmo.
Você fica de pé, as costas contra a parede, até ele parar de falar e ir para a cama. Quando percebe que ele adormeceu, você se senta em uma poltrona diante da cama, observando os lábios dele tremerem enquanto ressona. Quando você acorda, ele está agachado a seus pés, sussurrando. Por favor, meu amor, foi um erro, não vai acontecer de novo, por favor, eu prometo. A náusea passou e você consegue falar agora, mas não diz nada. Em vez disso, pensa no que vai vestir quando for conhecer os pais dele, mais tarde naquele mesmo dia. Uma túnica de brocado, azul ou cinza, vermelho não.
Houve outra Janet quando os gêmeos eram bem pequenos, e quase todas as blusas e vestidos que ela trouxe, não importa de qual aldeia tenha vindo, eram vermelhos. Durante o primeiro mês de trabalho, antes que Lará tivesse tempo de substituir todas as roupas da empregada, aquela Janet usava um lenço branco com finas linhas vermelhas entrecruzadas, e aquelas linhas quase inexistentes faziam Lará se lembrar de como, dias depois do nascimento dos filhos, ela havia pressionado uma lâmina contra o joelho pela primeira vez e traçara uma tênue linha diagonal até a curva do quadril.
E agora há uma pressão em seu pescoço, como se um pé pisasse nele, esmagando a carne contra as vértebras cervicais. Pés. Os pés de todas aquelas jovens mulheres que ela havia rebatizado em um fluxo interminável de Janets e Felicias, todas substituíveis pela que vinha em seguida. Especialmente a primeira Janet, que certa noite ela encontrou chorando diante do escritório de Gbadé e a quem disse para ficar calada, rezar e ir dormir, porque o patrão estava se preparando para uma reunião de diretoria no dia seguinte. Alguns dias depois, a garota desapareceu com seu leve mancar e o lenço de linhas vermelhas que se entrecruzavam.
Senhora, diz a Janet atual, já vou.
Lará olha para ela. O quarto está inundado pela luz, já é de manhã, e ela não consegue sentir as pernas. Janet está parada à porta, segurando a mesma sacola surrada que trouxe da aldeia.
Leve as coisas que lhe dei, leve a mala nova.
Janet balança a cabeça. Não precisa, não, senhora.
Leve, leve tudo com você, leve as roupas, por favor. Lará se dá conta de que começou a gritar quando Janet se vira e começa a se afastar.
Leve. Eu não queria gritar… venha, volte. Leve as coisas, por favor!
Os passos de Janet se aceleram e ela corre. Chaves tilintam, um sopro de ar invade a casa quando a porta da frente se abre, um baque quando ela se fecha e, por fim, a coisa mais próxima do silêncio que a cidade tem a oferecer: os gemidos distantes do gerador do vizinho.
Lará se levanta do chão, voltando pouco a pouco a sentir os membros. De alguma maneira durante a noite ela tinha acabado de joelhos, a têmpora apoiada no piso. Uma posição que com frequência adotava nas reuniões de oração pelos doentes, quando implorava pela vida, para que a doença não levasse à morte. E, embora durante toda aquela noite não tivesse rezado, não tivesse aberto a boca para pronunciar um som coerente sequer, fragmentos não invocados das Escrituras atravessavam sua mente, entrelaçados com o mesmo refrão suplicante: Livrai-me, livrai-me, livrai-me dos que praticam a iniquidade, salva-me dos homens sanguinários.
Ela se veste sem se preocupar em tomar banho ou escovar os dentes, os movimentos febris agora que se decidiu. Os ossos pensavam então? A pele coberta de reentrâncias tomava as próprias decisões? A convicção que ela tem agora só pode ter vindo de suas células, que conspiravam um plano de ação enquanto sua mente fingia não ver nada. E não apenas de seu corpo, de outros corpos também? Ainda sente o peso deles sobre o pescoço, os pés deslizando da nuca na direção da pele acima de suas clavículas.
A caminho da igreja, ela revisa suas anotações, riscando tudo que escreveu antes e rascunhando apenas uma nova frase depois de descartar cinco páginas inteiras. Pensa em ligar para a mãe ou mandar uma mensagem de texto para os filhos, mas logo desiste. Pela primeira vez, não vai pensar nos filhos, na mãe ou no pai morto e seu nome célebre. Falará com os filhos mais tarde, vai visitar a mãe quando tudo tiver terminado.
Como vai pregar a Palavra naquele dia, ela se senta na primeira fileira, com os pastores, em seguida fecha os olhos e inclina a cabeça. Ninguém vai falar com ela agora, vão achar que está rezando. Fica assim por um tempo antes de começar a rezar de fato, pedindo força, coragem e paz, mas a única coisa que diz, na verdade, a única coisa que sai de sua boca repetidas vezes antes de um pastor assistente pedir que todos no santuário fiquem de pé para a oração de abertura, é um por favor abatido e estrangulado. Em vez de se levantar, ela fica de joelhos e permanece assim durante todo o louvor. Suas pernas se fundiram e ela não consegue se levantar para dançar. Ouve o clique de uma câmera e sabe que uma foto sua de joelhos, presumivelmente imersa em uma adoração arrebatada, logo estará no Facebook, em destaque no meio da torrente de mensagens de devoção compartilhadas da capela. Gbadé ficaria satisfeito.
Logo chega sua vez, e Lará agarra a Bíblia e o caderno de anotações junto ao peito enquanto caminha na direção do altar. Atrás dela, a igreja está de pé e umas poucas pessoas batem palmas. Quando chega ao púlpito, ela faz um gesto para que todos se sentem e começa com aquelas palavras que poderia repetir durante o sono. É maravilhoso estar aqui, dizer ao próximo que vai ser um dia glorioso. Obrigada por virem à igreja, tenho certeza de que serão abençoados hoje. Na segunda fileira, o rapaz que cuida das atividades de mídia de Gbadé ergue a câmera em silêncio e dá um zoom nela. Ele sorri para Lará e ergue o polegar.
Ela vai começar com Dalila, como o rapaz sugeriu, falando de alguma forma sobre a ex-assistente pessoal de Gbadé durante a pregação. Debbie, a Dalila, soa bem, não acha? E Debbie também está apenas tentando derrubar seu marido, é sobre isso que fala a história da Bíblia, não é?
Em seguida vai falar de Debbie porque sabe pelas mensagens cifradas de apoio que recebeu do pastorado que a maioria dos membros da congregação já tomou conhecimento das acusações. Vai terminar falando de si mesma, por si mesma, e de Felicias e Janets.
Lará olha para o caderno de anotações e pede que todos abram a Bíblia no Livro dos Juízes. Sua voz vacila quando ela começa a ler o texto bíblico sem fazer uma pausa para que a equipe técnica projete o versículo na parede atrás dela. Quando termina, está com a boca seca, mas mesmo assim continua a falar.
Hoje vou contar sobre a vida de Dalila, e vocês sabem que não nos lembramos dela por esse prisma, mas ela foi a salvadora de seu próprio povo. Já pensaram em sua história dessa forma?
[1] Me concede essa dança, Rosie? Ah, ah! Meus amigos estão me observando, Rosie, ah, ah, ah. Eles vão rir de mim, Rosie.
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