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questões da desinformação

Comprova: Terras indígenas em Rondônia não foram vendidas a empresa irlandesa

Contrato foi anulado pela Justiça e era, na verdade, para venda de créditos de carbono

Ana Carolina Santos | 03 out 2019_16h31
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É falso um texto compartilhado no Facebook afirmando que terras indígenas em Rondônia teriam sido vendidas para uma organização irlandesa, e que a negociação teria sido anulada pela Justiça. Na realidade, um contrato para a venda de créditos de carbono, celebrado entre uma empresa irlandesa e uma associação indígena, foi suspenso em 2012 por decisão judicial provisória, a pedido da Advocacia-Geral da União (AGU). Essa verificação foi feita pela piauí em parceria com o Jornal do Commercio, Folha de S.Paulo e UOL, participantes do Projeto Comprova, em que veículos de todo o Brasil unem forças para checar boatos publicados na internet.

O contrato previa que a empresa irlandesa teria os direitos sobre os créditos de carbono gerados pela preservação da floresta pelos indígenas nos trinta anos seguintes. No entendimento da Justiça, os termos do acordo seriam ilegais e abusivos. Caso fosse um contrato de venda, ele também seria considerado ilegal, pois a Constituição não permite a venda de terras indígenas.

As partes do contrato, assinado em 2011, foram a irlandesa Celestial Green Ventures PLC e a Associação Indígena Awo “Xo” Hwara, organização apontada no documento como representante das terras indígenas de Igarapé Lage, Rio Negro-Ocaia e Igarapé Ribeirão, localizadas em Guajará-Mirim, em Rondônia. A Celestial Green Ventures já havia feito negociações semelhantes no mesmo período com outros povos indígenas.

O valor total do contrato era de 13 milhões de dólares, que seriam pagos à associação indígena em parcelas anuais de 445 mil dólares, ao longo de trinta anos. No entanto, nada chegou a ser pago, porque a venda de créditos de carbono foi anulada pela Justiça Federal em Rondônia em 2012, a pedido da AGU. 

Um dos argumentos foi de que a Fundação Nacional do Índio (Funai) não participou da articulação. Segundo a legislação, as terras são de uso exclusivo dos indígenas e o aproveitamento dos recursos só pode ser efetivado se o governo federal concordar. A anulação do contrato foi confirmada em 2018, decisão a que se refere o texto verificado pelo Comprova. O processo transitou em julgado em junho de 2019, ou seja, não cabe mais recurso.

Esta checagem analisou um texto publicado no site Terça Livre, compartilhado em uma página de apoio ao ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, e pela página República de Curitiba no Facebook. O texto foi publicado no site Terça Livre no início de setembro, mas só foi compartilhado nas páginas da República de Curitiba e Sergio Moro no dia 26. Até o dia 1º de outubro, havia 6 mil compartilhamentos e 3,3 mil curtidas na primeira, e 2,7 mil compartilhamentos e 4,9 mil curtidas na segunda. O Comprova verifica conteúdos duvidosos sobre políticas públicas do governo federal que tenham grande potencial de viralização.

O mercado de créditos de carbono do REDD (Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação) prevê que uma entidade pode pagar outra por ela ter evitado a emissão de gases que provocam o efeito estufa (por meio de ações como a redução do desmatamento). Cada crédito é equivalente ao aquecimento global causado por uma tonelada métrica de dióxido de carbono (CO²).

O REDD é um mecanismo voltado para o pagamento daqueles que preservam florestas, reconhecendo que mantê-las de pé ajuda a conter a emissão de gases. O conceito vem sendo desenvolvido desde 2003 nas Conferências do Clima organizadas pela ONU. Umas das discussões é de que maneira países desenvolvidos podem remunerar países em desenvolvimento que conservam suas florestas.

Segundo as decisões dos juízes, há dois argumentos principais para a anulação do contrato: o fato de que a lei prevê consulta às comunidades indígenas nas negociações e que a Funai deveria ter sido contatada. Para isso, usam como base o artigo 8º do Estatuto do Índio e o artigo 231 da Constituição Federal.

Também foi apontado que o uso das terras indígenas é exclusivo dos povos indígenas e que, apesar do direito ao uso, as terras são da União.

A juíza Laís Durval Leite, responsável pela sentença de 2018, avaliou que não pode haver exploração comercial das terras indígenas, pois, ao garantir esse direito, o objetivo é de preservar a cultura e as tradições desses povos. A juíza classificou ainda como “abusiva” a cláusula do contrato “que impede o uso da terra, dos rios e dos lagos pelos seus ocupantes tradicionais”.

Em entrevista ao Comprova, Pedro Soares, gerente de REDD+ da ONG Instituto de Conservação e Desenvolvimento Sustentável da Amazônia (Idesam), afirmou que os projetos de REDD deveriam prever apenas ações para redução de desmatamento ilegal e atividades que não vão contra o plano de gestão dessas terras. “Qualquer coisa fora disso, que vá restringir atividades tradicionais, é errada e não pode ser feita dentro de um contrato do tipo”, disse.

O diretor de Justiça Socioambiental da WWF, Raul Silva Telles do Valle, afirmou ao Comprova que, em geral, indígenas deveriam ter o direito de comercializar créditos de carbono de suas terras. “Se eles têm o direito de usar a terra, eles podem decidir se pode desmatar ou não. (…) Assim como, se explorar madeira, eles que vão vender. (…) Nessa mesma lógica, o carbono não é algo em si, mas é a ação de abrir mão de desmatar e de isso ser reconhecido por terceiros como um benefício para a humanidade”, afirmou.

Em 2012, antes da primeira decisão que suspendia o contrato, a Funai consultou a Advocacia-Geral da União (AGU) sobre a possibilidade de vender créditos de carbono em terras indígenas. A AGU afirmou que era necessário debater a questão para definir leis e políticas públicas a respeito.

A AGU apontou risco nesse tipo de contrato por questões como a dificuldade de confirmar que essas organizações indígenas representem os povos indígenas envolvidos, além de “violações que têm sido verificadas à autonomia e aos direitos dos povos indígenas”.

Tanto a Constituição Brasileira, quanto a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que trata de povos indígenas e tribais, preveem a criação de um protocolo que defina o que deve ser considerado consulta oficial a um povo indígena. O protocolo das terras indígenas envolvidas no contrato foi publicado na última sexta-feira (27).

Os contratos entre a Celestial Green e diferentes povos indígenas foram feitos no contexto do avanço do debate sobre o REDD, que seria uma recompensa em dinheiro a governos, pessoas jurídicas ou projetos que tenham reduzido sua emissão de gases, por meio da redução do desmatamento. 

Um dos mecanismos do REDD é o mercado voluntário de créditos de carbono – chamado assim porque os créditos obtidos por meio dele não podem ser considerados nas metas de redução de emissões que os países tenham que cumprir. Nele, pessoas jurídicas e projetos podem vender créditos de carbono fiscalizados por entidades independentes da ONU.

O que diferencia o mercado voluntário do mercado obrigatório (ou regulado) é que ele não está atrelado aos acordos internacionais vigentes. Para o REDD, isso muda em 2020, quando entra em vigor o Acordo de Paris, e ele passará a integrar o mercado regulado.

De acordo com Pedro Soares da ONG Idesam, o contrato da Celestial Green era um projeto mal-intencionado e malfeito. “Ela (a empresa) tentou se aproveitar de um mecanismo (REDD) em construção para um benefício próprio. A gente acredita que, se houvesse regulamentação de REDD no Brasil, esse projeto [da Celestial Green] nunca teria chegado no estágio em que chegou”, afirmou Soares.

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