ILUSTRAÇÃO: ANDRÉS SANDOVAL_2019
Caçadores de pínus
O combate a uma espécie invasora
Maurício Frighetto | Edição 160, Janeiro 2020
Um olhar destreinado dificilmente encontraria o que a professora Michele de Sá Dechoum buscava em meio à vegetação fechada. Mas ela mirou com atenção por cima da restinga e, num instante, avistou o alvo. Embrenhou-se, então, pelo mato: foi para um lado, recuou, seguiu para o outro lado e quase rastejou em certo trecho. De repente, parou perto de um pinheiro-americano e, com um serrote de 20 cm, começou a cortar com firmeza o tronco da árvore de quase 3 metros de altura. Em menos de um minuto, Dechoum abateu mais um exemplar da espécie exótica invasora.
Os pinheiros-americanos, nome popular dos pínus, são originários do Hemisfério Norte e começaram a ser plantados no Brasil na década de 1950 para a produção florestal. Algumas das espécies, como a Pinus elliottii, podem se tornar terríveis invasoras. Fora do hábitat natural, crescem rápido (chegam a 30 metros de altura), espalham-se, formam aglomerados exclusivos e tomam o lugar das plantas nativas. Têm grande facilidade para ocupar um largo território, pois suas sementes podem viajar até 60 km, levadas pelo vento.
Foi o que ocorreu no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição, uma área de pouco mais de 700 hectares em Florianópolis, a mesma onde Dechoum caçava as árvores daninhas na manhã do dia 19 de outubro último. “Nosso objetivo não é cortar pínus. É restaurar os ecossistemas”, disse a professora do Departamento de Ecologia e Zoologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Em 2003, quando trabalhava no Departamento de Parques e Jardins de Campinas, Dechoum, 41 anos, percebeu plantas exóticas se espalhando por áreas da cidade. “Me encantei pelo tema”, contou. A partir daí, passou a atuar no controle de invasoras. Primeiro, no interior de São Paulo; depois, no Espírito Santo. Em 2008, mudou-se para Florianópolis e tornou-se colaboradora do Instituto Hórus de Desenvolvimento e Conservação Ambiental. Dois anos depois, ajudou a criar e passou a coordenar um projeto de extensão na unidade de conservação da capital catarinense: uma vez por mês, voluntários se reúnem com a missão de erradicar o pínus.
Segundo a Convenção sobre Diversidade Biológica – tratado assinado durante a Eco-92 –, espécies exóticas passam a ser consideradas “invasoras” quando ameaçam ecossistemas, hábitats e a vida de outros seres vivos. São um problema mundial, uma das principais causas diretas da perda de biodiversidade e extinção de espécies. O Instituto Hórus criou e mantém um banco de dados contendo o registro de 459 espécies invasoras, onde constam, por exemplo, o javali selvagem, o coral-sol, o mexilhão-dourado, o caracol-africano e o Pinus elliottii.
Em Florianópolis, as plantas exóticas estão espalhadas por morros, margens de rodovias e jardins. Na década de 1960, seu cultivo era incentivado pelo poder público, que chegou a distribuir mudas para a população. Foi assim que pinheiros plantados em propriedades particulares para fixar as dunas invadiram o parque da Lagoa da Conceição. Desde 2012, uma lei determina que pínus, eucaliptos e casuarinas devem ser removidos da cidade e substituídos por espécies nativas em dez anos.
O sábado amanheceu nublado e fresco, mas logo o sol apareceu com força. O grupo de nove caçadores de pínus entrou no parque às oito da manhã, andou pelas dunas e parou em uma sombra. Michele de Sá Dechoum postou-se ao lado de um pinheiro derrubado, cujas folhas já não tinham mais aquele verde brilhante característico: estavam amarronzadas, sinal de que a árvore fora abatida meses antes, por outra expedição. “Já arrancamos e cortamos 365 mil pínus”, disse ela à equipe. “Estamos muito próximos do fim do trabalho no parque.” Ali, a altura das árvores eliminadas varia entre 50 cm e 20 metros.
A expedição daquela manhã se concentrou na vegetação existente em uma baixada e em duas encostas íngremes. Os voluntários atravessavam muito atentos o local e, quando avistavam um pínus, arrancavam-no, caso fosse pequeno, ou cortavam o tronco rente ao chão com um serrote, como fez Dechoum. No parque das dunas, ouvia-se apenas o vento, o canto de algum pássaro e, de vez em quando, o barulho de uma motosserra usada para cortar as árvores maiores. Os pinheiros derrubados são deixados no local, onde se decompõem.
Passava das 10 horas quando foi feito um intervalo. Os voluntários se reuniram, Dechoum contou o número de plantas derrubadas até aquele momento e distribuiu paçoquinhas para o lanche.
Por último, chegou Sílvia Ziller, 55 anos, fundadora do Instituto Hórus que participou de todas as expedições. Ela levava em uma das mãos um capacete e, em outra, uma motosserra. “Cortei dezenove, sendo dezessete grandes”, calculou. “Uma das árvores tinha cerca de 18 metros de altura e 27 anos de idade.” Em 2014, ela sentiu-se frustrada em algumas saídas de campo porque o grupo, munido apenas de serrotes, sempre deixava intactos os pínus maiores. Comprou, então, uma motosserra pequena. Profissionais contratados também usam motosserras, mas vão ao parque apenas nos dias de semana. Ziller tinha dois rasgos na calça. “Não são de hoje, e pegou só na roupa.” O projeto nunca registrou nenhum acidente com seus participantes voluntários, a maioria estudantes de graduação e pós-graduação e profissionais da área da biologia.
As expedições exigem grande esforço, mas os voluntários chamam a tarefa de encontrar e cortar pinheiros de “pinusterapia”. “É muito bom estar no meio da natureza, transpirar e ajudar na restauração da paisagem”, afirmou a bióloga Beloni Pauli Marterer, de 61 anos.
Após o intervalo, o trabalho andou mais rápido, pois restavam poucos pínus na área prospectada pelo grupo. Ao final, todos posaram para uma foto, publicada depois no Facebook, junto com o número de árvores cortadas: quatrocentas. Mas já houve expedições em que foram suprimidas 5 mil plantas.
O trabalho mensal dos voluntários no Parque Natural Municipal das Dunas da Lagoa da Conceição deve terminar em fevereiro ou março. Mas o controle precisará ser permanente. Em 2018, o grupo de Dechoum publicou um artigo na revista Biological Invasions – do qual ela foi a autora principal − com algumas simulações matemáticas. Uma delas mostrava que, se a equipe não tivesse começado a caçada dez anos atrás, em 2028 um terço do parque estaria invadido por pinheiros.
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