Em 4 de fevereiro, munido de coragem, máscara e luva, passeei num parque próximo, o que não fazia há semanas. As ruas de Wuhan estão vazias – todos se fecharam em casa, com medo CRÉDITO: ACERVO PESSOAL
No coração do medo
Um brasileiro no centro da epidemia do coronavírus
Higor Carvalho | Edição 162, Março 2020
O arquiteto e urbanista Higor Carvalho é um dos 34 brasileiros repatriados da China depois que um surto de coronavírus eclodiu no país no início deste ano. Ele morava desde setembro de 2019 em Wuhan – o epicentro da crise –, onde estudava mandarim em uma universidade e desenvolvia uma pesquisa para seu doutorado pela USP. No diário a seguir, ele conta como viveu desde que as primeiras notícias sobre o coronavírus foram divulgadas até o momento em que foi trazido de volta ao Brasil, em 9 de fevereiro, onde permaneceu em quarentena na Base Aérea de Anápolis, em Goiás. Depois de descartada a contaminação, os repatriados da China foram liberados da quarentena em 23 de fevereiro, três dias antes de ser diagnosticado o primeiro caso de infecção por coronavírus no Brasil – um homem proveniente da Itália.
1º DE JANEIRO DE 2020, QUARTA-FEIRA_Estou em Wuhan, capital da província de Hubei, é o dia de Ano-Novo no Ocidente. Na tevê chinesa, os programas de auditório têm uma programação especial para a data, algo que, a meu ver, não corresponde muito à tradição cultural do país. Assisto à tevê em um hospital público, onde estou internado tratando de uma gastroenterite aguda, que começou a apresentar seus sintomas no dia 26 de dezembro.
Tudo começou por causa de um frango frito – mal frito – que comi no restaurante universitário e que, em poucas horas, me fez vomitar mais de vinte vezes. Como os sintomas continuaram por três dias, os médicos acharam melhor me internar. A ideia de ser internado me apavorava, pois não conheço o sistema de saúde daqui e, embora estude mandarim há um ano, ainda me comunico de forma muito elementar nessa língua. Venho me recuperando bem, apesar de ter passado dois dias na maca em um corredor – não havia vagas disponíveis nos quartos.
Ontem, no último dia do ano, li a respeito de um novo tipo de pneumonia que foi identificado em Wuhan. As primeiras informações dizem ser um vírus de comportamento semelhante à Sars (síndrome respiratória aguda grave, na sigla em inglês). Ao pesquisar sobre a sigla na internet, vi os efeitos que a epidemia causou na Ásia em 2003 e, deitado no corredor de um hospital com grande circulação de pessoas, passei a temer mais pelos meus pulmões do que pelo estômago. Pedi uma máscara a uma enfermeira. Pedido negado. Pedi a uma segunda, que gentilmente me cedeu. Coloquei aquela máscara no rosto, virei para a parede, me cobri com o lençol até a cabeça e fiquei rezando para sair logo dali.
Vagou uma cama horas mais tarde em um quarto no mesmo andar, o 13º, e me levaram para lá. Um amigo francês vinha me visitar, e pedi a ele que me trouxesse uma máscara mais grossa do que a cirúrgica que eu usava. Ele trouxe uma de algodão com filtro de papel; não ousei tirá-la do rosto. Da janela do hospital, vi o último pôr do sol de 2019. Peguei meu caderno, uma caneta e paralisei aquele momento em um rápido croqui. Desenhar sempre foi um refúgio para mim.
Ana[1] veio passar a virada do ano comigo – ela é minha melhor amiga aqui. Como eu, é arquiteta e vinda da periferia de São Paulo. Deu meia-noite, brindamos com Yakult, nos abraçamos, e ela voltou para casa.
Há pouco, o gastro passou por aqui e disse que meus exames estão normais e que devo ter alta amanhã. Insha’Allah!
17 DE JANEIRO, SEXTA-FEIRA_Hoje começam oficialmente as festas do Ano-Novo Chinês. Poucos alunos estrangeiros da universidade onde estudo permanecem em Wuhan. Assim que as provas finais acabaram, em 8 de janeiro, muitos viajaram para países do Sudeste Asiático ou para outras partes da China. Eu talvez vá para a casa de uma amiga chinesa, num vilarejo ao Norte. Essa viagem me inspira particular curiosidade por ser uma chance de me aproximar do mundo rural e conferir as formas mais tradicionais de organização e produção do espaço, coisa difícil de encontrar na parte da China onde estou, tão urbanizada.
O dia amanheceu chuvoso e triste, mas gosto de chuva e um pouco da melancolia. Coloco minha máscara de proteção para ir a um evento de Ano-Novo promovido pela universidade para os alunos que permanecem no campus. No caminho, observo que ninguém usa máscaras, apesar de serem cada vez mais recorrentes as notícias sobre um novo tipo de coronavírus. Segundo dados do governo chinês, há 62 casos de contaminação pelo vírus – 19 pessoas foram curadas, 2 morreram.
O curioso é que o uso de máscara é comum na China, as pessoas sempre recorrem a elas quando estão gripadas ou faz muito frio. Percebo que as pessoas me olham de maneira não muito amistosa; talvez temam que eu esteja infectado.
Vesti a máscara porque estou com medo. Tenho feito isso desde 31 de dezembro, embora os cientistas afirmem que não há possibilidade de contágio de pessoa para pessoa. Nos grupos de WeChat (o aplicativo chinês similar ao WhatsApp) da universidade, os professores recomendam o uso.
18 DE JANEIRO, SÁBADO_O Gui, meu companheiro, deve chegar do Brasil para me visitar daqui a uns dez dias. Faz seis meses que não nos vemos. A última vez foi quando nos despedimos no Aeroporto de Paris-Orly. A saudade aperta. Mas tenho medo de ele vir para cá e correr algum risco. Receio também contar a ele sobre essa minha preocupação, pois não quero deixá-lo aflito com o que possa acontecer a mim. Pondero tudo isso e deixo para contar depois.
Aqui, na China, tenho um nome em mandarim: Shanshi. Me foi dado pelo pai de um amigo, para facilitar o contato (ele me contou que o nome significa “generosidade”, achei bonito). Em troca, também dei um nome em português para esse meu amigo: Juliano (que escolhi por lembrar, foneticamente, o nome dele em chinês). Hoje, ele me escreveu para saber como estou me alimentando (por causa do Ano-Novo, os restaurantes costumam fechar as portas). Venho cozinhando em casa, porque quero evitar me expor à possibilidade de contágio. Juliano responde que a rotina permanece inalterada para ele, sua esposa e filha, e tenta me tranquilizar, repetindo que tudo está sob controle. Ele acha que o Gui pode vir me visitar.
19 DE JANEIRO, DOMINGO_Angústia. Um relatório oficial aponta que 198 pessoas foram infectadas pelo coronavírus na China e 4 morreram. Mas a imprensa internacional divulga um número muito maior. Um jornal francês diz que há cerca de 1,7 mil pessoas com sintomas da doença. Nos Estados Unidos, aeroportos começam a estabelecer formas de controle para voos procedentes de Wuhan. Prudência ou novos contornos da guerra comercial?
Dois casos foram notificados na Tailândia. Leio essas notícias e chego a tremer de medo no meu quarto. Aumentam os meus temores não apenas com relação à vinda do Gui, mas também à minha ida ao Norte da China. O amigo brasileiro que me acompanharia nessa viagem está gripado. Me apavora pensar que ele esteja com coronavírus, que eu também possa estar infectado ou que ambos sejamos contaminados via ar-condicionado do trem e não tenhamos acesso à infraestrutura de saúde. Estou tendendo a abandonar esse projeto de viagem.
Vou ao mercado da universidade comprar mais alimentos e água. Alefy, estudante brasileiro com quem divido o apartamento, resolveu viajar para Pequim no próximo dia 23. Ele acha melhor eu também sair daqui.
Resolvi gravar uns vídeos para minha família, contando como estou. Era preciso que eles vissem a minha imagem para acreditar que estou bem de saúde. Também queria alertá-los sobre o vírus antes que comecem a ler algo alarmante nas redes sociais. Mandei uma mensagem para a diretoria da universidade chinesa em que estudo, sugerindo que fizessem uma reunião com os alunos. Boa parte de nós está com medo, pois não sabe o que está ocorrendo de fato.
20 DE JANEIRO, SEGUNDA-FEIRA_São 291 contaminados na China, 6 mortes. Os cientistas dizem que ainda não há como saber se o vírus se propaga de pessoa para pessoa. Continuo a ter tremores, que duram mais de oito horas seguidas. Temo estar doente, embora não apresente os sintomas divulgados do coronavírus. Uso várias vezes por dia um termômetro que comprei em dezembro. Não tenho febre, mas sinto meu corpo quente. Deve ser a ansiedade. Dor de cabeça? Não tenho. Tosse? Também não. Apenas tremo, e muito, sem parar. Em meio a tantos pensamentos aflitivos, uma música começa a soar na minha cabeça. Reconheço que é uma canção de Nina Simone, mas não consigo identificar qual é.
A faculdade começou a mandar mensagens mais precisas sobre os sintomas da nova doença e como evitá-la, indicando inclusive o tipo de máscara que se deve usar. A máscara N95 é a única que garante proteção total. A alternativa econômica mais eficiente é a máscara cirúrgica. As máscaras de materiais sintéticos e de algodão, como as que tenho, não são eficazes. Mas não há máscaras N95 no mercado. Preciso tentar achar ao menos as máscaras cirúrgicas.
Faço parte de um grupo do WeChat chamado “Brasileiros em Wuhan”. Cada nova notificação do grupo me causa aflição. Leio ou não leio? E se for mais uma tragédia? Sempre acabo lendo.
Acho melhor não viajar para o Norte. Saio para comprar mais comida no supermercado dentro da universidade onde moro. Só preciso caminhar por três minutos para chegar lá.
A área de moradia dos estudantes estrangeiros é composta de nove prédios de oito andares cada um, todos iguais e sem elevador, com dois apartamentos por andar. Os apartamentos são confortáveis, com três dormitórios, um para cada estudante. Compartilhamos o banheiro, a sala, a cozinha e a lavanderia. O meu quarto tem cerca de 3 metros por 4, uma cama larga, uma escrivaninha, um gaveteiro e um armário. Na parede, afixei alguns desenhos meus, o trabalho de um calígrafo chinês que ganhei de meu professor e alguns mapas de estudo. A janela é ampla e dá para o Leste – pego o sol da manhã.
A universidade dispõe também de habitações para os professores, banco, hospital, farmácia, companhia telefônica, ginásio, quadras de esporte, restaurantes (inclusive os universitários) e supermercado.
Visto o casaco, a touca, a luva e a máscara – e desço as escadas. Moro no quarto andar. Por causa dos feriados do Ano-Novo Chinês, há pouca gente no campus e os edifícios estão quase vazios. Os que ficaram aqui estão fechados em casa, com receio da doença.
No supermercado, as luvas tornam difícil manipular os produtos, mas eu não quero tirá-las das mãos e correr o risco de tocar em alguma coisa eventualmente contaminada. Preciso de cebola, cenoura, gengibre, alho, pimentão, frutas e água, muita água. As cenouras estão feias e machucadas, mas pego mesmo assim. Cebolas, só sobraram quatro, feias; tudo bem, retiro os pedaços estragados em casa. Tiro as luvas, coloco os alimentos no saquinho, passo nas mãos o álcool em gel que trouxe comigo. Recoloco as luvas. Passo álcool também nelas.
Percebo que, de ontem para hoje, a atendente do caixa começou a usar máscara. Me coloco no seu lugar, trabalhando ali em contato direto com centenas de pessoas. Numa prece, peço proteção a ela. Depois, passo na farmácia e compro mais vitamina C e pacotes de máscaras cirúrgicas.
Em casa, coloco o casaco sobre uma cadeira que destinei a isso, especificamente: ali ficarão as roupas que uso ao sair. Em seguida, limpo as luvas com álcool e retiro-as. Lavo as mãos com sabão. Tiro a máscara, lavo o rosto. Limpo as narinas, faço gargarejo com água morna e sal. Fervo água e jogo sobre os enlatados. Lavo cada legume com esponja, sabão e água quente. Também lavo os ovos, um por um. Gasto meia hora fazendo essa higienização. Faz sentido tudo isso? Estou enlouquecendo? Não sei como o vírus se propaga, melhor pecar pelo excesso.
21 DE JANEIRO, TERÇA-FEIRA_Sobe para 440 o número de contaminados. Acordo com a certeza de que viajar para o Norte não é uma boa opção: quatro horas de trem-bala, de pé (porque não conseguimos comprar passagens para vagão com assentos) e com o ar-condicionado em circuito fechado – tudo isso nos fará adoecer, caso alguém dentro do trem esteja contaminado e sem máscara. Sem falar que, como estaremos chegando de Wuhan, seremos motivo de preocupação para a família de minha amiga, que vai nos hospedar no vilarejo.
Conversei com ela em Wuhan. Minha amiga concordou que é hora de ser prudente e também me ajudou a reaver o dinheiro das passagens, que me será útil enquanto a bolsa de 2020 não chega. Sou bolsista do governo chinês, que paga os gastos na universidade. Para as demais despesas, recorro às minhas economias e à ajuda da família.
Minha família está passando por um momento difícil no Brasil. Dois tios estão no hospital, lutando contra o câncer em estágio avançado. Sofro por estar tão distante deles. Encaminho vídeos para esses meus tios. Meu pai e todos os parentes estão muito abalados – outro motivo para eu guardar minha dor e poupá-los de ter mais esse desgaste.
Começamos a ouvir boatos de que o governo talvez venha a decretar quarentena na cidade. Fechar a sétima cidade mais populosa da China, com cerca de 11 milhões de habitantes, é uma decisão difícil e impressionante, mas é o melhor a ser feito. No Ano-Novo Chinês ocorre a maior migração anual do mundo, e Wuhan é uma das cidades centrais na rede nacional de transportes. Ao decidir não ir ao Norte, eu também me decretei em quarentena.
22 DE JANEIRO, QUARTA-FEIRA_Permaneci em Wuhan e resolvi conversar com o Gui sobre o que está acontecendo: ao menos 571 pessoas estão infectadas. Fiz uma chamada de vídeo: “Amor, está tudo bem comigo, mas preciso te contar uma coisa séria, o novo vírus ainda é algo desconhecido, mas causa pneumonia e eventualmente a morte; estou me cuidando, estou amparado pela universidade, evito sair de casa, o governo deve decretar a quarentena da cidade.” Falo também que precisamos avaliar bem se ainda vale a pena que ele venha a Wuhan em fevereiro. Choramos, nos apoiamos. Como tenho sorte de tê-lo como meu parceiro!
Um amigo da Tailândia que mora no alojamento estudantil me escreve para oferecer uma máscara N95. Ele comprou três, está usando uma. Desci imediatamente as escadas para pegar, acho que é o melhor presente que eu poderia ganhar nessa hora. Pelo telefone, um amigo brasileiro que mora em Wuhan me avisa que decidiu ir para o Camboja. Ele tenta me convencer a sair, às pressas, do país – mas para onde, agora?
Meu colega de apartamento, Alefy, também viaja amanhã à tarde para Pequim, e sinto que estou ficando cada vez mais sozinho. Meu corpo continua a tremer de medo constantemente. Preciso controlar esse pavor antes que ele tome conta de mim. Converso por telefone com minha irmã Carolina. Ela é musicoterapeuta, me sugere exercícios de respiração e fala sobre a importância da música para superar a dor. Percebo que a música da Nina Simone que não sai da minha cabeça se chama Just in Time (Bem na hora). Resolvo cantá-la, com o volume de voz mais alto que consigo. Em uma das versões ao vivo, ela canta: “My bridges are crossed, nowhere to go, nowhere to go. Now you are here and I know where I am going. No more doubts, no more fear, I’ve found my way. So let’s live today anyway! Change me, and take my lonely nights that lucky day” (Cruzei minhas pontes, não há nenhum lugar para ir, nenhum lugar para ir. Agora você está aqui, e eu sei para onde eu vou. Já não tenho dúvidas, já não tenho medo, encontrei o meu caminho. Então, vamos viver o presente de qualquer maneira! Me transforme e leve embora minhas noites solitárias nesse dia de sorte).
Quando canto a música, passa o meu medo.
23 DE JANEIRO, QUINTA-FEIRA_A população acorda com o anúncio de quarentena. A partir das dez da manhã de hoje, ninguém entra, ninguém sai da cidade. Uma amiga tenta escapar, correndo para o metrô, rumo ao aeroporto. Dá de cara com a estação fechada. O número de mortos, segundo dados oficiais, subiu para 17, e o de contaminados, para 830.
Penso na minha família. Tirando o Gui, não contei para ninguém no Brasil o que estou passando aqui, agora que começou a quarentena. Mas tenho medo de que a comunicação seja rompida e eles enlouqueçam com a falta de informações a meu respeito. Então ligo de novo para a Carolina, peço que ela tenha calma e passo os contatos e endereços de professores e amigos que falam inglês ou português e podem ajudá-la a obter informações, caso a internet seja cortada. Logo em seguida, minha mãe me liga, aflita. Respiro. Acalmo. Acolho.
Meu amigo chinês, o Juliano, que antes me dizia para ficar tranquilo, me escreve uma mensagem pedindo desculpas e perguntando como estou. “Não há por que se desculpar”, respondo. “Ninguém sabia com o que a gente estava lidando.”
No grupo “Brasileiros em Wuhan”, do WeChat, meu amigo Renato sugere que montemos uma lista com nossos nomes e números de passaporte, para que a embaixada saiba quem está em Wuhan. Para facilitar a identificação, mudamos também os nossos nomes no grupo. Quem ainda está na cidade acrescentou o ideograma 在 (que significa “em [Wuhan]”). Quem conseguiu sair escreveu 不在 (“fora [de Wuhan]”). Identificamos que somos 34 brasileiros na cidade. Agora não quero mais evitar as mensagens do grupo, quero atuar firmemente para que a gente consiga se ajudar.
Alefy, o colega que mora comigo, não poderá mais ir para Pequim. Penso na comida: minhas compras foram calculadas para consumo individual, mas agora somos dois. Vou até a porta do quarto dele e o acordo para irmos rapidamente ao mercado da universidade. No caminho, ele me conta, chorando, que outros amigos haviam saído da cidade sem avisá-lo; sente-se deixado para trás. Compramos legumes, comida congelada e galões de água. Estaremos dividindo esse apartamento por sabe-se lá quanto tempo.
No grupo de WeChat, contamos como jornais e emissoras do Brasil têm nos procurado. Decidimos que a oportunidade é boa para pedirmos apoio institucional, já que vários países estão planejando a retirada de seus cidadãos de Wuhan, com autorização do governo chinês. Minha amiga Indira pergunta quem estaria interessado em voltar ao Brasil. Não tenho interesse em retornar, estou seguro em minha casa. A universidade está nos apoiando, certos professores nos acompanham diariamente – ainda que online –, conferindo como está nossa saúde. O hospital universitário estará à nossa disposição. Sinto-me reconfortado.
Minha mãe compartilha uma notícia triste: meu tio Onofre, tão querido, morreu. Chorei com meu pai ao telefone. Silêncio.
24 DE JANEIRO, SEXTA-FEIRA_São 1 287 casos confirmados, 41 mortes. Sigo recorrendo à música para ficar calmo e ter esperança. Hoje ouvi Cucurrucucu Paloma, cantada por Caetano Veloso. Consigo retomar alguma atividade intelectual, como a redação de um artigo acadêmico e o acompanhamento do trabalho de uma mestranda chinesa, que estou coorientando, dentro de um grupo de pesquisa que montamos sobre Brasil e China. Ela tinha dúvidas sobre o funcionamento da política habitacional brasileira. São a essas coisas que dedico o dia, além de ajudar no planejamento de ações do grupo “Brasileiros em Wuhan”.
A noite cai, volto a ficar com a respiração ofegante. Converso com minha irmã Carol, ela me diz que é ansiedade. Recorro ao papel e ao desenho. Escrevo: 没有人, 我一个人。(Não tem ninguém aqui, eu estou sozinho).
25 DE JANEIRO, SÁBADO_Meu telefone não para de vibrar, por causa do grupo no WeChat. Renato divulga novos dados: 1 975 casos confirmados, 56 mortes. Os Estados Unidos começam a planejar a retirada de seus cidadãos. Já na China circulam campanhas de encorajamento para moradores de Wuhan, com o lema Wuhan jiayou! (Força, Wuhan!). O controle da circulação urbana é intensificado, túneis sob o Rio Yang-tse, que corta a cidade e a divide em distritos, são fechados. Minha temperatura subiu para 37ºC, mas não tenho tosse ou qualquer outro sintoma.
Cozinho para mim e o colega de apartamento. São momentos de solidão. Aumento o volume da música. Ouço Caetano pro meu corpo, minha cara, minha cuca ficar odara. Também ouço À Francesa, da Marina Lima. E pico os legumes dançando ao som dessa música. Aliás, parece que a França, discretamente, também está organizando a repatriação de seus cidadãos. Dou uma risada ao me dar conta da piada pronta: eu, aqui, cantando a música da Marina, enquanto a França planeja sua saída – à francesa.
26 DE JANEIRO, DOMINGO_Começamos a fazer contatos com a embaixada. Elegemos Indira, que já estava exercendo certa liderança no WeChat, para nos representar na comunicação com os diplomatas brasileiros.
A China anuncia que irá construir novos hospitais para atender as pessoas infectadas; promete entregar as obras em dez dias. Não tenho dúvidas de que o governo vai cumprir esse objetivo. A notícia me instiga, como urbanista, e me afaga, como morador do país. Tenho medo de ter de recorrer a hospitais superlotados.
A sensação é a de estar numa guerra, recolhido em um esconderijo, analisando a melhor estratégia a cada dia. Penso na minha família. Lembro-me de uma canção interpretada pelo Almir Sater, que diz assim: Enquanto este velho trem atravessa o Pantanal, só meu coração está batendo desigual, ele agora sabe que o medo viaja também sobre todos os trilhos da Terra.
27 DE JANEIRO, SEGUNDA-FEIRA_Paulo, meu orientador de doutorado na USP, foi muito sensível esses dias e respondeu a um e-mail em que eu narrava a dificuldade de conter os pensamentos negativos. Ele me pergunta o que tenho a dizer sobre esses novos hospitais que estão sendo construídos às pressas na China. Aqui, a propriedade de terrenos urbanos é do Estado, o que permite grande economia de tempo e dinheiro quando o governo decide construir o que quer que seja. A construção é industrializada, com materiais pré-moldados, e as maiores construtoras são estatais.
Seguimos dando entrevistas para a imprensa brasileira – o que nos coloca em contato com o racismo e o preconceito escancarado de muitos leitores, que dizem ser contrários à nossa repatriação (quanto a mim, ainda não estou certo se quero voltar, o que não me impede de defender o direito dos que querem). Lembro-me do país dividido de onde venho. Eles passarão; nós, passarinhos.
28 DE JANEIRO, TERÇA-FEIRA_São 5 974 casos confirmados na China, 132 mortes. O meu orientador diz que pode solicitar apoio à reitoria da USP para comunicar ao Itamaraty que há um estudante da universidade em Wuhan. Aceito e sugiro no grupo do WeChat que outros brasileiros façam o mesmo caso sejam ligados a alguma instituição. No Brasil, o presidente da República declara que não seria oportuno buscar uma família em Wuhan e, assim, comprometer a saúde de um país inteiro.
29 DE JANEIRO, QUARTA-FEIRA_Novos dados dizem que há 7 711 cidadãos contaminados e 170 mortes. Discutimos que seria importante escrever uma carta ao governo brasileiro, pedindo nossa repatriação. A carta também poderia servir como comunicado à imprensa, que vem nos solicitando mais entrevistas do que damos conta de atender. Criamos uma comissão de seis pessoas para a redação da carta.
A maioria do grupo manifestou interesse em ser repatriado; eu ainda tenho dúvidas. Em que termos isso se daria? Faríamos a quarentena no Brasil? Além disso, tenho medo de voltar e não ter condições financeiras ou apoio institucional para regressar à China. Meu plano era ficar em Wuhan até julho.
Criamos uma comissão para facilitar o diálogo com a imprensa. Achamos importante ocupar esses espaços na mídia, seja para pautar nossa repatriação, seja para desmistificar o conteúdo equivocado – para não dizer preconceituoso – que vem sendo divulgado nas redes sociais sobre o que está se passando por aqui. Aceitei dar uma entrevista para a revista Época, que me envia as perguntas por e-mail, já que não tenho WhatsApp nem Skype.
Conversando com Renato sobre meu medo e sobre como tem sido importante falar com minha irmã, surge a ideia de montarmos um grupo de apoio psicológico para o período de quarentena, com profissionais voluntários. Carol aceita fazer essa ponte entre o Brasil e nós.
30 DE JANEIRO, QUINTA-FEIRA_Cerca de dez pessoas manifestaram interesse em ter apoio psicológico. Pensamos que as conversas poderiam acontecer online. Centralizamos a lista de interessados com minha irmã, que escolheu um terapeuta para cada um de nós. O meu se chama Fábio, é um psicanalista de Sobral, no Ceará, e já tivemos uma primeira conversa, que foi muito boa. Combinamos repetir a cada dois dias.
A carta ao governo brasileiro ficou pronta. Tomás redigiu uma versão com linguagem palatável, Mariana ajudou com questões de direito internacional, e todo mundo deu pitaco. O resultado final ficou claro, direto e sem contaminação do clima de polarização política.
31 DE JANEIRO, SEXTA-FEIRA_São 11 791 casos confirmados, 243 pessoas curadas e 259 mortes. Tenho saudades de andar pelas ruas de Wuhan, de desenhar a paisagem do Lago Leste, de ver as senhoras dançando em grupo nas praças. Nas últimas décadas, a cidade, que é a principal da região central da China, cresceu muito, se verticalizou, ampliou muito sua rede de metrô. É conhecida como “a cidade dos cem lagos”, pois há muitos, em toda parte. Sinto falta de pedalar sem rumo, ladeando os lagos, atravessando os parques e me aventurando nas ruas, ou de cruzar o Rio Yang-tse em uma balsa, à noite, vendo os edifícios iluminados. Mas não posso e não quero ultrapassar os muros da universidade. E, ainda que o fizesse, veria uma cidade completamente diferente: vazia.
Nossa carta foi protocolada em Brasília por advogados voluntários. Festejamos essa conquista. O grupo de apoio psicológico parece estar funcionando – outras pessoas começaram a ser atendidas.
No Brasil, o presidente da República declarou que o país não possui lei de quarentena e que nos buscar aqui sairia muito caro. Mas cidadão tem valor?
1º DE FEVEREIRO, SÁBADO_O mês se inicia com 14 380 casos confirmados, 328 curados e 304 mortes. Fui apanhar meu passaporte no serviço de imigração da prefeitura, junto com um amigo francês; nossos documentos estavam lá para renovação do visto de residência. Havia apenas um funcionário de plantão, todo o resto do edifício parecia estar vazio. A universidade nos ajudou a encontrar um táxi (não há táxis circulando). No trajeto de 25 minutos, a tristeza e o espanto de ver os espaços públicos vazios. Todos dentro de suas casas.
O presidente da República afirma que só fará nossa repatriação caso possa garantir o isolamento em quarentena quando chegarmos ao Brasil.
Renato deu a ideia de transformarmos a carta ao governo em um vídeo, para mostrar que temos cara, que somos filhos e filhas, companheiros e companheiras. Indira dividiu os trechos da carta que cada um leria e avisou que deveríamos enviar os vídeos para Wagner e Keniti, da comissão de comunicação. Eles estudam na universidade, mas estão nos apoiando a distância, pois foram viajar antes de a cidade entrar em quarentena. Um está no Vietnã; outro, na Malásia. Criamos também uma hashtag: #BrasilCasaDeTodosNós.
2 DE FEVEREIRO, DOMINGO_São 17 205 casos confirmados, 475 curados, 361 mortes. Tentei trabalhar nos artigos pendentes do doutorado. A pressão que vivo aqui não anula a pressão com o prazo da pesquisa.
O canal de YouTube TV 247 entrou em contato com minha amiga Mariana Yante, pesquisadora brasileira em direito internacional, que mora em Xangai. Querem que ela participe de um programa sobre os brasileiros que estão em Wuhan. Ela propôs que eu participasse também, para trazer a voz de uma pessoa que está de fato imersa nessa situação.
3 DE FEVEREIRO, SEGUNDA-FEIRA_A entrevista do canal TV 247 rolou lindamente. A dificuldade foi representar um grupo tão heterogêneo, por isso optei por ressaltar essa diversidade desde o início: de ideologia, orientação política, gênero e idade. Disse que estamos todos bem de saúde e que já cumprimos uma quarentena coletiva, decretada pelo governo chinês há mais de dez dias (a ideia era tranquilizar os que temem que possamos levar o vírus para o Brasil).
Falei também do apoio que recebemos das instituições chinesas, mas reforcei nossa preocupação com aqueles brasileiros que não residem em universidades e não desfrutam do mesmo suporte que nós. Destaquei todo o investimento que vem sendo feito da parte do governo chinês, como a construção de hospitais, a publicação de boletins diários, a adesão de médicos de todo o país, que se dispuseram a vir pra cá. Mariana também apresentou algumas soluções para o impasse do governo no Brasil. No que diz respeito à ausência de leis para quarentena, por exemplo, bastaria publicar uma medida provisória.
Por coincidência, horas depois da exibição do programa no YouTube, o governo brasileiro afirmou que vai nos retirar daqui. Não consigo dormir, tamanha a ansiedade.
No grupo “Brasileiros em Wuhan”, todos celebram nossa conquista. A embaixada pede que informemos quem quer retornar. Também telefona a cada um dos 34 brasileiros para conversar sobre a repatriação.
Eu vinha lutando para termos o direito à escolha. Agora, o momento da escolha se impõe. Além de ter certeza sobre a segurança de nosso retorno, preciso analisar como ficariam as coisas aqui na China, se haveria alguma flexibilidade com relação à minha bolsa, à continuidade das aulas de mandarim, o que aconteceria com o quarto que alugo na universidade, com os livros e objetos pessoais que certamente terei de deixar para trás. Decido pela repatriação: é uma forma de acalmar minha família e a mim mesmo, já que não posso prever quanto tempo vai durar essa quarentena.
Lemos que, no Brasil, o presidente da Câmara dos Deputados informou ao presidente da República que bastaria o Executivo encaminhar um projeto de lei ao Congresso que este seria votado em regime de urgência. Lemos também que o projeto de lei está sendo redigido e que sua tramitação no Legislativo ocorrerá em um prazo de 48 horas.
4 DE FEVEREIRO, TERÇA-FEIRA_O dia amanhece mais leve, pela primeira vez em tantas semanas. O reitor da universidade veio entregar uma cesta básica para cada estudante que permanecia no campus: ovos, leite, legumes, verduras, arroz e frutas. Mais uma vez, manifestou sua preocupação e demonstrou respeito e até carinho. Agradeço imensamente.
Resolvi sair com meu amigo francês para dar uma volta no lago que fica a poucas quadras da universidade, algo que não fazia há semanas. Saímos munidos de máscaras, luvas, coragem e leveza. Andamos no meio da rua, porque não há carros circulando. Na entrada de alguns condomínios residenciais, as cancelas para veículos estão reforçadas com placas e outros materiais, para dificultar ainda mais a passagem.
São 24 324 casos confirmados, 892 curados e 490 mortes. No Brasil, a Câmara aprova o projeto de lei sobre a quarentena e o encaminha ao Senado.
5 DE FEVEREIRO, QUARTA-FEIRA_O Senado também aprova o projeto e o encaminha à sanção do presidente da República. Dois aviões da FAB (Força Aérea Brasileira) decolam rumo à China. Minha família vibra. Tento convencer dois amigos brasileiros a voltarem também, inclusive o que viajaria comigo para o vilarejo no Norte e que já se recuperou da gripe. Temo que, apesar do apoio que temos recebido da universidade chinesa, as coisas venham a piorar, que a quarentena fique ainda mais restritiva, haja problemas de abastecimento e eles fiquem muito sozinhos. Não adianta, os dois querem ficar. Contem comigo, onde quer que eu esteja.
6 DE FEVEREIRO, QUINTA-FEIRA_Recebo mensagem de uma amiga panamenha me pedindo ajuda. Ela disse que seu governo está tentando negociar com Brasília para trazê-la no voo conosco, porque é a única panamenha na quarentena em Wuhan. Conta que a embaixada do Brasil em Pequim está a par do assunto, mas que o governo panamenho não tem conseguido uma resposta de Brasília. Passo o dia tentando me comunicar com o serviço consular para ajudá-la. Respondem que a decisão depende de Brasília. Sigo na torcida.
Começo a organizar minhas malas. Só podemos levar 20 kg, o que é compreensível, já que estamos falando de um resgate e não de uma viagem comercial. Priorizo livros e algumas mudas de roupa. E também meu diário, mas preciso deixar meu caderno de desenho para trás (não sem antes arrancar algumas folhas). Encontro um que comecei a fazer no Monte Mulan. Para mim, o desenho se torna a representação de tudo por que estou passando: trabalho não concluído, amor que permanece, a vida em suspenso. Eu o levarei comigo, mas prometo que só vou terminá-lo quando voltar à China.
7 DE FEVEREIRO, SEXTA-FEIRA_Dia da repatriação. Na China continental, há 37 546 casos confirmados, 2 649 pessoas estão curadas e 811 morreram. Alefy e eu deixamos nosso apartamento limpo e as malas praticamente prontas. Virão nos buscar no início da noite. Tínhamos muito alimento em casa: arroz, legumes, ovos, carne congelada, água, leite e café solúvel. Doamos tudo para amigos do Brasil, da França e de São Tomé e Príncipe que vão continuar aqui. Como se despedir com máscaras e quando se recomenda manter a distância mínima de 1 metro entre as pessoas? Como deixar de mostrar carinho e preocupação para com pessoas que esperamos ver em breve, uma vez que é difícil prever o que acontecerá conosco?
Antes de sairmos de casa, Alefy e eu fizemos uma oração. Pedimos proteção e caminhos abertos para nós e os que vão ficar aqui, e agradecemos a Deus pelo apoio que tivemos da China nesse período. Minha amiga panamenha não conseguiu autorização de Brasília para viajar conosco.
O ônibus fretado pela embaixada veio nos recolher às oito da noite. De lá, fomos a outra universidade, para buscar estudantes que serão repatriados. Depois atravessamos a cidade até o Shangri-La Hotel, onde havia outros brasileiros, que foram para lá por meios próprios.
Subimos todos no ônibus e seguimos para o aeroporto. Eu estava muito nervoso, permanecia em silêncio, concentrado, de forma a evitar qualquer alteração corporal que pudesse ser confundida com sintomas da doença. Só seria autorizado o embarque de quem não apresentasse febre ou algum outro sintoma. Conheço meu corpo, sei que em situações de estresse minha temperatura aumenta, meu coração acelera, e isso pode gerar alguma alteração na pressão sanguínea. Precisava pegar esse voo e voltar para casa. Estou bem de saúde e temia continuar na China e acabar adoecendo, física ou psicologicamente. Fiquei mais calmo ao ouvir relatos em tom de piada de outros estudantes, dizendo terem tanto medo quanto eu.
8 DE FEVEREIRO, SÁBADO_Chegamos ao aeroporto por volta de uma da manhã. Estava vazio. Eu nunca tinha visto algo parecido. Corredores infinitos sem gente e sem movimento, guichês com as luzes apagadas, silêncio em toda parte. Os poucos funcionários presentes estavam vestidos com macacões amarelos, capacetes, botas, luvas… Eram cenas de um filme de ficção científica que há algumas semanas me deixariam aflito, mas agora parecem normais.
Preenchemos um documento de imigração e um relatório sobre nosso estado de saúde e os bairros onde havíamos estado nas últimas duas semanas. Recebemos o cartão de embarque, despachamos as malas. Fiquei com uma mochila de mão. No portão de embarque, checaram novamente nossa temperatura. Depois, fomos chamados um a um para sermos atendidos por médicos chineses, que nos aguardavam em consultórios improvisados.
Os médicos também estavam vestidos de “astronautas”. A checagem se organizava como um circuito: o primeiro médico passava eternos vinte segundos buscando em nós sinais que indicassem algum sintoma da doença; o segundo analisava a ficha que havíamos preenchido ao chegar ao aeroporto, fazendo perguntas para confirmar o que estava escrito; o terceiro, por fim, media novamente nossa temperatura. Vi médicos colhendo secreções do nariz de algumas pessoas.
Dali seguimos para outros procedimentos, próprios da imigração – checagem de passaporte e de mala de mão – e entramos na área de embarque, onde conhecemos pessoalmente os colegas do grupo de WeChat. Avistamos os dois aviões Embraer, da FAB, que haviam sido escalados para nos buscar. Havia poucas aeronaves no pátio. Ouvimos dizer que as repatriações estavam acontecendo durante a madrugada e que durante o dia o aeroporto era usado apenas para o transporte de mercadorias, produtos hospitalares e medicamentos.
Fomos recebidos no portão de embarque pela equipe da FAB, vestida como mandava o figurino da segurança. Eles voltaram a avaliar nossa temperatura e a nos fazer perguntas em português sobre nossos hábitos, em tom amistoso. Terminados os exames, fomos autorizados a entrar no pátio onde os aviões estavam parados. Uma funcionária chinesa nos guiou em fila até uma das duas aeronaves, de acordo com o local indicado no cartão de embarque. Eram quatro da manhã, estava muito frio, só era possível ouvir o barulho alto das turbinas.
Aos pés da escada de acesso ao avião, fomos orientados pela equipe da FAB a retirar a máscara, desinfetar as mãos com álcool, colocar novas máscaras e finalmente entrar. Depois de tanta luta para conseguirmos chegar até ali, era difícil acreditar que tudo aquilo estava acontecendo. Ao entrarmos no avião, cada um de nós era saudado por um membro da FAB: “Seja bem-vindo ao Brasil.”
Aquelas palavras me tocaram profundamente, meus olhos se encheram de lágrimas, e ao observar os olhos das pessoas da tripulação, percebi que elas compartilhavam do meu sentimento. É difícil não voltar a me emocionar agora, enquanto escrevo este diário. Com aquelas poucas palavras, aqueles olhares sob máscaras, expressamos nosso amor à vida, o nosso sentimento de solidariedade. Agradeci a eles, a Deus e à vida por poder voltar para casa.
Decolamos às quatro da manhã, no horário local. Quando anunciaram o início da decolagem, todos bateram palmas. Em voz baixa, repeti Wuhan jiayou! (Força Wuhan!), deixando minha vibração positiva para a cidade e todos os doentes, os quais espero que se recuperem logo.
O avião estava dividido em três categorias por cortinas fechadas do chão ao teto: câmara quente – onde os passageiros eram autorizados a ficar –, câmara morna e câmara fria (nessas duas últimas só entrava a tripulação; os termos não designavam a temperatura, mas o grau de risco de contaminação em cada lugar). Os assentos eram como os da classe econômica de qualquer voo comercial: confortáveis, apesar de estreitos, com uma minitevê. A cada duas horas, nossas máscaras eram trocadas e nossa temperatura era aferida.
Conosco, voaram alguns cidadãos poloneses. Imagino que isso tenha feito parte da negociação para autorizar nosso pouso para abastecimento em Varsóvia. Eu me sentei ao lado da Reisi, uma brasileira de pouco mais de 40 anos. Ela me contou sobre como essa viagem era difícil para ela, já que seu marido, chinês, não pôde acompanhá-la, pois tinha de cuidar dos pais idosos.
O primeiro trecho durou cerca de quatro horas até uma parada em Ürümqi, no Noroeste da China. Passamos cerca de duas horas ali, recebendo combustível e refeições. Seguimos então para Varsóvia, onde ambulâncias, tendas e médicos paramentados esperavam pelos passageiros poloneses. Um dos brasileiros tinha comprado um pacote de dados para uso de internet e cedeu a todos. Aproveitamos para falar com nossas famílias e contar que estávamos bem.
9 DE FEVEREIRO, DOMINGO_Era dia em Varsóvia (e noite em Wuhan) quando deixamos a capital polonesa rumo a La Palma, uma ilha espanhola no arquipélago das Canárias. Chegamos junto com o pôr do sol e fizemos ali nossa parada mais longa, de cerca de quatro horas. A espera foi cansativa, pois não saímos do avião.
Quando percebemos que o avião se aproximava da costa brasileira, a alegria tomou conta dos repatriados. Aterrissamos em Fortaleza, onde ficamos cerca de uma hora até decolarmos para o destino final, em Goiás.
Por volta de seis da manhã, chegamos ao aeroporto da FAB em Anápolis. Aplaudimos a aterrissagem. Chovia. Por um tempo, eu tinha me esquecido da atenção que nosso caso tinha despertado na mídia: uma multidão de jornalistas acompanhava a distância o desembarque. Descemos na pista e andamos sob a chuva até um ônibus que nos levaria ao hotel da base militar. Fomos informados que seriam colhidas secreções das narinas e da garganta para fazer o exame de detecção do coronavírus e de outros vírus causadores de doenças respiratórias, e que nossos sinais vitais seriam analisados três vezes por dia.
No hotel, cada um recebeu a chave de seu quarto, equipado com banheiro privativo, armário, um pequeno frigobar, televisão e ramal telefônico. Quando entrei no meu, fiquei surpreso ao encontrar uma cesta de frutas e um singelo cartão que dizia: “Higor, seja bem-vindo ao Brasil.” Mandei mensagem para minha família e para o Gui, contando que eu finalmente tinha chegado e tudo estava correndo bem. Assim que fiz isso, comecei a chorar. Não estou mais só, voltei para casa.
11 DE FEVEREIRO, TERÇA-FEIRA_Saiu o resultado dos nossos exames: negativos para o coronavírus e outros vírus de doenças respiratórias. Se tudo correr como planejado, reencontro o Gui e a minha família no dia 27 de fevereiro.[2] A equipe reunida para nos acolher é atenciosa e apaixonada pelo que faz. Por ora sigo em quarentena, protegido pelas árvores tortuosas do Cerrado que cercam a base militar e também pelo céu infinito.
[1] O autor prefere omitir o sobrenome da maioria das pessoas citadas no diário.
[2] As pessoas em quarentena na Base Aérea de Anápolis foram liberadas antes do previsto, em 23 de fevereiro.
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