Outdoor italiano conclama à luta contra o vírus: embora tenha se atrasado na reação à pandemia, a Itália decidiu proteger a saúde da população mesmo à custa da estabilidade econômica FOTO: CARLO HERMANN_AFP
O vírus soberano
A pandemia coloca em questão a política do medo na democracia atual
Donatella Di Cesare | Edição 163, Abril 2020
Tradução de Davi Pessoa
Scanner térmico nos aeroportos, controles sobre o território, quarentena para os possíveis infectados e, em seguida, máscaras, medidas preventivas, lavagem frequente das mãos… Será o suficiente? O medo da contaminação se torna palpável. Seria melhor evitar lugares públicos, trancar-se no espaço da intimidade doméstica, onde o temível coronavírus, o inimigo invisível, que tem um nome tão soberano, dificilmente conseguiria penetrar.
Algumas pessoas argumentam que sejam atávicas as pulsões que levam a erguer barreiras, a construir muros, que sejam naturais tanto o medo do estrangeiro, isto é, a xenofobia, quanto o medo de tudo o que está do lado de fora, ou seja, a exofobia, tão peculiar à época da globalização. Mais um passo adiante, e acaba-se também por considerar natural o racismo – uma tese que circula aqui e ali, sem ser estancada por algumas simples objeções. E o racismo é realmente um vírus poderosíssimo. Mas a pulsão securitária seria, de fato, completamente natural, e a política nada teria a ver com isso?
Nos debates sobre a democracia, discute-se como defendê-la, reformá-la, melhorá-la, sem colocar em discussão nem suas fronteiras nem, muito menos, o vínculo que a mantém unida em tais fronteiras: a fobia do contágio, o medo do outro, o terror por aquilo que lhe é exterior. Esquece-se que existem diferentes modelos, até mesmo opostos, de democracia. O nosso está cada vez mais distante do modelo grego, ao qual também gostamos de nos referir. Hoje é impossível ignorar os gravíssimos limites da pólis: a exclusão das mulheres da vida pública, a desumanização dos escravos. No entanto, para os cidadãos gregos, o modelo político implicava envolvimento e participação.
Ao contrário, é o modelo da não exposição que se impõe na modernidade, a partir da democracia dos Estados Unidos, isto é, o modo ocidental e ocidentalizado que irá, mais tarde, tomar conta de tudo. Pessoas, corpos, opiniões devem poder existir, mover-se e expressar-se, sem serem tocados, sem serem inibidos, forçados e interditos por uma autoridade externa. Até que isso não seja realmente algo a se evitar. Esse modelo negativo é um sistema de imunidade que vai além da política e se estende ao governo das vidas humanas em seus múltiplos aspectos. É um sistema de direitos vistos como garantias e seguranças. A liberdade também é entendida negativamente, ou seja, não no cerne da expansão e da criação, mas sim no da salvaguarda e da proteção. Se ao cidadão grego interessava a partilha do poder público, ao cidadão da democracia imunitária interessa, antes de tudo, sua própria segurança, desfrutada no nicho privado e gentilmente concedida pela autoridade política. Por isso, garantia e liberdade se confundem. Esse é, talvez, o mais grave limite do liberalismo.
À medida que esse modelo se impôs, aumentaram as exigências e as solicitações de imunidade. O noli me tangere, não me toques, é a tácita palavra de ordem que inspira e guia a batalha pelos direitos, na qual se acredita ver o rosto da civilização e do progresso. Cidadãs e cidadãos clamam por respeito à integridade, garantia de imunidade.
Para entendermos isso basta pensarmos na mudança dos paradigmas político, moral e psíquico, para os quais o pater familias, o terrível pai patrão, agora parece desacreditado. Aposentando-se o pai, uma crise infinita de autoridade é desencadeada, o poder paternal é substituído pela tutela do Estado. Como se sabe, esse é um terreno fértil para reacionários e nostálgicos que, com suas elucubrações crepusculares, imaginam que podem restaurar o paradigma político da paternidade autoritária. Porém, o Estado moderno, essa máquina fria e impassível, não ama nem odeia. Simplesmente – como ensinou a biopolítica – faz viver e deixa morrer de forma administrativa.
Do mesmo modo, para entendermos a complexidade do processo em curso e observarmos todos os resultados da imunização, é necessário dizer que, ao lado do intangível, isto é, o corpo do cidadão inscrito na democracia liberal, admite-se sem problemas o abandono de uma parte da humanidade à sua própria sorte. É a separação entre a esfera fechada do mundo ocidental, na qual foi se edificando o sistema do capital, da técnica, do conforto, e a hinterlândia[1] sem fim da miséria, as periferias planetárias do desconforto e da desolação. Nestes locais vivem, ou melhor, sobrevivem os perdedores da globalização, e ali não chega o sistema de garantias e de segurança. Seria melhor, aliás, manter-se a uma distância segura dos contaminados, que poderiam ser fonte de doença e causa de contágio. Essa outra humanidade (mas serão realmente “humanos”?) estará inexoravelmente exposta a guerras, genocídios, fome, doenças, desnutrição, exploração sexual e novas formas de escravidão.
Deseja-se inclusão e direitos para todos. O que acontece, no entanto, é exatamente o oposto: uma não inclusão sistemática. De um lado, os intangíveis; de outro, os contaminados. De um lado, os que têm garantias e são preservados; de outro, os que estão expostos. Imunização de alguns, exposição de outros. Assim funciona a democracia imunitária, de acordo com essa dupla via, tornada mais sólida e testada pela experiência totalitária: quanto mais se multiplicam os benefícios e garantias para quem está dentro, tanto mais cresce o abandono dos excluídos.
Aos dispositivos de controle, proteção e prevenção em nosso mundo correspondem a desordem, a desolação, a ininterrupta produção de forças naturais no outro mundo. A vacinação infantil terá surtido efeitos no continente africano, os quais, porém, foram quase apagados por novas pandemias não controladas, como a da Aids. Ao corpo intangível da criança ocidental se opõem as hordas de crianças errantes às margens das metrópoles ou nas periferias do planeta. Se vão ao encontro de infecções selvagens, não serão elas próprias selvagens? No fundo, o cidadão imunizado acredita que o abandono dos excluídos está relacionado à incivilidade deles.
É errado falar, como fazem muitos, de indiferença, porque significa reduzir a uma escolha moral do indivíduo o que é uma questão eminentemente política. Além disso, significa despolitizar a questão. E não se trata apenas de racismo – essa também é uma simplificação. Trata-se, sobretudo, de insensibilidade afetiva com muita razão de Estado.
Não se deve, obviamente, acreditar que a imunização seja válida em todos os lugares e para todos. As dinâmicas do poder atuam dentro da democracia imunitária. Basta pensarmos no corpo das mulheres que correm o risco de abusos e de discriminações em todos os lugares, não só no local de trabalho. Assim, o corpo de um morador de rua detido em uma delegacia de polícia é tudo menos intangível.
No entanto, o importante é que o processo de imunização faz do corpo (e da mente) de cada cidadão uma fortaleza a ser protegida e isolada. As formas de aversão se multiplicam, o movimento de retrair-se se torna espontâneo, a fobia do contato é a norma. Exatamente porque está obcecado por ameaças, o cidadão da democracia imunitária não tem dificuldade em aceitar decretos de emergência, mesmo os muito graves, como os emitidos na Europa, onde nações inteiras estão agora sob prisão domiciliar. Em suma, é esse cidadão – e aqui reside a novidade – que se entrega como paciente a uma nova democracia médico-pastoral.
Política e medicina, direito e saúde, áreas heterogêneas, se sobrepõem e se confundem na democracia imunitária. A ação política tende a assumir modalidade médica, enquanto a prática médica se torna politizada. Aqui também o nazismo fez escola – por mais escandaloso que seja lembrá-lo na democracia atual. Os exemplos seriam muito numerosos. Neste momento (meados de março), na Itália, país que se encontra em quarentena total, os que falam em público são quase exclusivamente médicos ou especialistas, especialmente virologistas, que tomam as decisões mais drásticas, como, por exemplo, proclamar uma “zona vermelha” ou “zona protegida”. Os políticos ficaram completamente em segundo plano.
O cidadão-paciente, para quem a experiência do outro é no fundo vedada, é às vezes dominado por uma nostalgia obscura da massa. Ele quase que gostaria de mergulhar nela novamente para emancipar-se de toda a negatividade da fobia de contato. Isso acontece algumas vezes, no entanto, de maneira sutilmente regulamentada, em estádios ou em concertos. No mais, está acostumado a telas e filtros; com triste resignação aceita até mesmo os efeitos paradoxais da imunização, incluindo uma grande quantidade de doenças autoimunes que afetam o corpo hiperprotegido.
A angústia do contato prevalece. Procura-se ficar fechado no espaço da intimidade doméstica. Esse espaço tranquilizador, repleto aqui e ali de telas através das quais se olha o mundo protegido, jamais pareceu tão indispensável. O cidadão-paciente, o insensível e imperturbável espectador do mundo, não responde mais ao regime político do qual faz parte, e não o desdenha, pelo contrário, ele busca o efeito narcótico da imunização. É consciente de viver seu lugar no mundo sob condição anestésico-democrática, enquanto em outros lugares a dor, a fome, a doença, o contágio são destino e fato. A disparidade entre imunes e contagiosos, protegidos e indefesos, que desafia toda ideia de justiça, nunca foi tão midiaticamente marcante, tão descaradamente óbvia.
Entretanto, a anestesia do cidadão imunizado, a baixa intensidade de suas paixões políticas, também é sua maldição. Não apenas porque a narcose democrática favorece a visão impassível do espetáculo mundial, que provoca, quando muito, curiosidade. Mas, sobretudo, porque a insensibilidade afetiva se distancia de qualquer horizonte comunitário. Onde há imunização, não há comunidade. O filósofo Roberto Esposito explicou bem, limitando, no entanto, o vínculo da comunidade ao medo da morte. Hoje é, porém, um medo muito mais evasivo, amplo e incerto, que coagula de tempos em tempos a comunidade em um “nós” fantasmático.
A vida parece sufocada no movimento por uma alternativa violenta: ou a ameaça de sofrer uma agressão ou a exigência de se defender, aliás, de prevenir o ataque. É a vida marcada por alarmes, protegida por sistemas antifurtos, portas blindadas e trancas de segurança, entrincheirada em condomínios cercados por muros e monitorados por câmeras, a vida fechada em bairros vigiados por seguranças e perscrutados até mesmo por rondas de moradores.
O medo cresce e se torna o temor obscuro do outro, no qual, como se por mágica, confluem diferentes preocupações e ansiedades. Pode-se falar de uma cultura do medo cuidadosamente instilada, que favorece o consenso político. O que é, portanto, o medo que caracteriza as democracias imunitárias? Não se trata de uma emoção espontânea. É, antes, a sugestão difundida de um perigo onipresente, o hábito à ameaça, o sentido de uma extrema insegurança – até do terror.
Ao contrário do que se acredita, a psicopolítica não é uma novidade de nossos tempos. Se o medo domina os ânimos, então com o medo é possível dominar os ânimos alheios. Foi Maquiavel quem transformou o medo em uma categoria política, percebendo sua estreita ligação com o poder. Para o príncipe, é uma arte difícil incuti-lo veladamente a fim de manter intacta a soberania; ele deve evitar que esse sentimento se transforme em ódio e leve o povo à revolta.
O medo percorre toda a modernidade até o século XX, o século do terror total, geralmente confundido com a tirania, que ainda distingue amigos de inimigos. O poder totalitário, por outro lado, é o vínculo férreo que funde todos em um; não é um instrumento de governo, mas o próprio terror a governar, enquanto devora o povo, isto é, seu corpo, e já contém os germes da autodestruição.
E hoje? O terror se tornou uma atmosfera. Exerce o seu influxo deixando que, em sua aparente ausência, cada cidadão seja uma presa do medo que o atinge, que corrói os laços sociais, provocando passividade do espírito e depressão. Desastres da globalização, catástrofes ecológicas, incerteza econômica e precariedade parecem fenômenos inevitáveis. Em nome das leis de ferro da economia, o Estado de segurança abandona o cidadão a alguns imprevistos, o expõe a alguns perigos, para se encarregar de outros; assim, deixa emergir uma hierarquia dos medos em que dispõe seu plano de segurança. O liberalismo é a ideologia desse abandono. A promessa de proteção é limitada e traz consigo a ameaça de abandono.
Nunca se efetiva uma advertência direta, porque os riscos parecem vir do exterior. O Estado de segurança ameaça e tranquiliza, exalta o perigo e promete proteção – uma promessa que não pode cumprir. Porque a democracia pós-totalitária requer o medo e sobre ele se funda. Eis o círculo perverso. Suspense e tensão se alternam em uma vigília permanente, em uma insônia policial, que gera pesadelos, distrações e alucinações.
A palavra-chave da governança neoliberal poderia ser fobocracia, do grego phóbos, medo, e krátos, poderoso, valoroso, forte. É o domínio do medo, o poder exercido por meio da emergência sistemática, do alarme prolongado. Difunde-se o medo, transmite-se ansiedade, fomenta-se ódio. Ameaças imaginárias são sugeridas, perigos reais amplificados. A confiança desaparece, a incerteza prevalece. O medo perde a direção e irrompe em pânico.
Acendem-se e apagam-se surtos de apreensão coletiva, o estresse é induzido intermitentemente, sem nenhuma estratégia e sem propósitos claros, a não ser a clausura imunitária de uma comunidade passiva, colapsada e despolitizada. Assim, o “nós” fantasmático se submete temporariamente à emergência e aos seus decretos.
É impossível não pensar aqui no “estado de exceção”, esse paradigma de governo por meio do qual se lê o mundo de hoje, como o delineou o filósofo Giorgio Agamben. O paradigma permanece válido. Por outro lado, é agora uma prática diária: os procedimentos democráticos são suspensos por disposições tomadas no cerne da emergência. Um decreto aqui, um decreto ali: assim, cidadãs e cidadãos acabam aceitando “medidas” que deveriam garantir sua segurança, mas que, de fato, limitam fortemente sua liberdade.
No entanto, o “estado de exceção” parece um paradigma ainda muito associado ao século XX e não mais suficiente para explicar um mundo tão complexo quanto o atual, globalizado, onde o medo passou a desempenhar um papel político decisivo. A fobocracia caracteriza a soberania atual que – em sua versão discriminatória anti-imigrantes ou anti-índios – não é uma mera reedição do antigo nacionalismo. É um fenômeno novo: alavanca o medo do outro, o alarme do que vem de fora, a ansiedade da precariedade, o desejo de ser imune a ele. Mas essa fobocracia tem uma presa provisória e, por sua vez, corre o risco de ser destituída e destronada, como acontece atualmente com o coronavírus, o vírus soberano que escapa de qualquer controle.
Assim, o governante que brinca com o fogo do medo acaba sendo queimado por ele. Enquanto acredita que está administrando o ódio aos poucos, gerenciando devidamente o medo, tudo lhe escapa das mãos. O fobocrata, que gostaria de governar sob a bandeira do estado de exceção, é por sua vez governado por aquilo que se torna ingovernável. É essa inversão contínua que nos atinge, impressiona.
A democracia imunitária é, portanto, uma forma inédita de governança, na qual a política, reduzida à administração, por um lado, se submete aos ditames da economia planetária, por outro, se autossuspende abdicando da ciência, que se imagina objetiva, verdadeira, decisiva. Como se a ciência fosse neutra e imparcial, como se ela não estivesse há muito tempo estritamente ligada à técnica, altamente tecnicizada.
Falar de fobocracia não significa, de forma alguma, compartilhar a conspiração generalizada. Acreditar no complô significa aceitar uma visão quase mágica da história, na qual, com uma nítida divisão entre o bem e o mal, tudo pode ser levado a uma única causa. Quanto mais o cenário histórico parece complexo – como em nossos dias – tanto mais aumenta o desejo de encontrar uma explicação definitiva para fazer alavancar as emoções. Assim como circularam ideias sobre a chamada “substituição étnica” dos povos europeus por africanos, um mito forjado pelo ideólogo de extrema direita Alain de Benoist, do mesmo modo circulam agora lendas, fomentadas em grande parte pelo controverso cientista Shiva Ayyadurai, segundo as quais o coronavírus seria fruto de uma conspiração internacional para trazer vantagens às empresas farmacêuticas.
Diante da complexidade, escolhe-se o atalho da simplificação. A conspiração é a pedra angular do populismo político. Isso pode ser exemplificado pela posição seminegacionista assumida inicialmente por Donald Trump, que depois se revelou patética e grotesca. Entre paranoia e suspeita, o conspiracionista não se limita a uma fuga para seus deslumbramentos e quimeras. Caso identifique as forças obscuras em cujas mãos o mundo caiu, é com a intenção de combatê-las; ele reivindica para si o papel da vítima, constrói o inimigo absoluto. Essa visão, que agora também está à esquerda, promove – é importante destacar – a política bélica da reação, favorece a direita radical, que, não por acaso, encontra-se no auge.
Os Estados-nação, mesmo os das democracias populares, muitas vezes seduzidos pela soberania, não apenas ergueram muros, como também recorreram ao medo para governar em um cenário complexo como o da globalização. O coronavírus mostra todos os limites dessa governança, que se revela, de súbito, impotente. Isso não quer dizer que o regime fobocrático chegará ao fim. Muito pelo contrário. O medo continuará sendo a alavanca à qual, cada vez mais, a governança, desorientada e desalojada, irá recorrer. Hoje é impossível prever os efeitos sanitários, econômicos, políticos e sociais desse cenário devastador e sem precedentes criado pelo coronavírus. A pergunta que muitos se fazem é: o coronavírus vai acelerar a crise do capitalismo ou, ao contrário, será usado para uma restrição autoritária?
A pandemia, como foi definida, não é uma questão planetária. As respostas das diferentes potências são frequentemente conflitantes. São evidentes até mesmo as tentativas de tirar proveito da situação atual. Que medida cruel cada nação está aplicando aos segmentos mais frágeis de sua sociedade? Com que critérios combate a crise sanitária? Potências que visam a hegemonia são, em média, jovens, acostumadas com a morte que pontualmente encontram na guerra, inclinadas a recorrer à crueldade, antes de tudo em relação a si mesmas, e geralmente a transferir para o exterior um mal-estar que nasce em sua intimidade. Estados Unidos, Rússia ou Irã, pelo menos até o momento, tentam administrar a emergência ocultando a realidade, contando com a injustiça de sua sociedade, antídoto natural contra os danos causados pelo coronavírus. A menos, é claro, que os efeitos da epidemia se tornem colossais e levem a uma mudança de atitude. No geral, a China, em sua reação ao coronavírus, pareceu uma nação semirrica, atenta à qualidade de vida – algo que uma década atrás seria impensável. Isso significa que o país renunciou ao primado global?
O verdadeiro dilema é representado pela Europa, que nesse momento se encontra dilacerada. Enquanto a França de Emmanuel Macron e a Alemanha de Angela Merkel parecem seguir o modelo italiano, Boris Johnson considerava óbvio recorrer ao modelo do “efeito manada”.[2] Em resumo, isso significaria deixar que uma boa porcentagem das pessoas, mais da metade, fosse infectada, deixando morrer os mais velhos, os mais fracos e os mais pobres. Prefere-se, portanto, o interesse econômico aos cuidados sanitários. A aposta é muito perigosa em locais habitados por populações relativamente frágeis e não acostumadas à guerra, que ao longo dos meses podem não ser capazes de suportar um agravamento da situação. Toda a crueldade da governança neoliberal, então, emergiria.
Embora tenha se atrasado na reação à pandemia, com medidas iniciais ineficazes e depois soluções drásticas, a Itália decidiu proteger a saúde da população mesmo à custa da estabilidade econômica. O enorme esforço de uma quarentena coletiva, porém, corre o risco de ser frustrado se os outros países europeus não implementarem medidas iguais e permitirem que pessoas infectadas cheguem à Itália. Justamente esse vírus soberano, que circunda as fronteiras, revela todos os limites da soberania. Sem solidariedade entre os povos, para além de qualquer governança fobocrática, a catástrofe poderá ser enorme.
[1] Hinterlândia provém do alemão Hinterland, cujo significado é “terra de trás”. O termo é usado para designar as regiões de um país que ficam longe da costa e, por extensão, estão afastadas de um centro metropolitano. Pode também se referir a lugares menos desenvolvidos de um continente ou de um país. (N. do T.)
[2] Ou “imunidade de grupo”, conceito da epidemiologia segundo o qual as pessoas que correm risco de infecção são protegidas por aquelas resistentes à doença. Costuma ser utilizado no caso de vacinas: os que as recebem, por evitarem a doença, protegem indiretamente a população que não as tomou. A vacina do coronavírus, porém, ainda não foi descoberta. (N. da R.)
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