Ilustração de Carvall
Pandemônio em Trizidela
Do interior do Maranhão a celebridade nas redes: prefeito xinga na tevê quem fura quarentena contra covid-19, ameaça jogar spray de pimenta e relata disputa por respirador alugado
De tempos em tempos, a cidade maranhense de Trizidela do Vale, com 21,5 mil habitantes, é engolida pelas águas do Rio Mearim. Neste ano, o drama se repetiu, e a cheia já é considerada pelos moradores a maior desde 2009. Escolas, igrejas, o estádio de futebol e até quartos de motel foram transformados em abrigos para 1.276 pessoas. Segundo a prefeitura, há outros 3.982 desalojados, em casas de parentes. Ao drama da enchente do Mearim, soma-se o espectro do coronavírus. O prefeito Fred Maia (MDB) está convencido de que a chegada da covid-19 é questão de dias. Na semana passada, ele chegou a anunciar na televisão que havia dois contaminados, mas os resultados dos exames foram negativos. Até o momento, não há comprovação de infectados.
Trizidela do Vale está em estado de calamidade pública desde 21 de março por causa do coronavírus, não pela enchente. As autoridades municipais dizem que as cheias do Mearim são tão frequentes que eles se tornaram PhDs no assunto. Já a covid-19 é um inimigo desconhecido e invisível, que está nocauteando até os Estados Unidos.
Nos primeiros dias após o decreto de calamidade, houve adesão maciça à ordem de isolamento social, mas à medida em que a enchente do Mearim expulsava as pessoas de casa, cresceu o número de curiosos nas ruas. Foi aí que o prefeito decidiu usar sua verve, famosa entre os políticos maranhenses, para reenquadrar os moradores e obrigá-los a voltar para casa.
De bermudas e máscara no rosto, Maia foi ao estúdio da TV Ouro Vivo (retransmissora local do SBT), onde foi entrevistado pelo jornalista Coutinho Neto, apresentador do telejornal local J9. O programa é exibido no horário do almoço. A entrevista foi transmitida ao vivo. O prefeito deu uma bronca nos desobedientes, ao autêntico estilo “Odorico Paraguaçu”, prefeito interpretado pelo ator Paulo Gracindo na novela O Bem-Amado, exibida pela TV Globo em 1973, em plena ditadura militar.
Nem velhos e crianças foram poupados. Maia anunciou que a polícia estava autorizada a usar jatos de spray de pimenta contra quem estivesse nas ruas sem necessidade comprovada. Muitos moradores o apoiaram através das redes sociais, o que reforçou sua imagem de “coronel” nordestino, sem papas na língua.
– Sabe por que eles controlam (a doença) na China? Porque se o cabra não respeitar, ele vai pro cacete, vai pro pau. No Brasil, com essa sem-vergonhice dessas leis vagabundas, o vagabundo vai pro meio da rua, pra fazer nada, atrapalhando o trânsito. Então, meus amigos, a partir de hoje a conversa é outra. A polícia está autorizada a fazer trabalho ostensivo para fazer cumprir a lei. O decreto é de isolamento, e vai todo mundo pra dentro de casa. Isolamento é pra ficar dentro de casa, não é nas calçadas não. […]
O apresentador forneceu munição ao prefeito ao dizer que havia grupos de jovens nas ruas, com garrafas de bebidas, e perguntou a Maia se a paciência dele tinha se esgotado. “Esgotou, esgotou!”, Maia respondeu, e aproveitou para criticar os moradores que iam aos alojamentos de desabrigados visitar parentes.
– Tem uns filhos de umas éguas que estão indo fazer visita. Vai fazer visita na casa da sua mãe, pô. Não vai pra dentro dos abrigos não. […] As coisas agora vão ser assim, na porrada, no spray de pimenta pras pessoas aprenderem.
Na sequência, conclamou os pais a serem duros com as crianças que teimavam em andar de bicicleta nas ruas. “Menino não tem que querer. Mete o tapa. Mete o cacete e bota pra dentro de casa. Faça valer sua autoridade de pai e de mãe.” Os idosos foram igualmente recriminados: “Véio (velho) não aguenta sopapo. O vírus ataca logo os pulmão […] Vá se aquietar, sô!”
Assim que o prefeito deixou o estúdio, o apresentador comentou: “O homem está zangado, hein?” Segundo o diretor da televisão, Raí Brito, que também é secretário municipal do Meio Ambiente, a bronca surtiu efeito, e o número de pessoas nas ruas diminuiu a partir de então. O vídeo se espalhou nas redes sociais.
Nascido em Mossoró, no Rio Grande do Norte, Fred Maia é de família abastada. Seu nome é Charles Frederick Maia Fernandes, e ele chegou a frequentar faculdade de administração de empresas. Fala com erros de concordância para se aproximar do linguajar do eleitor humilde da região. Migrou para o Maranhão ainda adolescente para escapar do rigor paterno, e passou a viver com os avós maternos, donos de uma fábrica de sabão e de óleo de babaçu em Trizidela do Vale. O grupo político de Fred Maia comanda o município desde 2004. Ele foi vice-prefeito por oito anos e está no segundo mandato como prefeito.
A secretária municipal de Saúde, Arilene Bezerra Leitão, descreveu a precariedade para enfrentar o surto de coronavírus. O município tem uma população de cerca de 21,5 mil moradores, sendo 3.757 na área rural. “Todas as noites eu rezo para o vírus não chegar, e se vier, que seja brando. Nossa estrutura material só permite atender de quinze a vinte pacientes com sintomas leves e quatro pacientes mais graves”, diz ela.
A prefeitura montou uma sala com quatro leitos para estabilização dos pacientes graves enquanto eles não forem remanejados para um hospital com Unidade de Tratamento Intensivo, o que não existe em Trizidela e nos outros oito municípios da região do Médio Mearim. Mas a sala só tem um respirador, alugado às pressas. O prefeito tinha anunciado a compra de dois respiradores. Segundo ele, apareceu outro comprador no circuito, ofereceu preço maior e ficou com os equipamentos.
Trizidela do Vale fica a 270 km de São Luís e é contígua a Pedreiras, da qual se emancipou em 1994. A cidade não é um caso isolado de fragilidade para o enfrentamento da covid-19 no interior do Maranhão, mas talvez seja o mais grave por causa da quantidade de desabrigados pela enchente. Segundo o prefeito, as estradas estão deterioradas pelas chuvas. A viagem até a capital pode demorar até sete horas. O hospital público com UTI mais próximo está no município de Coroatá, a uma distância de 100 km.
As estatísticas oficiais dão uma ideia razoável da precariedade econômica e social do município. Trizidela do Vale tem 5.072 famílias inscritas no cadastro único do governo federal das famílias em situação de pobreza e de extrema pobreza. Considerando a média de quatro pessoas por família, representa quase toda a população municipal. São 3.099 famílias beneficiárias do programa Bolsa Família. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), só 8% da população têm emprego formal.
Por ser uma cidade de ribeirinhos, a pesca artesanal é importante fonte de renda. O pagamento do seguro-defeso de um salário mínimo assegurado pelo governo federal nos meses em que a pesca é proibida terminou este mês. A pesca foi liberada na quarta-feira (dia 1), mas os pescadores receiam que o isolamento social por causa do coronavírus afete a venda de peixes na Páscoa.
Outra fonte da renda local relevante é o trabalho temporário na colheita das safras agrícola de São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Mato Grosso. O governador do Maranhão, Flávio Dino, fechou as divisas para os ônibus interestaduais, mas há relatos de que muitos trabalhadores estão retornando para casa com medo da contaminação pelo vírus. A volta é feita em ônibus clandestinos, que rodam como se fossem de turismo. Os passageiros são transferidos para vans antes de entrarem no estado. Segundo a secretária de saúde, foram identificados 21 trabalhadores que retornaram com medo do coronavírus e que estão em quarentena em suas casas.
A televisão aberta tem levado informações das autoridades locais de saúde à população mais pobre do município. Isso é possível porque existem pequenas retransmissoras de televisão em todos os 217 municípios do Maranhão que possuem telejornais locais, aproveitando uma abertura jurídica válida apenas para os estados da Amazônia Legal. Há duas emissoras com jornalismo local que transmitem a programação para Trizidela do Vale e Pedreiras: a TV Ouro Vivo (canal 9) e a TV Rio Flores (canal 7). A primeira faz parte da rede Difusora, que está arrendada ao senador Weverton Sousa (PDT). A TV Rio Flores pertence ao ex-prefeito e ex-deputado estadual Raimundo Louro (PR).
Rai Brito, diretor da TV Ouro Vivo, diz que essas pequenas retransmissoras estão desaparecendo porque os políticos já não querem mantê-las: “Uma TV custa caro. Com o crescimento da internet, os políticos passaram a usar as redes sociais para falar com os eleitores.” Duas televisões foram fechadas nos últimos anos.
Os telejornais locais fornecem um retrato da cidade neste momento de enfrentamento do coronavírus. Os repórteres entrevistam as pessoas nas ruas usando máscara e mostram as aglomerações de idosos em frente às casas lotéricas e agências bancárias para sacar aposentadorias e o Bolsa Família. Os entrevistados demonstram estar preocupados com a gravidade do vírus.
A repórter Débora Carvalho, da TV Ouro Vivo, entrevistou no dia 30 o lavrador José Pereira, na fila de uma casa lotérica. Ele afirmou que a família estava seguindo as recomendações de higiene e que só havia saído de casa para sacar dinheiro e pagar a prestação dos óculos. Outro lavrador, identificado como Edmilson Cabeção, de 76 anos, alegou estar fora de casa para sacar a aposentadoria rural dele e da mulher. Disse que ficou quinze dias isolado.. “Vivo afastado até da minha véia. Nem beijim-beijim tem mais”, afirmou.
A entrevista do prefeito Fred Maia à TV Ouro Vivo:
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