Para os disseminadores de fake news, a imagem mostra pessoas morrendo nas ruas, vítimas de Covid-19. Na realidade, era uma performance, realizada em Frankfurt, em março de 2014, em homenagem às 528 vítimas do campo de concentração nazista de Katzbach na Segunda Guerra Mundial CREDITO: KAI PFAFFENBACH_REUTERS
Caçadores de mentiras
Comer alho cru? Beber álcool puro? Aviões chineses aspergindo o vírus? Eis o incansável trabalho dos checadores na pandemia
Consuelo Dieguez | Edição 165, Junho 2020
Por volta das oito da manhã, a jornalista Cristina Tardáguila acompanhava, ainda na cama, as notícias que pipocavam em seu celular sobre a evolução da pandemia no mundo, quando uma informação do Washington Post arrancou-a do repouso. Era sexta-feira, 17 de abril. O jornal norte-americano informava que a China acabara de recalcular o número de mortos pela Covid-19 na cidade de Wuhan. Em vez das 2 579 vítimas fatais informadas inicialmente, o país admitia, agora, que as mortes chegavam a 3 869. Tardáguila saltou da cama e imediatamente passou a compartilhar os novos números com quase duas centenas de checadores de notícias, todos associados à Rede Internacional de Verificação de Fatos (IFCN, na sigla em inglês), que congrega 88 organizações de checagem em 47 países.
A revisão dos dados de mortes na China, que Tardáguila passou a compartilhar freneticamente naquela manhã, era de importância crucial para os checadores. É graças ao trabalho deles que centenas, milhares de notícias falsas, erradas, manipuladas ou incompletas são diariamente denunciadas e, eventualmente, bloqueadas para que não se disseminem pela internet, em plataformas como Facebook, Twitter, Google, YouTube, WhatsApp e Instagram. Desde que o novo vírus surgido na China se espalhou pelo mundo, uma tempestade de fake news se abateu sobre as redes sociais, impondo aos checadores o desafio inédito de verificar informações a respeito de uma doença desconhecida. A maior dificuldade era, e ainda é, a falta de uma base robusta de dados científicos à qual os checadores possam recorrer para desmentir falsidades.
Havia algumas certezas. Primeiro: a letalidade do novo vírus não era desprezível e atingia, principalmente, pessoas mais velhas, especialmente homens, e com doenças preexistentes. Segundo: o vírus atacava os pulmões, provocando uma pneumonia agressiva, acompanhada de tosse seca, febre e dor no corpo. Por fim, sabia-se que o vírus se propagava de forma vertiginosa. Com base nessas primeiras informações fornecidas por médicos e cientistas chineses, os checadores vinham fazendo seu trabalho. Então, quatro meses depois que esses dados vieram a público, a China revisou em 50% o número de mortos em Wuhan, incluindo os infectados que não foram tratados em hospitais e morreram em casa. De certo modo, a atualização alterava a forma como a doença vinha sendo pesquisada. “Como é possível recalcular uma base de dados em 50%?”, disse Tardáguila, visivelmente preocupada, durante uma conversa por Skype, horas depois de o mundo ter tomado conhecimento dos novos números.
Tardáguila tem 40 anos, é brasileira, mora em São Petersburgo, na Flórida, e ocupa o cargo de diretora-adjunta da IFCN desde o ano passado. Seu trabalho consiste em coordenar e compartilhar as checagens feitas pelos associados da rede, e qualquer imprecisão lhe causa arrepios. “A base de dados inicial da doença foi toda montada em cima das informações passadas pela China. E se os mais de mil mortos detectados tardiamente tiverem características completamente distintas das verificadas no primeiro grupo? Se, em vez de pessoas mais velhas, homens e pessoas com doenças preexistentes, as vítimas preferenciais do vírus forem jovens, crianças e mulheres saudáveis? E se o número de mortos na China for muito maior do que o informado até agora?” Exasperada, ela concluiu: “Entendeu como isso altera a compreensão do vírus?”
Com essa inquietação em mente, Tardáguila enviou uma mensagem aos colegas checadores sugerindo que, a partir daquele momento, todas as checagens colocadas no banco de dados da IFCN viessem acompanhadas de um alerta de que a informação valia para a data em que estava sendo publicada, podendo ser alterada conforme a doença evoluísse. “Depois da revisão dos dados chineses, muitas das nossas checagens terão que ser refeitas”, disse. “Não poderemos continuar cravando como corretas as informações de que a doença ataca especialmente pessoas acima de 60 anos e pouco saudáveis.”
Bases de dados confiáveis são a principal ferramenta de trabalho de correção. É a elas que os checadores recorrem para saber, por exemplo, se os políticos falam a verdade sobre resultados de suas administrações, se são corretas as citações de agentes públicos ou privados sobre saúde, educação, emprego, inflação, desmatamento, segurança, arte etc. É a base dados que permite dizer se informações médicas e científicas divulgadas por leigos na internet correspondem à realidade, ou se fotos e vídeos foram ou não adulterados. No caso da Covid-19, tudo é novo. “Existe uma imaturidade de dados. Tudo o que sabemos tem quatro meses de vida”, disse Tardáguila. “Desses, um mês é só com dados da China, que precisamos tratar com um pé atrás porque o governo chinês controla a informação.”
A jornalista taiwanesa Summer Chen tem 45 anos, é uma mulher miúda, de cabelos picotados e olhos vivos. Ela é editora-chefe da Taiwan FactCheck Center, a organização local de checagem de notícias. No começo deste ano, durante um almoço em família, Chen percebeu o nível de desinformação que se estava produzindo em seu país. Na ocasião, seu irmão lhe pediu, em tom de súplica, informações corretas sobre a doença. Chen estava trabalhando com outros cinco checadores da Taiwan Fact-Check para evitar a disseminação de notícias falsas. Seu grupo estava em contato permanente com o órgão de controle de doenças de Taiwan, onde buscava informações seguras sobre o vírus e formas de prevenir a infecção. Mas era preciso fazer mais para acalmar a população, assustada com os boatos e as informações contraditórias que vinham da China.
O medo começara a se alastrar em 31 de dezembro, depois que o órgão de controle de doenças de Taiwan informou que o oftalmologista chinês Li Wenliang postara nas redes sociais uma nova informação: um vírus, que provocava sintomas semelhantes aos da síndrome respiratória aguda grave (Sars), já tinha feito várias vítimas na China. Três dias depois de divulgar o alerta, o médico foi levado à delegacia onde o obrigaram a assinar um documento confessando ter espalhado notícias falsas na internet. Outras sete pessoas também foram detidas, mas não se sabe o que houve com elas – se assinaram o documento e foram liberadas, como aconteceu com o médico, ou se continuam detidas. No dia 23 de janeiro, no entanto, depois de anunciar vários casos de uma “pneumonia misteriosa”, o governo chinês impôs um severo confinamento em Wuhan e outras cidades na província de Hubei, o que era uma confirmação patente do alerta do médico. (Li Wenliang morreu de Covid-19 no dia 7 de fevereiro. Dias antes, o Tribunal Supremo da China criticara a polícia pelas acusações infundadas que fez ao médico. Até o fechamento desta edição, o paradeiro das outras sete pessoas detidas continuava desconhecido. Tardáguila contou que ela própria ligou várias vezes para a polícia de Wuhan. “Mas nunca fui atendida”, disse).
Naquela mesma quinta-feira em que Wuhan foi fechada, Chen ligou para Tardáguila, na Flórida. Queria alertar que a epidemia parecia ser “um assunto muito grave” e perguntou se a IFCN pretendia fazer a verificação conjunta do vírus que estava causando vítimas fatais na China. Àquela altura, Taiwan, um arquipélago situado a 180 km da China continental, com quem tem um histórico de conflitos, vinha sendo inundada com informações desencontradas sobre a misteriosa doença. “Alguma coisa muita estranha está acontecendo aqui e acho que deveríamos verificar em conjunto”, ela propôs.
Tardáguila entrou em contato com as demais organizações de checagem para consultá-las sobre o assunto. Em questão de horas, em que pese os 88 associados da IFCN operarem em dezesseis fusos horários diferentes e em 37 línguas, todos informaram que estavam começando a checar a nova doença e concordaram em montar a parceria. Criou-se então a CoronaVirusFacts Alliance, uma plataforma em que todas as informações verificadas em cada país são traduzidas e colocadas à disposição das demais organizações.
Entrevistada via Skype, Summer Chen contou que de janeiro a abril sua organização havia checado 130 postagens sobre a Covid-19, principalmente do Facebook. Dessas, 90% eram falsas. De algumas, como a que diz que aspirar óleo de gergelim matava o vírus, ela consegue achar graça. De outras, tem pavor. Uma delas veiculou que a Covid-19 estava fora de controle em Taiwan e que o país estava maquiando o número de mortos – mentira que espalhou pânico entre a população, no início de fevereiro, quando o país tinha tido somente uma morte. “Essa informação foi compartilhada milhares de vezes nas redes, vinda de fontes diferentes, todas, obviamente, falsas”, contou Chen. A Taiwan FactCheck identificou que muitas fake news eram espalhadas por robôs da China porque os textos vinham escritos na grafia do chinês continental, e não no de Taiwan, e se propagavam nas redes sociais no mesmo padrão das informações que, no ano passado, atacavam as manifestações em Hong Kong, que reuniram milhares de pessoas em protesto contra o governo. Algumas postagens sugeriam que Taiwan deveria se reunificar com a China continental para ter mais condições de se proteger da epidemia.
Assim que foi criada, a CoronaVirusFacts Alliance recebeu a primeira fake news, capturada por checadores da Bélgica. A postagem no Facebook, escrita em holandês, dizia que o novo coronavírus se espalhava por meio das redes 5G de telefonia móvel. Consultados, cientistas garantiram que aquilo era uma asneira e a postagem ganhou o carimbo de fake. No dia 30 de janeiro, a mesma desinformação circulava em um site alemão, e foi desmentida pela Correctiv, agência de checagem da Alemanha que recorreu aos dados já armazenados no CoronaVirusFacts. No dia seguinte, a mentira chegou à Croácia. Duas semanas depois, circulava na Lituânia pelo Facebook. Em meados de abril, apesar dos carimbos de fake que os checadores lhe atribuíram em cada país por onde circulou, a mentira desembarcou no Reino Unido, onde quase provocou um desastre. Apavorados, ingleses de várias localidades incendiaram torres de sinal de telefone para evitar a propagação do vírus. As companhias telefônicas tiveram que fazer um apelo à população para que não destruísse as torres e cabos de fibra óptica, pois o país ficaria sem conexão – justamente em um momento em que a comunicação online é vital, dado o isolamento social. “A desinformação tem efeitos insanos. As pessoas não têm ideia dos estragos que podem provocar quando disseminam notícias falsas”, disse Tardáguila.
Em outra ocasião, ela enviou um informe aos associados da IFCN com uma constatação preocupante. Checadores de onze países – México, Venezuela, Chile, Argentina, Bolívia, Equador, Guatemala, Colômbia, Espanha e França, além do Brasil – relatavam que uma mentira começava a se disseminar: a de que as máscaras contra a Covid-19 eram, na verdade, “perigosíssimas”, pois diziam que seu uso prolongado causava hipóxia, ou seja, redução de oxigênio no sangue. Quem deu o alerta inicial foram os checadores da Animal Politico, agência que atua no México. Logo, outros checadores constataram que a mesma mentira já circulava no Chile, no Brasil e na França e, poucos dias depois, chegava às redes monitoradas pela ColombiaCheck, na Colômbia. O falso alerta contra as máscaras apareceu em páginas da web e no Facebook em inglês, espanhol e português.
A checagem tal como se conhece hoje teve origem nos Estados Unidos na década de 1990, antes do surgimento das redes sociais. O primeiro a fazer o trabalho foi o jornalista Brooks Jackson, que trabalhava na CNN, em Washington. Na época, o republicano George Bush, pai, concorria à reeleição contra o democrata Bill Clinton. Jackson montou, dentro da CNN, uma unidade de checagem das falas dos candidatos. Batizou a unidade de Ad Police, algo como “polícia da propaganda”. A unidade recorria às bases de dados do país para verificar a veracidade do que as peças de propaganda eleitoral dos candidatos diziam. O projeto foi um sucesso. Jackson deixou a CNN para fundar a FactCheck.org, que está em atividade até hoje.
Quando as redes sociais começaram a tomar conta da internet, a checagem ganhou uma dimensão maior. Em 2007, o democrata Barack Obama se preparava para concorrer à Casa Branca valendo-se de uma rede social recém-criada, o Twitter. O jornal Tampa Bay Times (que na época se chamava St Petersburg Times), o maior diário da Flórida, percebeu o movimento e, inspirado no exemplo de Jackson na CNN, criou um site só para checagem, o PolitiFact, que deveria funcionar apenas durante a campanha presidencial. O resultado foi excelente. O site e a equipe do idealizador do projeto, o jornalista Bill Adair, ganharam o Pulitzer, o prêmio mais respeitado dos Estados Unidos na área de jornalismo. O PolitiFact existe até hoje, embora tenha ganhado vida independente do jornal de Tampa em 2018.
O sucesso da experiência norte-americana se espalhou pelo mundo. Logo surgiram outras entidades de checagem, como Pagella Politica, na Itália, Full Fact, no Reino Unido, Les Décodeurs, na França, e Chequeado, na Argentina. A primeira organização especializada em checagem no Brasil, a Agência Lupa, surgiu em 2015, fundada pela própria Cristina Tardáguila.[1] Hoje, além da Lupa, há três agências atuando no Brasil associadas à IFCN: Aos Fatos, que é independente, Estadão Verifica, vinculada ao jornal O Estado de S. Paulo, e a AFP Checamos, criada pela agência de notícias France-Presse. Com a inundação de notícias falsas nas redes, o setor de checagem só cresce. Em 2014, as organizações promoveram seu primeiro encontro em Londres, batizado de Global Fact, durante o qual criaram a IFCN, que fica abrigada no Instituto Poynter, um think tank em Tampa. Naquele encontro inaugural, havia pouco mais de 50 participantes. Na reunião deste ano, cancelada por causa da pandemia, havia 580 inscritos.
Para ganhar o selo de qualidade da IFCN, as agências de checagem precisam adotar seu código de princípios. Os checadores, por exemplo, não podem usar informações off the record, em que a fonte não é identificada. Um outro princípio diz que toda a checagem precisa estar atrelada a uma base de dados confiável e seus textos devem incluir os links consultados, de forma que o consumidor da notícia possa conferir os caminhos percorridos pelos checadores. Com a Covid-19, o trabalho ficou complicado porque a base de dados das instituições científicas, das universidades e até da Organização Mundial da Saúde ainda está em formação. Sobre o novo coronavírus, a OMS reúne 115 estudos. Sobre a Sars, outro vírus letal, são 549.
Com seu trabalho global, a CoronaVirusFacts Alliance identificou pelo menos sete ondas de desinformação, que surgem, crescem e, com sorte, vão perdendo força – um movimento que pode ser acompanhado com precisão nas redes sociais, os veículos preferenciais das fake news. Há ondas de mentiras destinadas apenas a confundir, outras que escondem objetivos financeiros, mas as mais vigorosas são motivadas por interesses políticos – de líderes, partidos, grupos ou Estados. A primeiríssima leva de mentiras tratou da própria origem do vírus, e logo se transformou numa campanha sobre a China, contra e a favor.
Para os cientistas, o mais provável é que o novo coronavírus tenha migrado – o termo técnico é “transbordado” – do morcego para o homem em um mercado de frutos do mar em Wuhan. No mundo das fake news, no entanto, o vírus foi aspergido por aviões chineses para espalhar a contaminação, um boato que circulou no Brasil. Ou foi espalhado em produtos chineses que, antes de embalados, eram propositalmente inoculados com o vírus por meio do espirro de trabalhadores contaminados – mentira que ganhou força nos Estados Unidos. Também surgiu a teoria conspiratória segundo a qual os chineses espalharam o vírus para desvalorizar as ações de empresas estratégicas de vários países e comprá-las a preço de banana, num projeto de dominação econômica mundial. Circularam vídeos, todos falsos, nos quais grupos de chineses, fingindo-se de turistas, borrifavam o vírus nos botões dos elevadores em países do Ocidente. Ainda que essas mentiras sejam bizarras, os checadores têm que cumprir todo o protocolo – ouvir especialistas, consultar base de dados, copiar links – antes de carimbá-las como fake news.
Na tentativa de desviar-se das críticas sobre sua gestão desastrosa no controle da pandemia, tendo inclusive ignorado relatórios oficiais que alertavam ainda em janeiro para a chegada do vírus aos Estados Unidos, o presidente Donald Trump mirou contra a China. Empenhou-se, sem sucesso, em apelidar o novo coronavírus de “vírus chinês” ou “vírus de Wuhan”, para associá-lo ao governo de Pequim. Em seu esforço mais recente, vem pressionando altos funcionários das agências de espionagem para que encontrem alguma prova de que o vírus saiu de um laboratório do governo em Wuhan. Já fez até discurso dizendo que a China não podia “ter deixado isso acontecer”, referindo-se à pandemia, e chegou a ameaçar romper relações com o país.
Com apoio da comunidade científica mundial, o governo da China nega que o vírus tenha sido produzido em laboratório, mas entrou no jogo das acusações. Nas redes sociais, passou a circular a informação, divulgada pelo Ministério das Relações Exteriores chinês, de que o vírus nasceu nos Estados Unidos e foi levado para Wuhan por soldados norte-americanos durante os Jogos Mundiais Militares realizados na cidade, em outubro do ano passado. A mesma desinformação, postada dez vezes por diferentes fontes, teve 50 milhões de compartilhamentos só em Hong Kong e Taiwan. A politização da doença é um desafio adicional para os checadores. “É um momento complicado. A um só tempo, temos que verificar uma pandemia provocada por um vírus desconhecido, uma crise econômica de dimensões históricas e ainda uma guerra de versões entre as grandes potências”, disse Tardáguila.
A máquina de propaganda chinesa divulgou que o mundo estava grato ao país pela distribuição de equipamentos médicos e respiradores para diversas nações do Ocidente. Na verdade, os fabricantes chineses aproveitaram a pandemia para aumentar os preços e fazer leilão dos equipamentos. O porta-voz do Ministério das Relações Exteriores do governo chinês, Hua Chunying, chegou a compartilhar no Twitter um vídeo em que os moradores de Roma apareciam batendo palmas nas varandas e janelas de seus apartamentos, enquanto ao fundo ouvia-se o hino nacional chinês. A legenda do vídeo distribuído pelo porta-voz dizia: “Em meio ao hino chinês, em Roma, os italianos gritam Grazie, Cina!” A imagem é real, mas não havia nenhum grito de “Obrigado, China”, e os aplausos eram dirigidos aos profissionais de saúde do país, não aos chineses. Trabalhando em conjunto, a Taiwan FactCheck e a Pagella Politica carimbaram o vídeo como “falso”.
Por causa da censura, a China é o pesadelo dos checadores. Quando o país diz que venceu o vírus, é impossível conferir se isso é verdade porque os dados não são públicos. “Nunca saberemos a situação real da China”, disse a taiwanesa Summer Chen. Ela lembra que, há pouco, uma advogada chinesa foi presa por ter fotografado uma fileira de urnas com cinzas de pessoas cremadas. “Por quê? O que eles querem esconder?”, questionou. The Citzen Lab, um laboratório baseado na Escola Munk de Assuntos Globais e Políticas Públicas da Universidade de Toronto, no Canadá, publicou recentemente uma pesquisa sobre o comportamento das redes sociais chinesas em tempos de coronavírus. A pesquisa, intitulada Contágio Censurado: Como a Informação sobre o Coronavírus É Gerenciada nas Mídias Sociais Chinesas, mostra que, no começo, era impossível acessar no Weibo, o popularíssimo Facebook chinês, textos que contivessem palavras como “Covid”, “vírus” e “pneumonia” – proibição que o governo chinês cancelou em fevereiro. Já o WeChat, equivalente chinês ao WhatsApp, bloqueia os textos que tragam palavras relacionadas à doença.
Quando começaram a acontecer as primeiras mortes por Covid-19, os checadores enfrentaram uma onda de vídeos falsos nas plataformas asiáticas, o Weibo e o TikTok chineses e o Kakao Talk, da Coreia do Sul. Os vídeos traziam imagens de pessoas morrendo nas ruas, em aeroportos e estações de trens. Na verdade, eram montagens de cenas em que pessoas caíam bêbadas, desmaiavam ou tinham um ataque epilético. No Ocidente, sobretudo na Itália, as imagens falsas miraram as celebridades. No dia 2 de março, a Pagella Politica, da Itália, desmentiu que o papa Francisco estivesse contaminado, notícia falsa que vinha acompanhada de fotos em que o pontífice assoava o nariz com um lenço e abraçava fiéis, sugerindo que, além de doente, estava transmitindo o vírus para o seu rebanho. Giovanni Zagni, diretor da Pagella Politica, disse que o volume de fake news é tão grande que a organização criou uma nova plataforma, o site Facta, apenas para checar as notícias relacionadas à pandemia. Em Portugal, o Observador, parceiro da rede internacional de checagem, esclareceu que o jogador Cristiano Ronaldo não estava oferecendo seus resorts para tratamento gratuito de infectados.
Os checadores não conseguiram, até hoje, derrotar a onda de desinformação sobre métodos de prevenção e cura da Covid-19. São, quase sempre, receitas caseiras, que variam conforme a cultura de cada país. No entanto, segundo os checadores, há uma peculiaridade nesse caso: em geral, as pessoas que divulgam essas receitas o fazem com a boa intenção de ajudar os outros. Em Taiwan, além da inalação de óleo de gergelim, divulgou-se que era possível evitar a doença com a ingestão de chá quente, que mataria o novo coronavírus inalado até três dias antes. Na Índia, noticiou-se que estudos sugeriam a ingestão de urina de vaca. Na Turquia, um jornal eletrônico publicou que a OMS indicava licor de raki, a bebida nacional dos turcos, e propunha, inclusive, sua fabricação em larga escala. Mas as receitas campeãs no mundo continuam sendo a vitamina C, o alho cru, o vinho, a água quente com limão e o gargarejo com água e sal – todas absolutamente inócuas e já carimbadas como falsas pelas redes de checagem. A crença no poder curativo do alho é tão grande que o governo da República Tcheca precisou acrescentar às orientações oficiais de saúde que “comer alho não dá proteção”.
O jornalista Gilberto Scofield Junior, da Agência Lupa, tem uma explicação para a onda de desinformação sobre tratamentos caseiros. “É muito mais fácil para o cidadão comum acreditar em informações repassadas por parentes ou amigos próximos do que no que dizem cientistas e jornalistas que lhes são desconhecidos”, disse. A experiência da Lupa mostra que mais de 60% dos conteúdos que circulam nas redes sociais no Brasil são produzidos e compartilhados por grupos ideológicos ou mídias partidárias, que fazem, inclusive, uso de robôs. O restante é divulgado por analfabetos midiáticos e digitais – como são chamados aqueles que pouco ou nada entendem de mídia e redes sociais, e compartilham conteúdo por ingenuidade ou desconhecimento “Essas pessoas tendem a consumir a informação muito mais pela emoção do que pela razão”, diz Scofield, que, no ano passado, em parceria com outros autores, publicou o livro Pós-Verdade e Fake News: Reflexões sobre a Guerra de Narrativas. Summer Chen, de Taiwan, concorda: “As receitas caseiras são baratas e simples de fazer. Levam vantagem sobre a fria e hermética linguagem científica.”
Para traduzir o idioma científico para o público, a Lupa decidiu criar um selo especial, o Lupa na Ciência. É uma seção onde Jaqueline Sordi, uma bióloga formada em jornalismo, descomplica para os leigos o que a ciência diz sobre o vírus. Ela monitora os bancos de dados de universidades e de institutos de pesquisa para informar sobre medicamentos, vacinas, prevenção, e amarra as informações em textos de fácil compreensão.
Pior do que receitas inócuas são as nocivas. Tardáguila se lembra de um episódio dramático para os checadores. Com tanta notícia falsa sobre o vírus circulando pelas redes – só no Brasil são cerca de 100 mil por dia – os checadores precisam decidir quais delas serão verificadas primeiro. Normalmente, eles recorrem a uma ferramenta chamada CrowndTangle, que permite visualizar em tempo real como uma postagem se comporta nas redes, e escolhem as notícias com mais compartilhamentos. Com base nesse critério, os checadores não deram prioridade a uma notícia que circulava entre os iranianos – a de que a melhor forma de matar o vírus era beber álcool puro. Os checadores consideraram a notícia esdrúxula demais, e priorizaram outras desinformações. Pouco depois veio a notícia, essa real, de que 44 pessoas no Irã tinham morrido pela ingestão de álcool puro. “Até hoje me pergunto se, caso tivéssemos feito a checagem antes, poderíamos ter evitado essas mortes”, disse Tardáguila.
Na Espanha, a notícia de que a ingestão de um alvejante à base de dióxido de cloro era um bom antídoto contra o coronavírus resultou em uma série de graves intoxicações. Clara Jiménez Cruz, cofundadora e diretora da Maldita.es, organização espanhola de checagem, disse que não ficou surpresa com esses casos. “Uma das coisas que descobrimos quando começamos a fazer a Maldita é que nós, jornalistas, achamos que as pessoas têm a mesma formação que a nossa, que estão todo o tempo acompanhando as notícias e têm o nosso nível intelectual e político.” Ela fez uma pausa e continuou. “Não se trata de lidar com as pessoas como se fossem crianças, mas é preciso entender que tem gente que trabalha dez horas por dia, nunca abriu um jornal na vida, deixou a escola aos 15 anos e, inevitavelmente, precisa de alguém que lhes dê respostas. O jornalismo tradicional está tão focado no dia a dia, que não se dá conta de que é preciso também se dedicar a essas pessoas de nível de instrução mais baixo, que são as maiores vítimas da desinformação.” Do início de março a meados de abril, os 24 jornalistas da Maldita.es detectaram 470 notícias falsas e escreveram 350 artigos com perguntas e respostas sobre o vírus.
Entre as diversas curas contra a Covid-19, a que deu mais trabalho aos checadores no mundo foi a hidroxicloroquina, um antiviral indicado no tratamento de malária e lúpus. O primeiro garoto-propaganda do remédio foi o presidente Donald Trump, logo imitado pelo presidente Jair Bolsonaro e outros poucos líderes, como o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi. A Fox News, canal a cabo que funciona como porta-voz informal de Trump, fez uma campanha a favor da hidroxicloroquina. Uma reportagem do New York Times mostrou que, num período de quatro semanas, a emissora mencionou o remédio mais de cem vezes. Mas, à medida que foi ficando evidente que o remédio não era a panaceia da propaganda e Trump passou a silenciar sobre o medicamento, a Fox também abandonou a campanha e, nas semanas seguintes, não tocou no assunto mais que uma dúzia de vezes. Os checadores, no entanto, não comemoram vitória. O presidente Jair Bolsonaro, ignorando todas as evidências científicas contrárias, continua sua militância pró-cloroquina, o que levou à saída do ministro da Saúde, Nelson Teich, que ocupava o cargo havia menos de um mês.
Trump chegou ao absurdo de sugerir que os norte-americanos injetassem desinfetante para combater a Covid-19. Apesar disso, Bolsonaro é um dos líderes mundiais que mais ocupa os checadores. Não se conhece outro governante que, como o brasileiro, tenha tido posts excluídos de três redes sociais por divulgar mentiras sobre a pandemia. O que dá mais trabalho aos checadores brasileiros, porém, tem sido a atitude de Bolsonaro de pregar o desrespeito ao isolamento social, contradizer dados científicos e estatísticos e minimizar as consequências da nova doença. “Essas informações desencontradas criam uma enorme confusão nas redes e na cabeça das pessoas”, disse Scofield, da Lupa. O comportamento negacionista do presidente estimula a enxurrada de falsidades. Uma das mentiras de maior repercussão dizia que o Brasil estava enterrando caixões vazios apenas para forjar um número maior de mortes. “Estamos vivendo uma pandemia junto com uma ‘desinfodemia’, que é uma pandemia de desinformação”, disse Scofield.
O pesquisador Rodrigo Fracalossi de Moraes, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), fez um estudo no qual dedica um capítulo à análise dos efeitos da desinformação sobre a saúde mental da população. Sob o título Prevenindo Conflitos Sociais Violentos em Tempos de Pandemia, ele diz que as informações imprecisas ou conflitantes sobre a pandemia, bem como a reação do governo, “causam confusão e reduzem o impacto das políticas de enfrentamento”. Moraes, que compilou também estudos de outros países sobre o tema, afirma que os boatos causam uma cacofonia de informações conflitantes que confundem e amedrontam a população. Além disso, “informações contraditórias dos governos diminuem a confiança da população nos órgãos públicos, aumentam o estresse e a probabilidade de que as pessoas acreditem em boatos”, gerando-se, assim, um círculo vicioso.
Na disputa política, a profusão de notícias falsas é alarmante, e não apenas no Brasil. Na Espanha, disseminou-se a foto de um ministro visitando seu pai no hospital sem máscara. Mas a foto era de 2016. Outro político foi acusado de levar um respirador para sua própria casa – nova mentira. Na França, oposicionistas divulgaram nas redes uma foto em que o presidente Emmanuel Macron e sua mulher Brigitte passeavam de jet ski durante o confinamento. A imagem era de 2018. (Já a foto de Bolsonaro passeando de jet ski no Lago Paranoá, em Brasília, realmente era do começo de maio, durante o confinamento.) Nos Estados Unidos, assim que Bill Gates, o fundador da Microsoft, começou a criticar a abordagem de Trump sobre a pandemia, a extrema direita entrou em ação. Nas redes sociais, surgiu uma onda de posts acusando Gates de ter produzido e espalhado o novo coronavírus.
O discurso político que vem recheado de ódio também tem sido fonte perturbadora de fake news, segundo constatam os checadores. Os negros e os muçulmanos foram alvos, mas a onda começou atingindo os próprios chineses. Os checadores capturaram notícias segundo as quais cientistas haviam sugerido que os chineses infectados, bem como seus bichos de estimação, fossem mortos para controlar a pandemia. O medo de que os chineses estavam espalhando o vírus, de propósito ou não, chegou à intelectualizada cidade inglesa de Oxford, onde passageiros de um ônibus deixaram o veículo às pressas depois do embarque de um grupo de asiáticos.
As redes em vários países propagaram informações de que os muçulmanos estavam imunes ao vírus. De uma hora para outra, vídeos de pessoas se convertendo ao Islã começaram a ser compartilhados aos milhares. Eram todos antigos e fora de contexto, como constatou a aliança da IFCN. Outras teorias supremacistas asseguravam que os negros estavam protegidos contra a Covid-19, pois tinham um sangue “mais forte”. “Este é um fenômeno que mereceria um estudo separado”, disse Tardáguila. “Ainda não conseguimos detectar se essas notícias partiram de muçulmanos e supremacistas negros querendo se atribuir alguma superioridade, ou se partiram de supremacistas brancos e islamofóbicos que pretendiam expor essas populações ao vírus.”
Embora não haja qualquer prova de que as teses de supremacia levaram ao contágio de membros dessas comunidades, o fato é que, em abril, pesquisas nos Estados Unidos detectaram que os negros, em alguns estados norte-americanos, estavam morrendo numa proporção muito maior do que os brancos. Os números poderiam estar associados ao menor acesso da população negra aos serviços de saúde. Preocupada com esses dados, a cantora Beyoncé, durante o Festival One World, que reuniu artistas de todo o mundo em um show virtual em favor da OMS, achou prudente pedir aos negros que se protegessem.
No dia 14 de maio, alguns dos principais jornais do mundo, incluindo os do Brasil, publicaram um manifesto de médicos, enfermeiros e especialistas em saúde que trazia uma denúncia e um apelo. Eles denunciavam que a desinformação estava “viralizando nas redes sociais e ameaçando vidas ao redor do mundo”, diziam que os esforços das redes sociais para barrar as fake news “estão longe de serem o bastante” e apelavam “aos gigantes da tecnologia para que tomem imediatamente uma medida em conjunto para acabar com o fluxo de desinformação sobre saúde e a crise de saúde pública que este fluxo causou”.
O Facebook, desde que foi acusado de disseminar mentiras que favoreceram a eleição de Trump em 2016, vem tentando combater as fake news. No mesmo ano, criou o Third Party Fact-Checking Program, que reduz em até 80% o alcance da distribuição de postagens falsas. Ou seja: a probabilidade de uma mensagem com conteúdo falso chegar ao usuário cai para cerca de 20% – segundo informa o Facebook, que, no entanto, não abre os seus dados publicamente. Agora, com a pandemia, a plataforma vem ampliando sua parceria com as organizações de checagem para ajudar a filtrar as fake news sobre o novo coronavírus. Ao tentar acessar uma informação classificada como falsa, o usuário é alertado sobre o conteúdo e avisado de que não deve compartilhá-lo. No fim de abril, o Facebook informou que, diante de 40 milhões de mensagens falsas ou com algum tipo de incorreção, 95% dos usuários deixaram de compartilhá-las. Outra vez: são dados fornecidos pelo próprio Facebook, cuja falta de transparência tem sido criticada pelos checadores.
Google, Twitter, WhatsApp e Instagram também resolveram mudar de comportamento durante a pandemia. “Parece que, em relação à questão da saúde, as plataformas estão unificando o discurso”, disse Tardáguila. O Twitter decidiu apagar tuítes que negam a existência do novo coronavírus ou que podem colocar a população em risco – uma medida que acabou atingindo o presidente Bolsonaro, impedido de postar vídeos em que abraça eleitores na rua durante o isolamento social. O WhatsApp, por sua vez, prometeu reduzir o alcance de uma mensagem. Agora, aquelas que viralizam nas redes só poderão ser enviadas para um contato, ou seja, uma pessoa ou um grupo de cada vez – os grupos são limitados a 256 participantes. Antes, uma mensagem podia chegar a cinco grupos de uma única vez, atingindo até 1 280 usuários.
Erguer uma barreira contra fake news nas redes sociais é uma boa notícia, mas os checadores brasileiros têm outra preocupação. Sob o argumento de conter as mentiras nas redes sociais, principalmente as relacionadas ao coronavírus, alguns estados, como o Ceará, a Paraíba e o Acre, aprovaram leis para controlar por meio de multa a disseminação de notícias falsas sobre epidemias, endemias e pandemias. No Congresso, há projetos na mesma linha à espera de votação. Tardáguila vê com apreensão essas iniciativas. Seu medo é que, ainda que motivados pela boa intenção de conter a desinformação, os políticos acabem criando um problema maior. “Quem vai definir o que é ou não uma notícia falsa?”, ela pergunta. Ninguém encontrou ainda um modelo ideal, mas uma coisa é certa: “Os governos é que não podem ser os árbitros disso”, ela diz. Para um país que já viveu sob censura, quando só se podia publicar o que os militares quisessem, é um alerta útil.
[1] Entre 2015 e 2018, a Agência Lupa contou com apoio financeiro da Editora Alvinegra, que publica a piauí. Desde então, não há qualquer vínculo entre ambas, embora a página da Lupa continue sendo publicada no ambiente digital da revista.
Leia Mais