Enquanto a placa do Terceiro Distrito do Departamento de Polícia ardia em chamas, os âncoras da tevê, quase todos brancos, gaguejavam à procura de palavras para descrever a cena CREDITO: STEPHEN MATUREN_GETTY IMAGES
O fogo das contradições
O que descobri ao ver minha cidade entrar em erupção com os protestos antirracistas
Kyle Younker | Edição 166, Julho 2020
Tradução de Sergio Flaksman
De Minneapolis
Uma das lembranças mais nítidas que conservo dos tempos em que era obrigado a frequentar a igreja na minha infância, em Minneapolis, é do dia em que recebemos a visita de um pastor negro vindo da área Norte da cidade. A congregação da minha igreja era quase toda branca, composta de luteranos de origem alemã e escandinava. Lembro de dedicar, aos 12 anos, preciosas manhãs de fim de semana na atividade que chamávamos de “lambe-lambe de envelopes”. Consistia em dobrar panfletos da igreja, enfiá-los em envelopes e aí, sim, lamber a goma da borda para fechá-los, até o ponto em que começávamos a sentir os primeiros sinais de intoxicação. Era o tipo de ritual que bem representava o tédio profundo que eu associava a quase todo domingo.
Os pastores visitantes eram sempre uma novidade bem-vinda. Naquela manhã de 1992, o pastor negro subiu ao púlpito de queixo erguido, vestindo um traje multicolorido. Seu sermão começou em tom comedido, mas aos poucos sua voz foi crescendo e emitindo exortações num tom emocional. A congregação não estava pronta para ouvir aquilo. Ninguém respondeu da primeira vez que ele pediu um “Amém”. Nova tentativa: outra vez silêncio. Mas nem assim ele parou de pedir a participação da plateia, e a certa altura alguém finalmente respondeu “Amém!”. A partir de então o ar foi sendo cortado por “améns” esparsos, mas o impulso não parou de crescer – e dali a pouco a congregação entrou num comedido frenesi, exclamando “Amém!” e “Aleluia!”. Procurei com os olhos meus colegas da escola dominical. Parecia inacreditável que estivéssemos gritando na igreja. Por trás da animação, porém, era possível detectar boa dose de incerteza. Não sabíamos se o tom estava correto, e ninguém estava seguro de ter entendido bem o que o pastor tentava despertar em nós.
A Zona Norte de Minneapolis, de onde vinha o pastor, era uma área sob intensa pressão econômica desde meados do século XX – uma das regiões mais tradicionais da comunidade negra. Ela se estende a noroeste do Centro da cidade, ao longo da margem ocidental do Rio Mississippi, e ocupa boa porção da superfície total da cidade, a maior do estado de Minnesota. Nasci e cresci nos subúrbios de Minneapolis, e estudei na universidade local. Antes de voltar para cá alguns anos atrás, decidido a me instalar aqui com minha mulher argentina, vivi em Buenos Aires, em Mérida (Venezuela) e passei algum tempo na Bolívia. Morei também vários anos em Nova York. No entanto, até pouco tempo atrás, nunca tinha posto meus pés na Zona Norte de Minneapolis.
Depois que o vídeo de George Floyd sendo assassinado pelo joelho de um policial branco provocou protestos generalizados, lembrei a meu pai, num dos nossos passeios de bicicleta nos fins de tarde, que desde criança éramos orientados a nunca ir àquela parte da cidade. A recomendação vinha tanto de professores quanto de pais ou treinadores esportivos. Por trabalhar como paramédico, meu pai percorreu muitas vezes as ruas da Zona Norte nos anos 1990, quando as taxas crescentes de homicídio valeram à cidade o apelido de “Homicidópolis”. As comunidades negras da cidade, submetidas a décadas de abandono, sofriam os efeitos combinados de uma violência crescente entre seus próprios membros e a resposta brutal da polícia, quase sempre impune. Aquele reverendo, em outras palavras, tinha vindo até nossa igreja para fazer contato conosco num dos momentos mais atrozes de sua comunidade, sendo recebido com um certo desconforto. Meu pai, que trabalhou com os guardas do Departamento de Polícia naqueles anos, comentou, enquanto subíamos pedalando uma rua arborizada: “É verdade. Muitos deles são racistas, e uns são filhos da puta.” Fez uma pausa, e acrescentou: “Eu também, às vezes, fui um bom filho da puta.”
Minneapolis parece, à primeira vista, um cenário improvável para a centelha das maiores manifestações antirracistas das últimas décadas no mundo. Na imaginação popular, a cidade, e de modo mais geral o estado de Minnesota, figura como um posto avançado da mentalidade liberal numa região muito fria – um lugar, mais ao Norte que Chicago e só um pouco abaixo do Canadá, em que imigrantes alemães vindos do campo se instalaram em terras quase tão planas e férteis quanto as do seu país de origem. O estado é visto como um lugar onde a vida é agradável e razoavelmente barata. Não costuma atrair muita atenção da imprensa: poucos órgãos de alcance nacional têm correspondentes no estado.
Minnesota como um todo tem uma reputação de simpatia (é chamada Minnesota nice) que pode ser vista como uma postura passivo-agressiva ou uma certa desconsideração para com as realidades mais concretas. Entre os nomes mais célebres de Minnesota, estão o de Prince, que nasceu e viveu no estado até a morte, e o de Bob Dylan, que foi embora ainda jovem. Fora do estado, fala-se muito do sotaque local — uma fala meio acaipirada com uma pronúncia muito aberta dos sons de “o”–, usado pelos atores William H. Macy e Frances McDormand no filme Fargo, dirigido pelos irmãos Coen (que também são de Minnesota) e cuja ação se passa em Minneapolis e Brainerd. (A cidade de Fargo fica em Dakota do Norte, o estado vizinho.) Embora forçado, o sotaque usado pelos atores era uma ótima aproximação da prosódia de habitantes brancos do estado.
Essa imagem de Minneapolis – um bastião da tolerância, num estado pacato quase ausente do noticiário – pode ter dado relevo especial ao impacto do assassinato de Floyd. Se um crime tão acintoso pode ser cometido por um policial de Minneapolis, é sinal de que pode ocorrer em qualquer lugar. Ou pode ser que a suposta postura progressista da cidade é que esteja em questão: em todos os Estados Unidos, tantos negros são mortos pela polícia e pelos chamados vigilantes (“combatentes do crime” voluntários e quase sempre armados) que esses crimes não podem ser vistos como um acontecimento local – resultam de injustiças sistêmicas que não respeitam divisas e se sobrepõem a ideologias políticas. O rastilho de pólvora que deu início aos protestos também poderia ter vindo da Geórgia, onde Ahmaud Arbery, jovem de 25 anos, foi fuzilado por dois brancos – pai e filho – enquanto corria pela rua para se exercitar, em fevereiro. Ou do Kentucky, onde, em março, Breonna Taylor, 26 anos e técnica em emergências médicas, foi abatida a tiros pela polícia dentro de casa.
De toda maneira, submetida a um escrutínio mais rigoroso, a imagem benévola associada tanto a Minnesota como a outras áreas semelhantes dos EUA não se sustenta. Minnesota é um criadouro de desigualdades raciais e contrastes sociais. Um estudo do Departamento de Educação do estado mostra que, em todas as faixas etárias, os negros capacitados para a leitura e a matemática básica correspondem à metade dos estudantes brancos. A probabilidade de desemprego dos negros é quase três vezes maior. E nem foi Floyd a primeira vítima notória de abusos policiais no estado. Em 2015, Jamar Clark, negro de 24 anos, foi morto por um policial de Minneapolis durante uma luta corporal. Em julho de 2016, nos arredores de St. Paul, capital do estado, um policial matou Philando Castile depois de mandarem que ele parasse o carro. O incidente foi transmitido ao vivo no Facebook pela namorada de Castile, cuja filha de 4 anos também estava no veículo. Em junho de 2017, o policial em questão foi inocentado da acusação de homicídio em segundo grau.
George Perry Floyd Jr. nasceu na Carolina do Norte e se mudou com a mãe para Houston, no Texas, ainda muito jovem. Mais velho de cinco irmãos, foi criado nas Cuney Homes, conjunto habitacional na área Centro-Sul de Houston. Sua mãe, Larcenia Floyd, abrigava vários dos amigos do filho em seu apartamento. Com quase 2 metros de altura e dotado de talento atlético, Floyd se destacou nos esportes durante os estudos secundários antes de ir jogar basquete pelo South Florida Community College. Mais tarde, cursou a Universidade A&M, no Texas. Envolveu-se na cena hip-hop de Houston, e sua voz pode ser ouvida declamando versos na canção Sittin’ on Top of the World, gravada com o DJ Screw, criador da técnica de DJ apelidada de chopped and screwed, ou, mal traduzindo, “picada e misturada”.
A contar de 2009, Floyd passou quatro anos na prisão, condenado por assalto a mão armada. Depois de obter liberdade condicional, mudou-se para Minneapolis, onde morava com uma tia e passou a trabalhar como segurança num restaurante, o Conga Latin Bistro. Tinha vários apelidos e, ao que tudo indica, era benquisto por conhecidos e colegas de trabalho. Segundo sua tia, Angela Harrelson, o sonho de Floyd era construir uma casa para a mãe. Ficou arrasado quando ela, conhecida como Miss Cissy, faleceu em 2018.
Floyd se viu desempregado quando começava a onda de fechamento do comércio decorrente da Covid-19. Segundo a promotoria, Floyd estava no assento do motorista de um carro quando os policiais chegaram ao local e tentaram prendê-lo. Era dia 25 de maio, uma segunda-feira. Os policiais respondiam a um chamado do vendedor de um mercadinho próximo que ligara para o 911 e acusara Floyd de tentar pagar-lhe com uma nota falsa de 20 dólares.[1] Floyd, ainda segundo a promotoria, afirmou ser claustrofóbico quando os policiais tentaram fazê-lo embarcar na viatura.
Em torno de 20h19, Derek Chauvin apoiou o joelho no pescoço de Floyd, imobilizando-o no chão, enquanto outro policial segurava suas pernas. No vídeo, Floyd repete várias vezes que não consegue respirar. “Mas nem por isso está deixando de falar”, responde um dos policiais. Ao cabo de alguns minutos, Floyd fica imóvel, os olhos sem vida. “Olhem como ele está!”, exclama um passante. Um dos policiais verifica a pulsação de Floyd. “Não senti nada”, diz. E Chauvin mantém o joelho no pescoço de Floyd por mais quase três minutos. No dia seguinte, a polícia informaria que um homem morrera em consequência de um incidente médico durante uma “interação com a polícia”. Horas mais tarde, uma garota de 17 anos que filmara o incidente postou na internet o vídeo da “interação com a polícia”. Em pouco tempo, o som e as imagens corriam o mundo.
Nos dias seguintes, tinha-se a impressão de que a história começara a se repetir a partir daqui mesmo, de Minneapolis, a maior cidade de Minnesota. Ao acordarem na sexta-feira, 29 de maio, os cidadãos locais depararam com destroços e ruas cobertas de cinzas. Vários incêndios arderam por toda a noite. Manifestantes indignados superavam em muito a capacidade de reação da polícia e dos bombeiros. Os participantes do protesto convergiram para o Terceiro Distrito do Departamento de Polícia de Minneapolis, na Rua Lake, que corre de Leste a Oeste na parte Sul da cidade. Policiais dispararam gás lacrimogêneo e balas de borracha, mas a multidão não recuou. O prefeito de Minneapolis, o democrata Jacob Frey, ordenou que a polícia abandonasse o prédio. Enquanto os policiais saíam a pé ou em carros de patrulha por um estacionamento nos fundos, os manifestantes faziam chover sobre eles tudo o que tinham à mão. “O caráter simbólico de um prédio não vale mais que a importância de uma vida humana”, disse o prefeito, preocupado com a escalada da violência.
Enquanto o Terceiro Distrito ardia em chamas, os âncoras, quase exclusivamente brancos, dos noticiários locais de tevê mostravam-se absolutamente despreparados para descrever os incidentes carregados de hostilidade racial que tinham diante dos olhos. Acostumados a ler as notícias da noite num teleprompter e depois dar boa noite, naquele dia precisaram trabalhar até mais tarde e então, com os olhos cansados, gaguejavam à procura de palavras para descrever a cena de um prédio da polícia em chamas. Os repórteres da KSTP, afiliada da ABC e uma das estações locais mais importantes da cidade, pareciam incapazes de manifestar mais que uma perplexidade paralisante.
Era quase cômico que os repórteres se mostrassem tão incapazes de descrever o que viam. Cada vez que os âncoras paravam de apenas descrever os fatos e esboçavam comentários políticos mais potencialmente carregados sobre a obrigação do respeito à lei, eu não conseguia conter uma forte sensação de medo, contrariedade e, acima de tudo, tristeza diante do imenso despreparo da nossa sociedade para discutir com profundidade a questão da raça. Em Letter from a Region in My Mind (Carta de um recanto da minha mente), seu artigo seminal publicado em 1962 na revista The New Yorker, James Baldwin disse: “Tudo que os brancos desconhecem a respeito dos negros revela, exata e inexoravelmente, o que ignoram a respeito de si mesmos.” Não tive como deixar de pensar nas atitudes que me foram impostas – a mim, um sujeito liberal criado numa família liberal – e ficar impressionado com a distância que ainda nos separa de uma autêntica mudança estrutural de mentalidade. O movimento pelos direitos civis tem mais de cinquenta anos. Elegemos Barack Obama, um negro, para a Casa Branca. Ainda assim, o assassinato de Floyd e o que ocorreu depois mostram que a experiência dos negros na vida norte-americana não foi entendida nem de longe.
Na tarde de sexta-feira, como já vinha fazendo a semana inteira, a estação pública de rádio de Minnesota transmitia canções de protesto quase sem interrupção. Tocou A Change Is Gonna Come, de Sam Cooke, e Blowin’ in the Wind, de Bob Dylan. No noticiário na hora do rush, a estação de rádio fez um minuto de silêncio em homenagem a Floyd, depois começou a transmitir um famoso discurso do reverendo Martin Luther King chamado The Other America. Nele, o líder da luta pelos direitos civis denuncia a divisão entre as realidades dos Estados Unidos – numa delas, a “situação é linda” e “sobram o leite da riqueza e o mel da oportunidade”; a outra, basicamente a parte dos negros, “vive imersa num cotidiano ingrato em que o borbulhar da esperança se converte o tempo todo na exaustão do desespero”. Minha mulher, que não se considera branca, começou a chorar. Eu mesmo enterrei o rosto nas mãos. Nossos filhos pequenos nos olhavam intrigados. O Dr. King, como era chamado, irredutivelmente não violento, discursava em tom tonitruante no rádio, condenando com a mesma energia tanto as condições que levavam as pessoas a participarem de motins quanto as próprias revoltas, e insistia no refrão que vem sendo repetido pelos participantes dos protestos de 2020: “Em última análise, a revolta é a linguagem dos que não são ouvidos. E o que os Estados Unidos não conseguem ouvir?” Que as dificuldades dos negros se aprofundam, que as promessas de liberdade e justiça não foram cumpridas, que “amplos segmentos da sociedade branca estão mais preocupados com a tranquilidade e o status quo que com a justiça, a igualdade e a fraternidade.”
O mercadinho de esquina onde Floyd foi morto transformou-se num memorial que se estende por vários quarteirões, cercado por barreiras móveis de concreto. Floyd morreu na Zona Sul da cidade, área que conheço bem e que, na minha juventude, não gerava manifestações de medo como as provocadas pela Zona Norte. Numa recente manhã de domingo, voluntários em cada ponto de entrada se ofereciam para esguichar desinfetante nas mãos dos milhares de visitantes. A maioria usava máscara, mas não evitava aglomerações. Na esquina da Rua S 38 com a Avenida Chicago, as flores se acumulavam em cima de cartazes de protesto abandonados. Um punho fechado de quase 4 metros de comprimento, símbolo do empoderamento negro, destacava-se no pavimento. Havia dúzias de nomes pintados no asfalto com tinta spray – os nomes das vítimas da violência policial em todo o país – cobertos com mais flores, na maioria rosas.
Jeanelle Austin, ativista negra, cuidava naquele dia do memorial, retirando as flores murchas e rearrumando as flores frescas ou secas. “Prefiro acreditar que ainda há esperança”, disse ela. “Mas também sei que estamos falando de décadas e gerações em que não havia nenhuma esperança. Este memorial é em honra de George Floyd, mas também homenageia os milhares, milhões de pessoas sem nome que perderam a vida para os sistemas injustos que existem dentro dos EUA. Acho lindo que as pessoas se reúnam para prestar suas homenagens – precisamos mesmo de um lugar para viver o luto em público.”
Austin cresceu a poucos quarteirões de distância dali, mas depois se transferiu para o Texas, onde vive de ensinar indivíduos e organizações a se manterem em dia com questões de justiça racial. Quando Floyd foi morto, ela comprou uma passagem só de ida para sua cidade de origem, disposta a ficar com sua família e a comunidade. Ajuda os outros a reconhecerem o racismo na área onde vivem ou trabalham, e orienta de que maneira devem reagir na medida de suas possibilidades. “Às vezes é só prestar atenção no que existe na comunidade à sua volta, para além da sua porta dos fundos, da sua empresa, do sistema e da família em que vive, e ser capaz de começar essa conversa. Nós, o povo unido, precisamos começar a trabalhar na aquisição de uma linguagem que dê conta das questões de raça, encontrando espaço para nos recuperarmos e ainda crescer, além da coragem de fazer as mudanças. Ainda assim, ao mesmo tempo em que procuramos outros corações para converter, também queremos entender quais sistemas e diretrizes políticas podemos mudar.”
A resposta de Austin reflete uma ansiedade comum: como conciliar a energia bruta e carregada de esperança das manifestações em alguma ação política concreta. Nos primeiros protestos, muitos intelectuais se apressaram em lembrar que, no passado, as manifestações muitas vezes ajudaram a eleger conservadores com uma plataforma de “lei e ordem”. O presidente Donald Trump, sempre racista e empenhado na exclusão dos adversários, tentou assumir essa posição. Chegou a tuitar a expressão em maiúsculas: LAW AND ORDER! Mas os participantes dos protestos já cuidaram de abrir atalhos políticos. O movimento Black Lives Matter (Vidas negras importam) – que começou em 2013, depois que absolveram George Zimmerman, o vigia que matou Trayvon Martin, um garoto negro de 17 anos – vem recebendo pela primeira vez o apoio da maioria dos norte-americanos. A reivindicação de “desinvestimento” na polícia se difundiu. No início de junho o Conselho Municipal da cidade de Nova York propôs cortar o montante inédito de 1 bilhão de dólares do orçamento da polícia da cidade e redirecioná-lo para programas de assistência social. Em Minneapolis, vários membros do Conselho Municipal encaminharam propostas para substituir a polícia por uma segurança comunitária.
Mesmo em meio a esses progressos, persistem dúvidas quanto à durabilidade dessas medidas. Michael Minta, cientista político da Universidade de Minnesota, afirma que os poderosos sindicatos dos policiais continuarão a se opor a reformas drásticas. “Precisamos de uma pressão constante em favor da reforma da polícia”, disse ele. “Manifestações de protesto são uma boa coisa, mas é preciso haver organizações poderosas que continuem ativas muito depois de os manifestantes voltarem para suas casas.”
John Thompson, político negro apoiado pelo Partido Democrata nas eleições de St. Paul, é a expressão da transição que pode levar alguém de manifestante a político profissional. Originário de Chicago, transferiu-se para Duluth, em Minnesota, para estudar no final da década de 1960, antes de se estabelecer em St. Paul. Fez carreira como operário especializado e levava uma vida tranquila quando um dos seus melhores amigos, Philando Castile, foi morto pela polícia em 2016, no caso mais notório de brutalidade policial ocorrido no estado até então. A morte do amigo o levou a transformar-se em ativista e orador público. Mas de certa forma Thompson corrobora as dúvidas de Minta em relação a mudanças duradouras.
“Dói de fazer chorar”, diz Thompson sobre o vídeo em que a vida de Floyd é sufocada. Sua preocupação é de que a mensagem de justiça tenha vida curta – ele viu poucas mudanças desde a morte de seu amigo. “Estamos de novo falando de brutalidade policial.” É uma discussão de décadas, disse ele, mas sua impressão é de que, para a comunidade negra, hoje ainda é pior porque a tevê transmite tudo e nem assim se faz justiça. “É horrível quando você é preto e aquelas luzes de boate se acendem atrás do seu carro”, disse, referindo-se às viaturas policiais. “Depois que ligam aquelas luzes, o que acontece pode ser mortal.” Sua voz ao telefone vai crescendo em intensidade. “A coisa realmente fica feia de repente. Por que o cara não se limita a passar uma multa e ir embora? Ou por que não me deixa em paz, mesmo eu sendo preto e estando ao volante de um carro? Ele tem medo de mim e eu tenho medo dele. Se eu fizer o movimento errado, ele pode simplesmente estourar os meus miolos.”
Nos tempos que se seguiram aos Tumultos de Watts,[2] Thomas Pynchon escreveu na New York Times Magazine que os brancos não conseguiam entender a “sensação panorâmica” de empobrecimento negro que era perfeitamente visível para eles do alto das vias expressas da cidade. “De alguma forma, são muito poucos os que, só para variar, descem da via expressa um pouco antes, seguem por alguns quarteirões no rumo Leste em vez de Oeste e enxergam como é a vida em Watts. Só uma olhadela rápida. Só uma apreciação preliminar. Mas Watts é a região que se estende, psicologicamente, por muitos e muitos quilômetros a mais do que a maioria dos brancos de hoje parece disposta a seguir.”
Numa terça-feira de junho, tirei folga do trabalho e fui de carro até a Zona Norte de Minneapolis. Meu plano era achar o pastor batista que foi aos subúrbios exercer seu ministério em torno de 1992. Mas logo percebi que todas as igrejas estavam ocupadas com um compromisso muito mais crucial do que me ajudar a seguir a pista de uma lembrança vaga de décadas atrás. O único supermercado completo da área, atendendo a quase 60 mil pessoas, fora fechado devido aos estragos sofridos nos protestos, e muitas igrejas estavam operando bancos de alimentos. Uma delas, a New Salem, oferecia testes gratuitos de Covid-19.
Deparei-me com um grupo de parlamentares de Minnesota que percorria as ruas para inventariar os estragos, em preparação a uma sessão legislativa especial no fim de semana. Entre eles, estavam John Jasinski e Mark Koran, dois republicanos, e Patricia Torres Ray, democrata. Caberia a eles examinar os planos de alocação de recursos para apoiar a reconstrução da área. A maior parte do comércio da West Broadway, o principal corredor de lojas da área, foi saqueada nos protestos, e as lojas foram cobertas com tapumes. Um dos únicos lugares onde ainda se podia comprar comida era o balcão de drive-thru de um McDonald’s. O proprietário, armado, tinha tomado conta das instalações durante os saques.
Em vários pontos das cidades gêmeas de Minneapolis e St. Paul, assim chamadas porque ficam uma ao lado da outra, centenas de estabelecimentos foram vandalizados, saqueados, portas e vitrines espatifadas. Uns foram reduzidos a destroços, outros foram destruídos pelo fogo. O assassinato de Floyd liberou uma força mobilizadora imprevisível, e, à medida que os protestos se espalhavam pelo país, muitas manifestações pacíficas assumiram um caráter destrutivo e violento, em Nova York, em Denver, em Atlanta, até em Fargo. Em muitos casos, os choques foram instigados pela polícia, que respondia aos protestos com mais violência – confrontos realimentados por imagens e vídeos amplamente compartilhados nas redes sociais e sites dos jornais. As autoridades davam declarações contraditórias sobre a origem da violência nos protestos. Tim Walz, governador de Minnesota, também democrata, afirmou que a violência podia ter sido incitada por supremacistas brancos infiltrados. O governo Trump atribuía a destruição a anarquistas de esquerda.
Manifestações imensas em Washington levaram o serviço secreto a apagar as luzes da Casa Branca, e o presidente Trump se retirou para um bunker subterrâneo. No mesmo fim de semana, um artigo publicado no New York Times afirmou que a indignação causada pela morte de Floyd “cruzou o gume de navalha que separa as manifestações de protesto de uma pane generalizada da sociedade”. Ao mesmo tempo em que mencionava a infiltração potencial de supremacistas brancos, Walz afirmou que, segundo projeções, até 75 mil residentes de fora da cidade ou do estado compareceriam aos protestos em Minneapolis, alguns dos quais movidos por intenções violentas. O governador declarou sua intenção de convocar a Guarda Nacional para ajudar a manter a paz. Pedia calma e tentava chegar a um equilíbrio entre apoiar os protestos e evitar um endosso à violência. “São questões que vêm fermentando neste país há pelo menos quatrocentos anos”, disse Walz.
A destruição de Minneapolis concentrou-se num trecho de mais ou menos 1,5 km da Rua Lake, mas também se insinuou por outras partes da cidade e arredores. O shopping center ao qual eu costumava ir de bicicleta na adolescência foi saqueado. Ver minha cidade entrar em erupção foi decididamente surreal, mas também me fez questionar se a minha percepção da essência do lugar onde eu vivia alguma vez fora correta. Minneapolis, a Cidade dos Lagos, ardeu no fogo de contradições intoleráveis. Que essas contradições tenham agora vindo à luz de maneira muito flagrante e brutal só pode ajudar a ampliar nossa consciência do racismo sistemático. Se isso custar a Minneapolis sua reputação de cidade tolerante, se o preço for a queima de alguns prédios por força de uma raiva justificada, que assim seja. Uma cidade se reconstrói. E não saem da minha cabeça as palavras de Jeanelle Austin sobre a criação de uma linguagem que nos permita falar uns com os outros, de modo que os passos futuros não precisem quase provocar o colapso da cidade para despertar, nos norte-americanos brancos, a consciência da brutalidade profunda do racismo.
A verdade é que a ansiedade que tomou conta dos brancos naquela semana talvez não tenha sido diferente da ansiedade por que passam os corpos negros dos EUA a cada dia: a ansiedade de viver num país cujas instituições, no que lhes diz respeito, não funcionam; a ansiedade de viver numa sociedade em que a civilidade praticamente inexiste. Para os negros, porém, deve ter sido bem mais que isso. A sensação era de um trauma repetido. Ao cabo de décadas de esforços de organização, de encontro com a administração municipal, de trabalho árduo, de reconstrução, de rejeição e de desespero, a derrota esbofeteou os negros na forma de um inaceitável vídeo de oito minutos e 46 segundos em que George Floyd, com o nariz sangrando, chama pela mãe já morta, pede água e implora para que o deixem respirar enquanto um policial branco mantém um joelho sobre seu pescoço como quem não quer nada – dando de ombros, sob as vistas de mais três colegas – porque Floyd fora acusado de tentar passar uma nota falsa de 20 dólares num mercadinho de esquina.
Parte da dificuldade de enxergar mais claro no momento – o momento em que ocorre toda essa explosão de insatisfação social – é que ele envolve várias camadas de crises, cada qual com suas respectivas complicações. O governo Trump vem sendo, desde janeiro de 2017, caótico e disfuncional, mantendo um discurso racista e incitando a discórdia. Para muitos, constitui por si só uma crise política. Os EUA, enquanto isso, foram um dos países mais duramente atingidos pelo coronavírus, com mais de 2 milhões de casos e 120 mil mortes – os maiores números do planeta, dos quais apenas o Brasil está se aproximando. E a morte de Floyd tornou a despertar a crise do racismo estrutural e das desigualdades históricas do país.
A pandemia teve um impacto diferente sobre a população negra, que usa muito o transporte público, onde fica mais exposta, além de só dispor, na grande maioria, de um seguro-saúde insuficiente. Parte desse impacto desigual se revelou com toda a clareza no dia em que estive na Zona Norte de Minneapolis. Enquanto DeVon Nolen, negra que participa do comitê da Coalizão de Negócios da Área da West Broadway, discursava para o grupo quase todo branco de parlamentares que se reuniam à sua volta, o ar estava impregnado de um cheiro que lembrava alcatrão. Nolen explicou que se devia provavelmente às substâncias químicas da fábrica de telhas de madeira a alguns quarteirões dali – uma das instalações industriais graças às quais a Zona Norte tem uma das atmosferas mais poluídas do estado. Casos de asma e envenenamento por chumbo devido à ingestão pulmonar são numerosos, favorecendo o aumento das taxas de mortalidade pela Covid-19.
Ao mencionar os aspectos mais destrutivos dos protestos, Nolen disse que os estragos poderiam ter sido muito maiores se a comunidade local não tivesse corrido em socorro mútuo. “Somos uma comunidade muito resistente”, disse Nolen. Em seguida, acrescentou: “A maioria das pessoas que vivem aqui sofre, e não porque tenha escolhido viver assim. É porque somos vítimas de todas as estruturas sociais que geram essas condições.” Os parlamentares percorreram a área com os olhos. Estávamos diante de um prédio que fora destruído pelo fogo. Nolen frisou que outros fatores – como a educação e a ação da polícia – já tinham devastado a área bem antes da chegada da Covid-19 e do mais recente surto de saques e destruição. “Alguém poderia ter tomado alguma outra decisão para mudar nossa situação. Mas não sou candidata a nada, de maneira que são vocês que precisam fazer alguma coisa.”
Nolen assinalou que os líderes comunitários não desejam apenas recuperar as perdas e superar divisões históricas. Querem fomentar a propriedade negra de lojas e residências. Na rua, um fluxo constante de tráfego passava ruidoso. Até 29 mil carros passam por aquele corredor diariamente, indo e voltando da cidade, mas quantos param para fazer compras? Ali perto estava Bobby Joe Champion, político que representa a Zona Norte – um dos dois únicos negros naquele corpo legislativo de 67 membros. Perguntei-lhe quais seriam os obstáculos para obter os recursos necessários para reconstruir aquela área de Minneapolis. A Câmara Alta do Parlamento de Minnesota é controlada pelos republicanos, e ele iria precisar de seus votos. E sua resposta foi uma palavra só: “Entendimento.”
[1] O vendedor, de 17 anos, manifestou seu arrependimento por ter ligado para a polícia, segundo o New York Times. Ele foi demitido pelo dono da loja, que, depois do crime, se ofereceu para pagar o funeral de Floyd. (N.A.)
[2] Os Watts Riots, aqui traduzidos como Tumultos de Watts, começaram no dia 11 de agosto de 1965, no bairro negro de Watts, em Los Angeles, depois que a polícia espancou e prendeu um jovem negro. Os distúrbios duraram cinco dias. Quase 14 mil soldados da Guarda Nacional foram convocados para conter a onda de violência, que resultou em 34 mortos, 1 032 feridos e 3 438 presos.(N.T.)
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