Ilustração de Paula Cardoso
Respirador dá fôlego a devedor
Ministério da Saúde contrata para fornecer ventiladores empresa que deve pelo menos 75 milhões de reais em impostos federais, estaduais e municipais
Quando a pandemia da Covid-19 ainda engatinhava no Brasil, no fim de março, representantes do Ministério da Economia contataram o departamento comercial da KTK Indústria de Importação, Exportação e Comércio de Equipamentos Hospitalares, em São Paulo, com uma proposta comercial tentadora: um contrato emergencial, sem licitação, em que a empresa entregaria ao Ministério da Saúde 3,3 mil ventiladores pulmonares por 23,6 mil reais a unidade, em um total de 78 milhões de reais. Oferta idêntica foi feita pelo governo federal para outras duas empresas – há quatro fabricantes do equipamento instaladas no país. Essas duas firmas tinham as finanças saudáveis e estavam em dia com suas obrigações tributárias – diferentemente da KTK, afundada em dívidas milionárias e em recuperação judicial desde 2012.
O passivo tributário atual da KTK é de pelo menos 263,3 milhões de reais. O valor consta nos cadastros de dívida ativa da União e do governo paulista – a empresa reconhece apenas 75,7 milhões de reais em dívidas de impostos federais, estaduais e municipais. Mesmo devedora, a KTK é considerada idônea pelo Tribunal de Contas da União e tem certidão negativa do tribunal informando que ela não está na lista de licitantes inidôneos, ou seja, inaptos a participar de licitações. Questionado sobre o fato de uma empresa devedora ser considerada idônea, o TCU informou que a certidão se refere à proibição de disputar licitações: “Não está entre as competências do TCU emitir certidão de inscrição em dívida ativa, ela deve ser buscada junto à Receita Federal ou secretarias de Fazenda, conforme o caso.”
Também em abril, a KTK assinou contrato emergencial, sem licitação, com a Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais para o fornecimento de 562 ventiladores pulmonares por 70 mil reais a unidade e 185 equipamentos por 25 mil reais, totalizando 43,9 milhões de reais. Com apenas 48 funcionários e sem dinheiro em caixa, a empresa precisou recorrer a um empréstimo bancário de 18,2 milhões de reais e à ajuda de outras firmas: quatro emprestaram 109 trabalhadores para a produção, duas doaram bancadas para a montagem dos ventiladores e duas auxiliaram na montagem dos equipamentos. Para a administradora judicial da KTK, a pandemia representou “um marco na atividade empresarial” da firma, diante da “possibilidade de soerguimento” da empresa graças aos milhões da União e do governo mineiro.
O último contrato da KTK com o poder público fora assinado em 2008, mediante licitação: o fornecimento de dois ventiladores pulmonares para o Instituto Emílio Ribas, em São Paulo. Devido à demanda do Ministério da Saúde e do estado de Minas, a KTK deixou de entregar dois ventiladores pulmonares para a Santa Casa de Dracena e outros dois para a prefeitura de Taquarituba, ambos no interior paulista – tanto o hospital quanto a prefeitura ingressaram com ação judicial para receber os equipamentos, que foram integralmente pagos. A KTK informou que entregou a encomenda de Taquarituba e que fará o mesmo com o hospital de Dracena nos próximos dias.
A KTK foi fundada em 1957 pelo médico anestesista Kentaro Takaoka e levava o nome do dono. Ainda na década de 50, a K. Takaoka desenvolveu um equipamento para anestesia por respiração que levou o nome do dono e fez o sucesso da empresa logo nos seus primeiros anos de existência. Com o tempo, a empresa ampliou a oferta de equipamentos médicos, incluindo ventiladores pulmonares. Em 2005, o médico recebeu do então presidente Lula o Troféu Finep – Inventor Inovador. Mas o avanço das multinacionais do setor no Brasil e a morte de Takaoka em 2010 levaram a outrora poderosa KTK à bancarrota. Sob a gestão de Nelson Takaoka, segundo mais velho dos seis filhos do médico, a empresa ingressou com o seu primeiro pedido de recuperação judicial em 2012 na 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo.
A derrocada da KTK coincide com a abertura, em 2007, de uma offshore de Nelson no estado norte-americano de Nevada, considerado um paraíso fiscal. De acordo com documentos dos Panama Papers, base de dados do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ, na sigla em inglês), a que a reportagem teve acesso, a empresa Nexus International Trading foi criada pelo escritório panamenho Mossack Fonseca com o auxílio de um emissário de Nelson, o empresário brasileiro Ademir Auada, que foi preso pela Operação Lava Jato em 2016, mas não chegou a ser denunciado à Justiça pela força-tarefa. A offshore seria extinta em 2013. Nelson disse em nota à piauí que a empresa “tinha por objetivo diversificar a área comercial e expandir as exportações” da KTK, mas que o projeto não prosperou. Ele disse que nunca movimentou dinheiro na offshore, mas que mesmo assim declarou a Nexus à Receita Federal.
Atualmente, a dívida da KTK é de 95 milhões de reais (75 milhões de passivo tributário; o restante são débitos trabalhistas e débitos com bancos e fornecedores). Segundo representantes de fabricantes multinacionais de equipamentos médicos, os ventiladores feitos pela KTK têm desempenho satisfatório, mas carecem de tecnologia mais avançada. “São como carros da linha popular”, compara o representante, que não quer ser identificado para não prejudicar os negócios da sua empresa.
“Infelizmente, quando o vírus começou a se espalhar pelo Brasil, o governo não soube se preparar. Priorizou a compra de respiradores e deixou de lado a estratégia de testar massivamente a população e isolar os contaminados, o que reduziria a taxa de transmissão e evitaria muitas mortes. A base da medicina é diagnosticar e tratar, nessa ordem. Mas, infelizmente, no Brasil não se prioriza a prevenção. Em vez disso, o governo sai comprando ventiladores pulmonares sem muito critério, o que possibilita o surgimento de irregularidades administrativas”, afirma a epidemiologista da USP Beatriz Helena Carvalho Tess.
Em nota à reportagem, a KTK afirmou que as quatro empresas brasileiras fabricantes de ventiladores pulmonares foram convidadas pelo governo federal para fornecer os equipamentos à União porque “houve e ainda há enorme dificuldade para importar equipamento” no combate ao covid-19. A empresa ressaltou que “o contrato com o Ministério da Saúde foi cumprido na íntegra antes do prazo” e que o acordo com o governo mineiro “também será cumprido antecipadamente”.
O Ministério da Saúde afirmou apenas que “o governo federal integrou quinze instituições, entre fabricantes, setor bancário e empresas de alta tecnologia, para atender às necessidades emergenciais de resposta à Covid-19” e que “a empresa KTK faz parte desta ação, conforme legislação vigente”. A assessoria da pasta não se pronunciou sobre a legalidade da contratação da KTK.
A Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais disse que “a empresa era a única fornecedora nacional […] com disponibilidade de equipamentos para entrega no período solicitado pelo governo de Minas e com o menor preço. As demais fornecedoras nacionais se comprometiam apenas com entregas a partir de setembro de 2020, prazo que não era compatível com a demanda emergencial pelos respiradores no contexto de enfrentamento da pandemia da Covid-19. Já as empresas fornecedoras de produtos importados ofertavam, naquele momento, respiradores com preços, em alguns casos, 400% mais caros. Portanto, a empresa citada era a única, naquele contexto, que atendia aos parâmetros de preço e prazo adequados para o momento”.
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Correção: Versão anterior dessa reportagem identificava erradamente a KTK como uma empresa inidônea. Apesar da dívida, a empresa possui certificado de idoneidade expedido pelo Tribunal de Contas da União (TCU) e pode ser contratada pela União.
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