Foto: Alf Ribeiro/Folhapress
A tropa de choque de Bolsonaro
Pesquisa inédita traça perfil de policiais que, em postagens públicas nas redes, defendem ideias como fechamento do Supremo e do Congresso
“Gilmar Mendes é um vaga****. Bolsonaro tá certo sim se quiser mandar tropas pra fechar o STF”
“Maia é um bandido!!! Esse Congresso Nacional tem que fechar as portas, só tem rato!!!!”
Na naturalização do realismo fantástico que toma conta do país, frases como as que servem de epígrafe deste artigo são banalizadas e nem sempre transmitem com clareza da gravidade do que está sendo dito; nem sempre é possível perceber as consequências do que está sendo dito e, sobretudo, as consequências de expressá-las publicamente.
As duas frases acima foram extraídas das redes sociais por um amplo estudo que o Fórum Brasileiro de Segurança Pública está desenvolvendo, cujos primeiros resultados foram recentemente divulgados. São comentários públicos de policiais brasileiros aceitando que instituições da República como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) sejam fechadas e que o presidente Jair Bolsonaro intervenha para romper com a ordem constitucional democrática do Brasil.
E esses não são casos isolados, infelizmente. Frases como essas são compartilhadas sem pudor por ao menos 12% de policiais militares, 7% de policiais civis e 2% de policiais federais que possuem contas nas redes sociais e interagem publicamente em grupos e páginas do Facebook. São, se extrapolada a amostra do estudo, estatisticamente representativas de um grupo de cerca de 15,3 mil policiais analisados, de um total de 141.717 policiais pesquisados.
E este número pode ser ainda maior, pois a pesquisa só analisou postagens públicas e não captou manifestações em perfis privados. Se aceitássemos que os policiais que se manifestam publicamente nas redes são um retrato dos demais, estamos falando, em relação aos 885.730 mil integrantes efetivos das polícias disponíveis nos Portais da Transparência, de algo como ao menos 120 mil policiais convertidos para discursos golpistas.
Ou seja, a tropa de choque de Bolsonaro nas polícias seria, hoje, equivalente a ⅓ do efetivo ativo das Forças Armadas. E, com um agravante, trata-se de uma tropa experiente e treinada, com acesso a material bélico e com poucos canais formais de controle externo. Se optarem pelo enfrentamento, dificilmente as demais forças de segurança e defesa do país, se aceitassem se contrapor a elas, conseguiriam subjugá-las sem grandes baixas e risco de convulsão social e guerra civil.
Nesse movimento e no entusiasmo muitas vezes panfletário, os próprios militares das Forças Armadas vão contra a doutrina de defesa nacional engendrada quando da criação da Escola Superior de Guerra (ESG) e que tinha, como parâmetro, a manutenção da integridade territorial do Brasil e o controle da capacidade bélica e da autonomia das polícias. Isso foi feito para se evitar novas crises como a Revolução Constitucionalista, de 1932, que antagonizou tropas federais e a Polícia Paulista.
No atual quadro, além de questões operacionais e tecnológicas associadas a um conflito, uma nova crise pode nascer de onde menos se espera, já que a tropa de choque bolsonarista está distribuída em todo o território nacional e não se resume a uma única corporação. A população está submetida à incerteza e, mais do que defender que um golpe é iminente, é nosso objetivo explicitar os riscos envolvidos e mobilizar os olhares para eles.
E isso não significa rotular todos os policiais apoiadores de Bolsonaro de golpistas, pois esse número seria ainda maior, porém incorreto e injusto. Nem todo policial que acredita em Bolsonaro é golpista, mas a parcela radicalizada e que reproduz discursos antidemocráticos preocupa e deveria ser objeto, essa sim, de monitoramentos de inteligência para se avaliar os riscos reais à institucionalidade democrática.
Assim, a adesão ao bolsonarismo não seria um problema para a ordem social democrática se parte do universo policial e das instituições de segurança não flertasse com a extrema direita e com concepções reacionárias, como demonstram grandes teóricos sobre polícia no mundo, como Robert Reiner, Jerome Skolnick, dentre outros. Uma pesquisa de Robert Reiner com policiais ingleses ainda na década de 1970 indicou que 80% da força policial se descrevia como conservadora, sendo que 18% destes alinhados à extrema direita e, muitas vezes, manifestamente contrários as pautas LGBTI+, marcados ainda pelo racismo e pelo tratamento discriminatório a dependentes químicos.
Os exemplos recentes da Alemanha e da França, que detectaram e agiram para conter movimentos extremistas formados por policiais e ex-policiais desses dois países, comprovam esse fenômeno e mostram que não há exagero em cobrar controle e, por que não, autocontrole daqueles que representam a face mais forte do Estado. Todavia, no Brasil, a questão não é de apenas convergência ideológica dos policiais; temos que considerar que as polícias, sobretudo as militares, gozam de uma grande autonomia operacional e caracterizam-se por um forte insulamento institucional e pela baixa transparência em relação aos seus protocolos e mecanismos internos de supervisão.
O problema está, portanto, no imponderável: no cálculo político que desconsidera variáveis que não estão totalmente claras e/ou que se acreditam ausentes. A nosso ver, esse é o principal risco da radicalização policial. Polícias são instituições de Estado e não podem servir ao projeto de poder A ou B. Elas são o braço armado do Estado em tempos de paz e, se não reguladas, viram-se contra, até mesmo, os seus integrantes que destoam do pensamento hegemônico, a exemplo da lista de policiais antifascismo produzida pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública e distribuída às Unidades da Federação.
Aliás, o debate sobre a lista está concentrado no Ministério da Justiça, mas poucos se deram conta de que a justificativa mobilizada pela pasta informa que a ação se dá no âmbito do SISBIN, Sistema Brasileiro de Inteligência, coordenado pelo Gabinete de Segurança Institucional, cujo titular, general Augusto Heleno, é peça-chave do bolsonarismo. Dito de outro modo, se o MJSP produziu o relatório e informou ao GSI, a questão é ainda mais grave, pois é o reconhecimento de que o SISBIN foi acionado para espionar adversários políticos e nada foi feito para coibir tal prática.
Se o GSI não foi informado, o argumento do ministro André Mendonça se fragiliza ainda mais, pois a operação não contaria, em tese, com o guarda-chuva legal do SISBIN e não poderia ser usada em uma investigação criminal – lembremos que a Operação Satiagraha foi anulada pelo Judiciário exatamente por produzir provas por meio da cooperação de agentes de inteligência e policiais.
Mas o ponto mais sensível é que, no caso da lista dos policiais antifascismo e ex-secretários nacionais, houve, em tese, o compartilhamento das informações com as unidades da federação, para a apuração de eventuais desvios de conduta e procedimentos administrativos. E, voltando à gravidade da adesão de policiais ao bolsonarismo mais radical, essa lista não foi denunciada por nenhuma secretaria e/ou polícia estadual, nem mesmo as subordinadas a governadores de oposição.
Em suma, estamos submetidos a um sistema de segurança profundamente opaco e com instituições policiais quase sem nenhum controle efetivo sobre o que elas podem ou devem fazer. E, pior, um sistema no qual as demais instituições ou se omitem ou aceitam que policiais sejam autônomos e decidam eles próprios seus mandatos e suas atribuições. Isso é perverso tanto para a população que tem que conviver com padrões operacionais geradores, muitas vezes, de mais violência, quanto é cruel até mesmo com os próprios policiais, cuja atividade cotidiana fica dependente de fatores que muitas vezes os punem de forma seletiva ou injustificada.
Por fim, soa repetitivo mas necessário lembrar que, em uma democracia, não basta o voto; as instituições precisam acreditar na transparência, na prestação de contas e na importância dos mecanismos democráticos de controle e supervisão do poder. Se nada for feito por elas para conter manifestações antidemocráticas, pouco adiantará lamentarmos a atual hegemonia do sectarismo de extrema direita no país e os avisos sobre os riscos do discurso salvacionista de Bolsonaro engolir os Robespierres do Congresso e do STF que hoje lhe dão sustentação política e instaurar um novo “regime do Terror” – só que agora no Brasil.
Professor da FGV EAESP e diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
É socióloga e diretora-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Tem mestrado e doutorado em administração pública e governo pela FGV
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