A escritora Linda Knausgård: Se os choques são assim tão tremendamente magníficos, por que a eletroterapia é proibida em vários países? CRÉDITO: JOACHIM LADEFOGED_2019
A locomotiva preta
Cuidem bem dos seus sonhos
Linda Boström Knausgård | Edição 168, Setembro 2020
Tradução de Luciano Dutra
Havia sempre vários cuidadores naquela enfermaria.
A Britt, a Charlotta, o Varg, a Elsa, o Christian e a Sofia. Os meus preferidos eram, é claro, o Aalif e o Muhammed, que eu talvez nunca mais voltasse a ver. Mas era a irmã Maria que conseguia mesmo me fazer falar sobre o que acontecia dentro de mim. Os cuidadores em geral eram bons, mas simplesmente aceitavam as coisas como elas se passavam. Nenhum deles queria se envolver. Nenhum se animava a dizer algo positivo antes das consultas com o médico. Nenhum questionava por que eu havia sido internada naquela enfermaria, eles estavam sempre na defensiva, defensiva, defensiva, exceto a Maria, que me passava a sensação de que gostaria que eu continuasse ali com eles, mas também que eu voltasse para casa, para a minha própria realidade, e seguisse o meu caminho.
Era sempre Maria quem vinha me buscar quando chegava a minha vez de falar cara a cara com o médico responsável. Ela me arrastava pelo corredor, era preciso ir logo ao encontro do médico que por acaso passasse pela enfermaria com seus papéis e seus ombros eretos. O consultório, cuja porta ele ou ela abria, indicava que ninguém se importava com aquele lugar. Havia apenas uma mesa e algumas cadeiras, lâmpadas fluorescentes coruscando no teto.
Eu dormia sem parar, me recusava a comer, a cada vez que botava a cabeça no travesseiro era como se estivesse morrendo. Eu não sabia se iria acordar depois de uma sessão de tratamento. Ou se era uma recusa, uma tristeza muda da qual jamais iria escapar.
Permita-se morrer, a frase ecoava na minha cabeça. Dormir, dormir, talvez sonhar.
A ideia de morrer não havia passado? O que fazer, então?
Certo dia, Maria abriu subitamente a porta do meu quarto e disse que já era hora. Que já me alertara várias vezes e que, se eu não me levantasse, iria chamar alguém para ajudar. Eu disse “desculpa” e me ergui da cama. Depois de muito tempo. Fui contando os passos pelo corredor para poder me acalmar e me preparar para a consulta em seguida. Ao passar pelo número 54, parei em frente à porta, que se abriu tão rapidamente como fechou.
O desgraçado do médico responsável fazia de conta que lia o meu prontuário enquanto falava:
– De resto, você devia estar contente de ter se aprumado. Apesar de ter exigido várias sessões num intervalo curto, seu tratamento foi, no geral, bem-sucedido.
Eu disse que era escritora e que precisava da minha memória.
Só então ele olhou para mim e disse que as lembranças voltariam:
– Elas sempre voltam. Mais cedo ou mais tarde. Talvez não todas, de fato, não todas, mas é difícil, se não impossível, encontrar um tratamento totalmente sem efeitos colaterais. Você entende isso, não? Depois, você sempre pode inventar algo. Afinal, não é isso que os escritores fazem?
Quando ele disse isso, tudo escureceu diante dos meus olhos, e eu não sabia o que fazer comigo mesma. Tentei me controlar, mas, mesmo assim, acabei indo para cima dele, apertei o seu pescoço e fiquei contente ao ver o verdadeiro pavor em seus olhos.
É claro que fui punida. “Sob supervisão”, é assim que eles designam por lá os pacientes que devem ser vigiados o tempo todo. Logo comecei a abreviar aquela designação: “SS”.
Aquilo era insuportável. Como se já não bastasse a miserável pessoa que eu tinha como companhia. Não é fácil fazer o que quer que seja quando há um cuidador o tempo todo sentado no mesmo quarto. Eu não conseguia ler. Nem escrever. Nem pensar. Aquilo era uma idiotice. Eles se revezavam. A vigilância era uma provação até para os próprios cuidadores.
De madrugada, o pessoal do turno da noite usava uma lanterna para verificar se a gente estava respirando. Passavam de cinco em cinco minutos, numa vigilância constante. Havia uma escotilha na porta para que pudessem espiar dentro do quarto.
A lanterna me acossava, naquele ritmo, a madrugada toda, tornando impossível dormir.
A luz primeiro batia nos olhos, depois se arrastava pelo quarto, como um farol na escuridão do oceano.
Calmantes e mais uma sequência de sessões, acompanhamento constante durante várias semanas, durante meses.
Na vez seguinte que vi o médico que ataquei, eu já não me lembrava dele.
Irmã Maria me aconselhou a coletar as minhas lembranças, o quanto antes melhor. Ela não estava contente com o resultado do meu tratamento. Com o fato de eu só andar pelo corredor e, ao menor contato, pular num sobressalto. Ela perguntou se eu me lembrava dos meus filhos, e respondi que sim, claro.
– Então, como eles se chamam? – ela perguntou.
Tentei responder, mas quando eu ia dizer “Anna”, senti uma dor no fundo dos olhos, como quando as lágrimas estão para verter, e, sempre que eu começava a chorar, não conseguia mais parar.
– Pense nos seus filhos. Pense no que eles estão fazendo enquanto você está aqui. O que será que eles estão fazendo agora mesmo? – disse Maria, que viu aquelas lágrimas como um bom sinal.
Quando ela disse aquilo, eu comecei a chorar mais ainda e caí nos braços dela. Ela me abraçou enquanto eu chorava e disse, depois de algum tempo:
– Talvez você devesse começar a pensar neles quando eram pequenos. Foi uma época feliz, se entendi bem, não?
Talvez fosse um ato de covardia da minha parte recuar. Vi a Anna, a Olivia e o Josef, o meu marido e a mim mesma como numa fotografia. Estávamos de férias, umas férias ansiosamente aguardadas. O meu marido havia trabalhado dia e noite num livro, até que finalmente ficou pronto, foi um alívio incrível poder voltar à normalidade. Sem ter que correr feito louca, de um lado para o outro, no apartamento em que morávamos na época. Reunir as crianças, fazê-las permanecerem à mesa um pouco mais do que alguns minutos, alimentá-las, colocá-las para dormir. Eu achava que tudo voltaria a ser como antes. Eu ainda não sabia o que viria a saber depois. Que aquilo era apenas o começo e que o final seria muito pior do que eu jamais poderia imaginar.
Você havia reservado a viagem caindo de sono, você sempre quis conhecer as Maldivas. Foi uma viagem inesquecível com nossos três filhos e um passageiro mal-humorado, que tentou fazer com que eles ficassem quietos, o que nós mesmos não conseguíamos. Os nossos filhos tinham 3, 5 e 6 anos, era pedir demais que eles não fizessem barulho algum. Eu, que tenho dificuldade em controlar a minha agressividade, ao ver aquele sujeito gordo e de olhos suínos reclamando quase aos gritos, xinguei:
– Não surpreende que você não entenda nada de crianças, pois mulher nenhuma teria coragem de chegar perto de você.
Você, que tinha aversão a discussões em público, tentou em vão me acalmar. Não havia nada de mais, afinal. As crianças adoravam viajar, gritaram um pouquinho, e bem nesse momento aquele sujeito gordo resolveu se manifestar, como se estivesse esperando a deixa para que a sua voz fosse ouvida.
– Homens de idade não ouvem lá muito bem mesmo – eu o interrompi.
Ao chegarmos ao hotel, só víamos palmeiras e folhagens, muitíssimas, com sombras e moitas.
Você observou a paisagem e exclamou:
– Mas que diabo é esse lugar?
De fato, estávamos em Maurício, e não no seu destino dos sonhos, as Maldivas. Eu passei as férias inteiras deitada debaixo de uma sombra com as crianças e dizia:
– Ah, como é bom aqui em Maurício. Maurício. Maurício.
Acho que ele merecia ouvir isso. O que a gente faria nas Maldivas? Tanto mais que eu não suporto sol.
De toda forma, foi uma viagem dos sonhos, nem me atrevi a pensar quanto tinha custado. É bem verdade que os livros do meu marido haviam começado a vender que nem pão quente e, com isso, nós, que nunca estivemos nem aí para o dinheiro, que passávamos pela casa de penhores depois de deixar as crianças na creche, ficamos ricos. Bem, talvez não exatamente ricos, mas ao menos não passávamos mais sufoco nem recebíamos mais a visita daqueles sujeitos com suas perguntas:
– Vocês não pagaram isso, nem isso e nem isso – eles diziam, brandindo um punhado de contas. – Elas entraram em cobrança há muito tempo. Vocês possuem algum patrimônio? Obras de arte? Móveis? Quem sabe algum imóvel não declarado?
Como se chamam mesmo aqueles sujeitos? Cobrancistas?
A minha mãe me ensinara a ser bastante cordial e simpática com aquele tipo de gente. Vivíamos num apartamento de quarto, sala e cozinha em Malmö, que trocamos pelo belo apartamento em que a minha mãe vivia antes de cedê-lo a nós, dois pais evadidos com crianças pequenas.
Você se mudou para a Suécia trazendo uma biblioteca na sua mudança, que era três vezes maior do que a minha.
Naquele apartamento de luxo, misturamos nossos livros nas suas estantes pela primeira vez.
Sequer pensamos que a minha mãe mais tarde iria sentir falta do apartamento de dois quartos na Rua Regeringsgatan, bem diante do Clube Nalen. Afinal, o futuro pertencia a nós.
– Quero ter uma penca de filhos – você disse.
Eu também queria ter vários filhos. Uma família de verdade.
– Sejam bem-vindos. Compreendo. Excelente, obrigada! De fato, não temos isso minimamente organizado. Somos escritores. Vamos pagar tudo agora. Quer dizer, amanhã. Quando pudermos. Obrigada pela visita e desculpe pelo incômodo! Tenham um ótimo dia! Obrigada. Obrigada – eu disse àqueles cobranceiros.
Fechei a porta às costas deles e rimos juntos.
– Aquela mesa horrível da mamãe que guardamos no depósito.
– Talvez eles também possam levar o armário – você disse.
– Não, o armário não, ele sempre fez parte da minha vida e já existia muito antes de mim.
Poucos anos depois, aquele armário estaria totalmente impregnado de fumaça de cigarro, no seu espaço de trabalho, da mesma forma que a mesa que um dia também pertencera à minha mãe.
– Por que você colocou os móveis da minha mãe na sua cabana-escritório?
Os nossos filhos iriam mais tarde se lembrar daquela viagem a Maurício como a melhor da vida deles. Tartarugas e enguias se enroscando nos nossos pés quando entrávamos na água. O zoológico interminável e o clima agradável. Os entardeceres curtos e as noites escuras. Assim devia ser para sempre.
Talvez por ser inofensiva é que essa lembrança foi a primeira a surgir. Não sei. Eu disse à Maria que eu queria ir logo para casa, e ela respondeu que não fazia sentido pensar nisso.
– Você deve ficar aqui internada na calma e na tranquilidade. Quando você estiver pronta, eles vão lhe dar alta.
Quando eu reclamei e gritei e corri, derrubando um pobre paciente que não tinha culpa de nada, recebi mais uma injeção, e a última coisa de que me lembro antes de adormecer é do rosto da irmã Maria encurvada em cima de mim. Ela me sussurrou:
– Peço que você não se lembre de mais coisas do que consegue aguentar nesse momento.
Então dei um tempo daquelas lembranças. De resto, eu não tinha como saber do que me lembrava e do que havia esquecido. Não aqui. Eu teria que estar de volta à minha vida real lá fora para poder saber. Meses depois, eu estava no salão de eventos da escola dos meus filhos para assistir a uma palestra sobre a importância da leitura para a imaginação e o futuro bem-estar das crianças. Quando a palestra acabou, nós, os pais, devíamos nos dirigir à sala de aula dos nossos filhos para reuniões com os professores, e de repente eu não sabia onde estava. Eu tinha três filhos na escola e estava prestes a decidir em qual das três salas iria primeiro, quando me dei conta de que não tinha a menor ideia de onde ficavam as salas em que meus filhos estudavam ou quais eram os seus professores. Fiquei totalmente paralisada enquanto o salão se esvaziava e, depois que todo mundo saiu, fui até a diretora e perguntei onde ficava a sala de aula. Ela me acompanhou, sem demonstrar que estava achando aquilo um tanto esquisito.
Mas isso foi muito tempo depois, agora eu errava de um lado para o outro pelos corredores do hospital e não me lembrava de nada do que acontecera depois do verão. Bem, da ambulância aérea eu me lembrava. Tem certeza? Não. Talvez não. O que foi que eu disse? Sim, eu me lembro. O barulho do motor, os enfermeiros, a maca. Eu, deitada e amarrada, e havia ainda um eco. Os anos em que moramos no interior também não consigo descrever exatamente. Eu me lembro das crianças e de que você ficava na sua cabana-escritório, lembro que eu escrevia e das poucas vezes em que recebemos alguma visita.
Lembro que você vendeu a casa e ficou com o dinheiro, como um escroque.
Dos funcionários da enfermaria eu me lembrava, porque afinal já os havia visto muitas vezes nas internações anteriores. Aquilo precisava ter um fim. Esta teria que ser a última internação. Senão eles continuariam a me tratar mais e mais vezes com eletroterapia até que um dia eu me transformasse naquela mulher de pedra que ficava no corredor. Aquela mulher que vi já na minha primeira consulta numa enfermaria como essa, quando eu era jovem e não entendia nada do que me acontecia. Desde então, aquela mulher me dava medo, todos os dias, a qualquer hora. Eu gostaria de esquecê-la de uma vez por todas, mas ela não se afastava da minha consciência, como um pesadelo sem fim.
Havia uma paciente. Uma velhinha que ficava sentada o dia inteiro numa cadeira, em silêncio. A cor do rosto dela. Aquela pele acinzentada, o fato de ela ficar ali sentada feito uma rocha viva, respirando. Os olhos dela estavam mortos. Jamais se mexiam. Havia uma membrana branca e turva sobre eles, e todos que a viam compreendiam que ela era uma morta-viva.
Eles tentavam despertá-la aplicando choques. Como disse, eu era jovem na ocasião, e a minha mente se assustava com facilidade e começava a galopar por qualquer ninharia. Eu tentava não desviar o olhar quando a arrastavam para cima da maca depois de cada sessão de eletroterapia. Eu não consigo nem imaginar o horror que ela deve ter padecido. Uma descarga elétrica atravessando a cabeça! Eles passavam pelo saguão onde aguardávamos sentados sem fazer nada ou então ocupados com as nossas aflições, e eu sentia de corpo e alma que não era certo que a gente a visse daquela forma, totalmente indefesa. Nós, que assistíamos ao trajeto dela enfermaria adentro, depois de passar pela fábrica, sabíamos alguma coisa a seu respeito que ela mesma não sabia. Ela era grande como uma baleia e quase não cabia na maca estreita. Eram sempre quatro cuidadores a carregá-la por aquele longo trajeto até o quarto dela, onde, juntando esforços, eles a arrastavam para cima da cama.
O corpo dela debaixo da manta hospitalar amarela. Eu ficava desesperada com a forma como a transportavam. Ali estava ela, exposta. Desacordada, num sono profundo. Aquilo não era certo. Disso eu tinha certeza.
Que eu própria, anos mais tarde, viesse a ser transportada da mesma forma, em meio ao sono mais profundo, exposta à vista de todos, era algo que não me parecia igualmente temerário, apesar de tudo. Não sei por quê. Tentava imaginar como eu devia jazer ali, em cima de uma maca, à vista de todos. No entanto, agora éramos tantos os que faziam o mesmo trajeto ao deixar a fábrica que aquilo já não representava nada de extraordinário, já estávamos todos acostumados.
Os médicos dizem que o tratamento funciona, sem saber exatamente por que ele funciona. Mencionam o alívio imediato para o paciente. Algo que se assemelha à euforia e é interpretado como uma melhora do paciente.
Se os choques fossem assim tão tremendamente magníficos, por que a eletroterapia é proibida em vários países? Na maior parte dos estados dos Estados Unidos, na Holanda e na Alemanha, a eletroterapia raramente é usada, e na Itália é proibida.
Vou me mudar para lá, onde eu, talvez, estarei finalmente segura. Só nos países nórdicos e anglo-saxões esse tratamento é louvado.
São maneiras fundamentalmente diferentes de ver o ser humano. Seus valores. Sua alma. Suas lembranças.
A eletroterapia começou a ser utilizada em 1938 por um psiquiatra italiano, inspirado no que ele observou num matadouro. Ele percebeu como os suínos agitados se acalmavam ao receber choques elétricos. Já sei, vamos fazer isso com os seres humanos mais frágeis. Os seres humanos que não conseguem falar por si mesmos.
Os pesquisadores que se opõem aos eletrochoques alegam que a euforia por si só já representa um sintoma de lesão cerebral. Outros pesquisadores refutam isso. Trata-se de um campo de batalha no qual os eletrochoques são os vencedores evidentes. Ao menos na parte do mundo onde me encontro.
As células cerebrais são destruídas, como vários afirmam, ou se regeneram mais rápido, como dizem outros? As células do cérebro humano se renovam numa velocidade alucinante e são especialmente sensíveis aos choques. Aqueles desgraçados sabem muito bem disso. Os neurologistas já demonstraram ambos os fatos, e ninguém sabe de que forma indivíduos diferentes são afetados. Os pesquisadores mais críticos descrevem a eletroterapia como uma catástrofe neurológica.
Esse é o pomo da discórdia.
Por outro lado, todos concordam que a memória é enormemente afetada. Todos concordam.
Isso eu ainda não sabia naquela ocasião. As informações que recebi foram as que mencionei antes. O tratamento era leve. E podia ser comparado com reinicializar um computador. Era preciso ser muito forte para se opor aos médicos, e esse tipo de força era algo que não havia de sobra nessa enfermaria. Além disso, eles não precisam de consentimento algum caso o paciente esteja lá por coerção, como era o meu caso. Avançavam sem freios. Havia sempre uma mesa preparada te aguardando todas as segundas, quartas e sextas-feiras.
A Suécia é o país onde se faz o maior número de tratamentos com eletrochoque per capita em todo esse vasto mundo velho.
Devo dizer algo importante de uma vez: não tenham medo. Tudo aquilo de que eu realmente tinha medo aconteceu. Por isso digo a vocês: não tenham medo. Refleti muitas vezes sobre o que é a liberdade e cheguei à conclusão de que a liberdade exige responsabilidade, respeito a si mesmo e um coração cálido e tranquilo.
Eu poderia parar por aqui, mas vamos avançar mais um pouquinho ou tanto quanto nós todos quisermos. Você pode saltar fora dessa narrativa a qualquer momento, e é isso que torna esse acordo tão especial. Quero dizer mais uma coisa. Cuidem bem dos seus sonhos. Há quem diga que não existe nada mais chato do que ouvir outra pessoa contar os seus sonhos, o que sempre me faz pensar: Como é possível que as pessoas sejam tão diferentes?
Para mim, não há nada mais empolgante do que quando alguém, de preferência alguém próximo, me conta os seus sonhos. Ganhar acesso às fantasias mais desenfreadas da pessoa, que em nada se parecem com a realidade na qual vivemos e, contudo, podem iluminar a situação em que ele ou ela se encontra nesse exato momento.
Por vezes, os sonhos são capazes de definir uma escolha para a vida inteira, sem que a gente mesmo tenha consciência disso. Eu tive o seguinte sonho na noite anterior ao dia em que decidi me tornar escritora. Eu estava desesperada. O meu sonho de me tornar atriz havia naufragado. Eu nunca mais faria teatro. Fiz esse juramento para mim mesma, por tudo o que há de mais sagrado, e é o tipo de promessa que a gente mantém para sempre. Mais uma vez, eu não fora aprovada na academia de arte dramática, que eu tanto desejava. Me disseram que eu não sabia colaborar e fiquei matutando com meus botões, no trem noturno, a caminho da cidade bela mas fria onde eu morava na época, no que foi que eu não colaborei. Teria sido em algum momento da prova final?
Perscrutei minha memória até descobrir.
Quando estávamos repassando o texto que iríamos encenar, achei que já havíamos repassado o suficiente.
– Temos que subir ao palco – eu disse. – Senão, quando chegar a hora de apresentar a cena para o júri, ainda estaremos aqui sentados repassando o texto.
Bem no momento que um dos jurados entrou pela porta para ver como ia nosso trabalho, perguntei:
– Podemos parar de ler em voz baixa?
Terá sido essa a razão?
Com certeza foi o doutor, digo, o professor polonês, aquele grande pedagogo com quem eu dividi o elevador até o sexto andar. Ele olhou bem nos meus olhos e disse:
– Você está com medo do que eu achei.
Naquela noite, antes de me deitar para dormir, terminei com o namorado com quem vivia e que havia tido a delicadeza de me buscar na estação, pois me conhecia bem e sabia como eu estava devastada. Pedi que ele saísse imediatamente do apartamento. Depois, adormeci e tive o seguinte sonho:
Era verão, e eu estava de férias em duas ilhas vizinhas uma da outra, no arquipélago de Estocolmo. Eu vivia uma existência deleitosa, na qual nunca me preocupava com nada, nem com o que iria fazer a seguir, nem se o que tinha feito antes já estava bom o suficiente. Pegava uma balsa pequena que fazia o trajeto entre as duas ilhas e, uma vez que a viagem levava só alguns poucos minutos, eu estava ora em uma ilha, ora em outra, com uma leveza despreocupada. Conversava com todos sem medo, e aquelas férias de verão pareciam não ter fim. Porém, como sempre ocorre quando a gente passa muito tempo num estado paradisíaco, a paz se converteu em terror. De repente ele estava de volta; o meu pai, que já morrera, estava ali diante de mim, vivinho da silva, poucos anos mais velho do que eu. Olhei o seu abdômen avantajado e fitei bem seus olhos verdes, e ele, com um único gesto, mostrou quem mandava naquela ilha. Ergueu o braço sobre a multidão, que num átimo se desfez às costas dele, e eu soube então que minha vida estava acabada. O desdém que ele demonstrava. Finalmente ele se transformou no homem grandioso que sempre sonhou ser. Era o maioral naquela ilha. Espiei rapidamente na direção do atracadouro, mas não havia mais balsa, desconheço por que razão me foi permitido ficar ali completamente sozinha. Talvez porque ainda não consegui chegar a lugar nenhum. Olhei em direção ao mar. Fiquei naquele lugar por um bom tempo, até que algo parecido a uma fera marinha emergiu das profundezas.
Uma locomotiva preta se ergueu, e seus vagões se converteram na cauda do monstro. A locomotiva se tornou visível num repente, brilhante sob o sol, para depois submergir nas profundezas. Eu sabia que a única maneira de escapar daquela ilha governada por meu pai seria conseguir chegar até o trem. O trem que me deixou apavorada até o meu âmago mais recôndito. Porém, em vez de me jogar no mar, nadar na direção dos vagões pretos e escapar dali de qualquer maneira, desejei, isso sim, poder pintar um quadro para que eu jamais me esquecesse da visão daquela locomotiva preta emergindo das profundezas e se exibindo. No fim das contas, decidi permanecer na ilha, onde meu pai iria me atormentar por toda a eternidade. Quando acordei, quase no fim da tarde, o carteiro já havia passado, e a carta no capacho da porta dizia que eu era bem-vinda no curso de formação de escritores no qual eu esquecera que havia me matriculado.
Em todo caso, eu havia conseguido uma vaga naquela merda de escola desgraçada.
Devo admitir: algo fez com que, de imediato, eu me sentisse bem. Eu acreditava no destino e fiquei, apesar dos pesares, aliviada de poder me dedicar a alguma coisa que, afinal de contas, me interessava de verdade, e foi assim que tudo começou. Depois de um ano e meio na ilha, terminei de escrever o meu primeiro livro. Foi como se eu o tivesse escrito durante o sono, e isso me deixou realmente assustada, pois a sensação era de que eu não soubesse o que estava fazendo ao escrevê-lo. Essa sensação nunca me abandonou, mas talvez eu tenha me acostumado um pouco com ela.
Trecho do livro A Pequena Outubrista, que será lançado em outubro pela editora Rua do Sabão.
Leia Mais