Feira Livre de Maragogi / Crédito: Intervenção de Camille Lichotti sobre foto do Laboratório de Estatística e Ciência de Dados da Universidade Federal de Alagoas (UFAL)
Feira livre de Covid
Cientistas rastreiam transmissão em cidade turística alagoana e ajudam a criar protocolos sanitários para manter atividades econômicas
Todo sábado, em uma rua central do município litorâneo de Maragogi, em Alagoas, os feirantes começam a montar suas barracas de madeira por volta das cinco da manhã. Até as 11h30, cerca de 3 mil pessoas circulam por esse ambiente – número considerável para uma cidade que tem 33 mil habitantes. Em Maragogi, que atrai turistas com a beleza de suas praias, boa parte da população depende da feira – muitos moradores são pequenos produtores agrícolas, que vivem da venda de seus produtos. A feira é, portanto, uma peça-chave para entender a dinâmica social da região. Mas quem estivesse na Feira Livre de Maragogi no dia 8 de agosto certamente notaria algo estranho voando pelo céu, a cerca de 20 metros do chão.
De longe, Paulo dos Santos, 20, operava com facilidade um drone que sobrevoava o coração do município. Em julho, a prefeitura local solicitou que pesquisadores da Universidade Federal de Alagoas monitorassem a movimentação na feira e avaliassem o risco de mantê-la aberta durante a pandemia de Covid-19. No fim daquele mês, a cidade tinha 399 casos de coronavírus confirmados, e o prefeito cogitava fechar a feira. A curva de casos estava em plena ascensão, e pesquisadores estimavam uma subnotificação de quase 13%.
Santos, bolsista do Laboratório de Estatística e Ciência de Dados da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), passou toda aquela manhã de sábado captando imagens da movimentação na feira e, a cada meia hora, fazia novos sobrevoos. Ele repetiu o processo duas semanas depois. Com vídeos e fotos, somados a imagens de câmeras de segurança, os pesquisadores puderam coletar dados robustos sobre o número total de pessoas, entre vendedores e consumidores, o tempo de permanência na feira, os horários de pico e os mais vazios, além do distanciamento entre os grupos de pessoas.
O procedimento foi complexo: era preciso “limpar” as imagens e identificar à mão quantas pessoas e grupos participavam da feira. A imagem era como um monitoramento qualquer de um evento público, sem capacidade para rastrear pessoas individualmente. “O objetivo era entender qual seria o papel da feira em uma eventual disseminação do coronavírus naquele ambiente, ou seja, como a doença se propagaria se uma ou mais pessoas estivessem infectadas”, explica Sérgio Lira, professor do Instituto de Física da Universidade Federal de Alagoas. Para isso, os pesquisadores precisariam cruzar os dados sociodemográficos da cidade com informações sobre a transmissão da Covid-19.
O instrumento que melhor ajudaria os pesquisadores alagoanos nessa empreitada estava na cidade de São Paulo, a mais de 2 mil km de Maragogi. “O modelo desenvolvido pela equipe da Universidade de São Paulo (USP) era perfeito para fazer esse trabalho, porque conseguia captar as nuances do comportamento individual da população”, diz Lira. A equipe da UFAL entrou em contato com os pesquisadores da USP para o projeto. “Como essas feiras são muito características do Nordeste, ninguém no mundo tinha modelado antes – e eles ficaram muito animados com essa possibilidade.” A surpresa foi que, ao contrário do que os pesquisadores esperavam, a feira não se mostrou um evento grave para a transmissão do vírus. Representava, na verdade, um papel pequeno na probabilidade de infecção.
Os pesquisadores utilizaram os números de casos ocorridos entre o dia 9 de maio e 28 de junho e dados do sistema de saúde fornecidos pelo município de Maragogi para calibrar centenas de simulações virais. Com isso, eles conseguiram reconstruir, tão próximo quanto possível da realidade, a história da Covid-19 no município. Mas, mais importante que isso, eles foram capazes de estimar qual tipo de serviço gerou mais infecções. A feira livre da cidade havia sido responsável por algo entre 0 e 0,07% das infecções. “Esse dado é surpreendente porque as feiras representavam as maiores aglomerações na cidade”, explica Ismael Ledoino, doutorando em modelagem computacional no Laboratório Nacional de Computação Científica.
Os contatos aleatórios em ambientes urbanos abertos também representaram de 0 a 0,07% das infecções. Os resultados indicam que a forma como as pessoas interagem no espaço foi um fator importante para a transmissão do vírus. No caso de Maragogi, cerca de quatrocentas pessoas permanecem nos mais de 1600 m² da feira no horário de pico. Mas o fato de ser um ambiente aberto, onde as pessoas não costumam demorar, fez da feira um serviço menos arriscado para a transmissão da doença.
A grande maioria das infecções – de 75% a 92% delas – ocorreu por contato dentro das próprias casas. Para os pesquisadores, as altas taxas de isolamento ajudam a explicar esse resultado. “Se uma pessoa se infecta na rua, a chance de ela trazer isso para casa é alta. E se essa mesma pessoa não sair para lugar nenhum e só ficar em casa, ela pode infectar os outros moradores da residência”, diz Ledoino. Esse resultado chama a atenção para a transmissão secundária e ratifica a estratégia chinesa de isolamento, em que casos suspeitos foram separados da família e isolados em unidades próprias – essa estratégia ficou conhecida como “supressão” e foi implementada ainda no começo da pandemia. As infecções em hospitais e sobretudo por intermédio das equipes de saúde representaram de 12% a 16% do total.
Depois de calibrar a probabilidade de infecções e comparar isso com a realidade, os modeladores puderam iniciar testes hipotéticos sobre como a pandemia teria sido caso outras decisões tivessem sido tomadas. O cálculo é sofisticado: os pesquisadores simulam centenas de cenários diferentes utilizando supercomputadores da USP para extrair um comportamento médio – operação que pode demorar até dois dias. A pedido da piauí, eles calcularam o impacto do fechamento da Feira Livre de Maragogi, entre maio e junho, e concluíram que a medida não reduziria a transmissão da doença. Pelo contrário: os resultados mostraram que as infecções poderiam aumentar 2%, em média, se essa decisão tivesse sido tomada – isso porque provavelmente as pessoas frequentariam mais mercados e ambientes fechados.
Isso mostra que as decisões precisam levar em conta as dinâmicas sociais de cada região e nem sempre fechar tudo é o melhor caminho para conter a doença. Mas se a prefeitura não tomasse nenhuma iniciativa de prevenção, a quantidade de infecções poderia aumentar, em média, sete vezes. Esse resultado assume condições uniformes de espalhamento da doença, mas as avaliações qualitativas podem guiar políticas públicas mais inteligentes. Outro resultado encontrado pelos pesquisadores mostra que se escolas e restaurantes permanecerem fechados quando menos de 2% da população está infectada – e essa proporção se mantiver acima de 1% ao longo do tempo –, o número de casos da doença é reduzido em ⅓, o que mostra a eficácia desse tipo de intervenção.
“A partir dos dados de atendimento recuperados pela equipe em Maragogi, a gente consegue estimar uma curva de infecção mais próxima da realidade”, explica Guilherme Goedert, especialista em matemática computacional e criador do simulador viral COMORBUSS. Esse modelo computacional foi desenvolvido em parceria com professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (IMPA) e do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC), na USP. O objetivo do programa é analisar a propagação das doenças – entre elas a Covid-19 – por contatos produzidos pela dinâmica social de qualquer comunidade. Isso significa que, através de dados sociodemográficos de uma cidade e informações epidemiológicas descritas na literatura científica, os pesquisadores conseguem desvendar a mecânica social de uma cidade durante a pandemia.
O modelo simula as ações dos indivíduos em vários cenários diferentes e calcula a probabilidade de infecção a partir disso. “É como brincar de The Sims”, resume Goedert. Qualquer informação sobre o comportamento da população maragogiense – como o número médio de moradores em cada casa, a quantidade de pessoas que utilizam cada serviço e a rotina da população – era solicitada aos pesquisadores da UFAL, que se desdobravam para coletar cada dado significativo em parceria com a prefeitura.
Em Maragogi, o resultado da pesquisa foi um alívio para os pequenos produtores. A prefeitura, que cogitava proibir a feira, passou a sugerir protocolos sanitários que garantiam a segurança da população. Os feirantes tiveram que obedecer o espaço demarcado para cada barraca, e apenas moradores da cidade poderiam frequentar o espaço – além do uso obrigatório de máscaras e álcool em gel. “Se a feira fosse proibida, muitos produtores não teriam a possibilidade de escoar seus produtos, e isso afetaria a economia local”, explica Lira.
As respostas encontradas em Maragogi, um pequeno município no litoral de Alagoas, lançam uma luz sobre como as dinâmicas sociais afetam a transmissão da Covid-19 – e mostram que medidas de restrição que dialogam com a realidade local podem trazer o tão sonhado equilíbrio entre saúde e economia. Tanto os pesquisadores de São Paulo quanto os de Alagoas concordam que entender a realidade de cada espaço e a forma como a população interage ao usar cada serviço contribui para a adoção de medidas mais efetivas. O próximo passo, utilizando a modelagem computacional, é tentar prever quando e onde as pessoas poderão se infectar – e qual a probabilidade disso acontecer.
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