Laura Omega e Federico Pita - Intervenção de Paula Cardoso sobre fotos de Agência Brasil e internet
Los negros
Os afrodescendentes da Argentina lutam por visibilidade
A cantora Laura Omega tem um acentuado sotaque portenho e descende de famílias argentinas muito antigas, tanto por parte de mãe como de pai. Quando alguém a ouve cantar no rádio ou em alguma plataforma de áudio não duvida das suas origens: é uma autêntica cidadã de Buenos Aires. Nos shows ao vivo, porém, sempre aparecem espectadores curiosos por saber de que país ela veio. Para eles, Omega poderia tranquilamente passar por uma argentina – não fosse a cor de sua pele.
“Não adianta eu dizer que nasci e cresci em Buenos Aires e que minha família chegou aqui antes da independência. Ninguém acredita”, afirma a cantora. “Invariavelmente me perguntam se algum dos meus pais ou avós é do Brasil ou da Colômbia. A minha aparência não combina com a percepção que o mundo e os próprios argentinos têm da Argentina.”
Com 42 anos, pele negra, lábios fartos e cabelos longos e encaracolados, que ela às vezes pinta de violeta, Omega é para muitos argentinos a encarnação de um velho estereótipo preconceituoso: a mulata brasileira. O jeito exuberante, o seu gosto pelos ritmos pulsantes e a alegria da cantora completam a imagem de estrangeira para os argentinos. “Não se trata de racismo. É pior”, diz Omega. “Como partimos do princípio de que não há negros na Argentina, só posso ser estrangeira, por ser negra. Sou uma estrangeira em meu próprio país.”
Omega, que se tornou uma ativista do movimento negro, lembra o dia em que foi parada com outras pessoas por uma blitz. O policial solicitou os documentos de todos, mas a ela pediu especificamente o passaporte. A cantora perguntou se não bastava mostrar a carteira de identidade, mas o policial insistiu, perguntando quando ela tinha chegado à Argentina. “Respondi que minha família estava aqui desde o século XVI. Certamente, muito antes da dele.”
Ela conta que sentiu que era diferente aos cinco anos, quando foi pela primeira vez à escola. “Sempre me chamavam de negra ou negrita, mas eu não relacionava isso à cor da pele”, disse. “Percebi que uma coisa é ser chamada negra ou negrita de forma carinhosa, como a cantora Mercedes Sosa, que foi apelidada de Negra Sosa. Outra coisa é ser negra de fato e não se encaixar num país de brancos.”
Na Argentina, apelidos considerados politicamente incorretos em muitos lugares fazem parte do cotidiano, como se referir carinhosamente ao marido como el gordo ou à mulher como la gorda – mesmo que ambos sejam magros. Quem tem pele morena ou cabelos escuros costuma ser chamado de el negro ou la negra. Mas expressões depreciativas existem, como cabecita negra, usada para se referir a negros e descendentes de indígenas.
Os preconceitos estão disseminados na linguagem, como no Brasil. Torcidas organizadas, grupos que bloqueiam as estradas para fazer reivindicações ou pessoas que participam de atos políticos de candidatos populistas são às vezes chamados de negros de mierda. “Nestes casos, os negros são os miseráveis, os sem educação – não importa a cor da pele. Importa a classe social”, diz o barbeiro e músico Gabriel Pineda, que compõe raps contra o racismo. Também se pode ouvir, de vez em quando, as pessoas dizerem “que quilombo” para se referir a uma situação caótica.
Na hora de explicar suas raízes, alguns argentinos repetem como um bordão a frase do escritor mexicano Octavio Paz: “Os mexicanos descendem dos astecas; os peruanos, dos incas; e os argentinos, dos barcos.” A boutade faz referência aos milhões de europeus, sírio-libaneses e judeus que desembarcaram entre 1870 e 1950 na Argentina, que era até o início do século XX um dos países com maior número de imigrantes do mundo. Eles somavam 2,4 milhões de pessoas, ou cerca de 30% da população do país, segundo o censo de 1914. O mesmo censo nada falava dos negros.
Mas não foi sempre assim. Um censo feito em 1778 apontou que quase metade dos habitantes tinha origem africana, pois a Argentina também recorreu ao tráfico de africanos. “Foi um dos primeiros comércios do Porto de Buenos Aires”, explica o historiador Felipe Pigna, autor de Los Mitos de la Historia Argentina. Muitos negros eram levados para o interior do país ou outras partes do império espanhol na América do Sul. “Apesar de Buenos Aires ficar à beira do Rio da Prata, aqui não havia metais preciosos como em Potosí, na atual Bolívia, nem cana-de-açúcar ou cultivos que dependessem de mão de obra intensiva”, diz o também historiador Oscar Muiño, autor de Buenos Aires, La Colonia de Nadie (Buenos Aires, a Colônia de Ninguém). Na primeira metade do século XIX, os descendentes dos 70 mil escravos que haviam sido trazidos ao país representavam um terço da população de Buenos Aires, segundo Pigna. Acabaram, porém, desaparecendo das estatísticas. A Argentina aboliu a escravidão em 1853 – 35 anos antes do Brasil.
Se existem argentinos negros, por que eles causam surpresa no país? Para Muiño, porque de fato são poucos em relação à população. O censo de 2010 perguntou às pessoas sobre sua ascendência e, assim, estimou que os afrodescendentes representam 0,4% da população argentina, ou seja, cerca de 150 mil pessoas entre 40 milhões de habitantes. “Os negros eram muitos nos tempos da colônia, mas a população de Buenos Aires era pequena. Foi com a imigração europeia que a população se multiplicou”, diz.
Uma das principais explicações dos historiadores para o reduzido número de negros na Argentina atualmente é que no passado eles tiveram participação muito ativa, como escravos ou libertos, em guerras travadas pelo país. Muitos negros morreram na guerra da independência, que durou de 1810 a 1825, ou na guerra da Tríplice Aliança, entre 1864 e 1870. Outros sucumbiram em epidemias de febre amarela e cólera. Tudo isso levou à redução do número de homens negros e fez com que as mulheres negras acabassem se casando com brancos locais ou imigrantes europeus. “Houve muita miscigenação”, afirma Muiño.
A Constituição de 1853, que aboliu a escravidão, também estabeleceu que o governo federal iria estimular a imigração europeia. Com o florescimento econômico da Argentina, no começo do século XX, as elites enriquecidas almejaram construir uma nação europeia em solo sul-americano, fazendo de Buenos Aires uma imitação de Paris e Londres. A marca europeia está na arquitetura, nos cafés, nas avenidas largas e nos pontos turísticos, como a Torre dos Ingleses, uma construção de ladrilhos vermelhos com um relógio no topo, inaugurada em 1916. Difícil imaginar que, poucos séculos antes, nesse pedaço tão londrino da cidade havia um edifício onde eram reunidos os escravos recém-chegados da África para serem vendidos a proprietários de terras de várias partes da América espanhola. O local era chamado Retiro dos Escravos, mas do nome não resta hoje que a primeira parte, Retiro, que é como se chama a estação de trens em frente à qual fica a torre.
Em 2012, o cardeal Jorge Bergoglio (que se tornaria o papa Francisco um ano depois) participou em Buenos Aires de uma celebração inter-religiosa num templo judaico em que estavam presentes, além de um imã muçulmano, três pais de santo argentinos – todos eles brancos.
São raríssimos os praticantes de religiões africanas no país, mas os negros argentinos elegeram um santo na igreja católica: san Balthazar, um dos três reis magos, cuja festa ocorre em 6 de janeiro (mas pode durar dois dias). Na cidade de Corrientes, no bairro de Cambá Cuá – nome que em guarani quer dizer “caverna do negro” –, as pessoas passam o ano à espera do dia em que trocarão a capa vermelha de São Balthazar. Os festejos religiosos têm algo de Carnaval. Ao som de tambores, multidões saem às ruas para dançar em torno da imagem do santo negro. Esse é um dos poucos resquícios da cultura afro na Argentina.
Como reescrever a história dos negros na Argentina se são tão escassos os vestígios do passado escravocrata? Uma das raras referências ao capítulo da escravidão no país é uma estátua de um negro seminu e acorrentado, esculpida pelo ítalo-argentino Francisco Cafferata, no século XIX. Fica num lugar ermo dos Bosques de Palermo, entre o Jardim Japonês e o Monumento aos Espanhóis. “É preciso buscar a estátua com uma lupa. É a mesma coisa com os capítulos da história dos negros na Argentina”, diz o músico Gabriel Pineda, de 29 anos, que tem pele branca, antepassados europeus, mas também raízes negras, das quais ele se certificou depois de fazer uma pesquisa. “Ser moreno na Argentina é sinônimo de ser pobre, inferior.”
Quando se vasculha a história, descobre-se que a presença dos negros em Buenos Aires foi marcante, até mesmo no tango, um orgulho nacional, cuja origem é atribuída em geral aos imigrantes europeus. “Os pioneiros do tango eram negros”, diz o Pigna, sobre um tema do qual pouco se fala. Ele se refere em particular ao compositor e pianista Anselmo Rosendo Mendizábal, autor do tango El Entrerriano (1897). Os negros também fundaram jornais, como La Raza Africana, criado em 1858, e uma importante associação de ajuda mútua. Além disso, é negra uma das principais heroínas da história do país: María Remedios del Valle. Curiosamente, ela é chamada nos livros de a “mãe da pátria argentina”.
María Remedios estava entre os negros que se uniram aos brancos do país para enfrentar, em 1807, os britânicos que haviam invadido Buenos Aires, então capital do Vice-Reino do Rio da Prata e parte do império espanhol. “Na época, oitenta escravos foram libertados por causa da bravura com que combateram”, diz Muiño. A heroína voltou à frente de batalha nas lutas pela independência da Argentina, ao lado do general Manuel Belgrano. Nos combates, perdeu o marido e dois filhos. Foi presa, ferida e chicoteada pelo inimigo. Sobreviveu e chegou a capitã e sargento-mor do exército. Terminada a guerra, empobreceu e precisou mendigar à porta de uma igreja, até conseguir receber a merecida pensão. Morreu em 8 de novembro de 1847, aos 80 anos. Em 2013, o Congresso aprovou uma lei instituindo a data como Dia Nacional dos/as Afro-Argentinos/as e da Cultura Afro.
“Instalou-se um mito de que somos um país branco e europeu, metido no continente errado”, diz o ativista Federico Pita. “Ou então se diz que os negros na Argentina são senegaleses, cabo-verdianos, brasileiros, colombianos ou uruguaios. Se isso é verdade, eu sou o quê? Um ser inexistente?”, pergunta ele, enquanto mostra o álbum de fotos da família: sua mãe é branca, descendente de judeus russos, mas na família de seu pai todos são negros.
Com cabelos ralos, barba e pele escura, Federico Pita, 41 anos, é fundador e presidente da Organização Diáspora Africana na Argentina (Diafar), que promove cursos e debates sobre racismo e a história dos negros. Há anos, a família dele vem militando pelos direitos dos negros. O tio, Enrique Nadal, fundou em 1986 o Comitê Argentino Latino-Americano Contra o Apartheid, quando voltou da Suécia, onde se exiliou durante a ditadura militar na Argentina. “O que houve foi uma política deliberada para branquear o país”, diz Pita. Uma das formas de fazer isso, segundo ele, foi eliminando a origem étnica da população dos censos.
A barbearia da qual Pita é proprietário, The Blackber Shop, tem estilo vintage e é especializada em penteados afro. Antes da pandemia, nos fins de tarde, ele costumava transformar o local no Espaço Malcolm, pequeno centro cultural que era frequentado pelos vizinhos da Villa Crespo, na periferia de Buenos Aires. Os frequentadores eram sobretudo brancos, que se reuniam para assistir a documentários sobre líderes negros como Martin Luther King Jr., Malcolm X, Nelson Mandela e Angela Davis. No local também há uma prateleira cheia de livros sobre racismo e história dos negros.
A pandemia obrigou Pita a fechar a barbearia em março. Ele só pôde reabri-la cinco meses depois, respeitando o novo protocolo de saúde pública e atendendo duas pessoas por vez. No entretempo, a morte do norte-americano George Floyd, ocorrida em maio, despertou novamente o interesse pela causa negra, até mesmo na Argentina. “Meu telefone não parou de tocar. Acho que nunca dei tanta entrevista na vida”, conta o ativista.
Em julho, a Diafar criou a Escola de História e Pensamento Afrodiaspórico, que começou com um curso virtual dado por professores dos Estados Unidos, do Brasil e de Porto Rico. “Existe uma conscientização crescente de que a Argentina não é tão branca quanto se diz”, afirma Pita. “Passamos anos negando nossas raízes. Muitas pessoas ainda acham que não existem argentinos negros. Por que elas iriam reconhecer, de um dia para o outro, que têm antepassados africanos, se não têm nada a ganhar com isso?” O ativista estima que as pessoas de origem africana na Argentina são em número bem maior do que o 0,4% indicados pelo Censo de 2010. “Somos cerca de dois milhões”, especula. O censo deste ano teria ajudado a responder essa pergunta, mas foi adiado por causa da pandemia.
A luta dos negros argentinos por visibilidade deu um largo passo em dezembro do ano passado, quando o ativista negro Carlos Álvarez Nazareno foi nomeado chefe da Direção Nacional de Equidade Étnico Racial, Migrantes e Refugiados. A revista Afroéminas anunciou assim a nomeação: “Há um século e meio que na Argentina uma pessoa de ascendência africana não ocupava um lugar tão importante na tomada de decisões do setor público.”
Mas Omega discorda. “Nazareno tem origens africanas, sim, mas é um uruguaio naturalizado argentino”, diz. “Tiveram que buscar alguém de fora, por que não existem afro-argentinos para ocupar o cargo?” Ela também questiona o nome do departamento que Nazareno chefia. Não vê motivos para que os negros da Argentina sejam metidos no mesmo setor que cuida de migrantes e refugiados. “Os migrantes e refugiados são estrangeiros. Eu não. Minha família está aqui há mais de quatrocentos anos.” O mínimo que ela quer é ser reconhecida como argentina.
“Nazareno vive na Argentina há quinze anos, tem nacionalidade argentina”, justifica o Secretário de Direitos Humanos da Argentina, Horacio Pietragalla Corti. Filho de desaparecidos da ditadura e autor da Lei do Dia Nacional dos/as Afro-Argentinos/as e da Cultura Afro, Corti afirma que o importante não é discutir nomes dos órgãos públicos, mas sim as políticas que devolvam aos negros a identidade roubada pela história. Mas para o ativista Federico Pita, a reivindicação de Omega faz todo sentido, tanto mais que os “povos originários” da Argentina têm um departamento separado para cuidar de seus interesses. “Os negros na Argentina são considerados estrangeiros, imigrantes”, diz ele.
Para os descendentes de negros na Argentina, se a intenção do governo é de fato integrá-los ao país ao qual pertencem, não bastam discursos sobre a inclusão, tanto mais se contiverem expressões equivocadas. Em dezembro, uma carta assinada por dezesseis associações afro-argentinas criticou o presidente Alberto Fernández e seu antecessor, Mauricio Macri, e pediu o “fim da estrangeirização” da comunidade deles.
A carta cita o decreto nº 658, de 2017, assinado por Macri, em que a Argentina aderiu ao programa Década Internacional dos/as Afrodescedentes, da ONU, e prometeu realizar “ações de visibilidade e promoção de direitos a favor da comunidade afrodescendente na República Argentina”. Cita também a “Mesa Interministerial de Políticas Públicas para a Comunidade Afro na Argentina”, convocada por Fernández. Duas ações aparentemente louváveis, não fosse o uso da preposição “na”. “Não estamos na Argentina. Somos argentinos!”, diz a carta. A preposição, segundo os afro-argentinos, marca a diferença entre ser considerado parte do país que seus ascendentes ajudaram a construir e simplesmente estar nele, como um estrangeiro.
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