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Escarlatina
Eu tinha aprendido a combater, olho por olho, a indiferença da gente grande
Marilene Felinto | Edição 172, Janeiro 2021
Não sei por que Ricardo não olhava na minha cara. É que eu via os olhos azuis magníficos dele e: não sei por que esse menino, Ricardo, nunca olha para mim. Tínhamos 10 ou 11 anos, estávamos na mesma sala da quarta ou quinta série daquela escola.
Não é que eu me importasse, de fato, por Ricardo sequer olhar para mim. O que me espantava era o desinteresse dele pela diferença entre nós – pois eu nunca tinha visto um menino tão branco, tão loiro e de olhos tão intensamente azuis.
Ele só me interessava, de fato, pela diferença. O que eu queria saber era como se nascia com olhos azuis tão azuis que me dava até vontade de rir, às vezes de gargalhar, nervosa.
No recreio, concentrada no jogo de bolas de gude – e menina feliz, sim, ali, entre outras meninas e meninos de olhos escuros –, eu associava as bolinhas de vidro ao azul-claro translúcido dos olhos de Ricardo.
Pois tanto me impressionavam os olhos coloridos que eu, exímia jogadora de gude, tentava acertar principalmente as bolinhas azuis, vítreas, tão maravilhosas na sua transparência de céu, de água de mar. E eu matava, matava, sim, muitas daquelas, que iam então aumentar minha coleção de bolinhas guardadas nos saquinhos de pano, pequenos tesouros em botijas.
Ricardo não me dirigia nenhum olhar. Mas aquela diferença entre nós era para mim um choque de quase alegria – é que eu me reservava o direito de ficar olhando para ele o quanto eu quisesse, e pronto. Como poderia existir coisa tão diferente assim de mim? Eu era nova na cidade e na escola. Nunca tinha visto tão de perto alguém tão branco, nem convivido com olhos daquela cor assim, cara a cara, muito embora Ricardo fingisse que não me via. (Inventei essa hipótese menos terrível, de que ele fingia não me ver.)
Um dia ele faltou à aula, e a professora então anunciou:
– Ricardo não veio hoje. Está doente, com escarlatina.
A notícia inesperada me surpreendeu tanto, como se a sala tivesse de repente ficado vazia, ocupada apenas pela novidade da palavra. Escarlatina.
– Com quê? Que nome! – alguém exclamou, lá do fundo da sala.
– Uma febre, um tipo de febre – a professora explicou.
Escarlatina. Nome desconhecido, que não era nem a coqueluche nem a catapora que eu já tinha tido… nem era aquela doença que fazia o queixo inchar, e a que chamavam de papeira.
– Mas não é papeira? – perguntei à professora, mulher que, estava claro, sempre me ignorava. Perguntei simplesmente para que ela não respondesse, pois se eu sabia que papeira era outra coisa! Sabia muito bem.
– Mas ele vem amanhã? – outra menina questionou.
– Escarlatina é uma doença contagiosa… A gente pode pegar a doença se Ricardo vier para a escola. Ele tem que ficar em casa – sentenciou a professora.
– Mas quando ele vem? – insisti na pergunta, sem resposta. Repeti mentalmente o nome que a mim tinha soado até bonito. Escarlatina. Ia perguntar a minha mãe quando voltasse para casa.
Eu era nova naquela escola, primeira vez que estudava em classes mistas, de meninos e meninas juntos. A escola anterior era só de meninas. A notícia da ausência de Ricardo esvaziara a sala porque era justamente com ele que eu me distraía na aula, observando-o de longe, pelo tempo que eu quisesse, e pronto. (Eu prestava pouca atenção à professora, resolvera desdenhar dela igualmente, com o mesmo descaso que ela reservava à minha pequena pessoa.)
Havia tempos eu tinha aprendido a combater olho por olho, dente por dente, a indiferença que a gente grande, a gente adulta, dispensava a seres menores do que elas, de quem se queixavam sem motivo, a quem ignoravam ou que rechaçavam como empecilhos.
A escola nova me parecia desprezível se comparada à anterior: cinzenta, o pátio acanhado, lotado de crianças que falavam de um jeito diferente do meu e de professores que não davam conta de olhar na minha cara. Sim, porque aquela professora, estava claro, tinha suas preferências, seus alunos e alunas escolhidos (e Ricardo era um deles).
Não que eu me importasse de fato que a professora me ignorasse. Estava acostumada: na minha própria família, de muitas irmãs e irmãos, minha mãe atrapalhava-se, problemática, sem tempo, sem cabeça para atender a tantas crianças na barra de sua saia, como ela dizia.
Cheguei em casa com a pergunta sobre escarlatina, que um menino da escola não tinha nem ido à aula, com escarlatina, “escarlatina”, a professora tinha falado aquela palavra, que era uma febre. Mas que febre? Era um tipo de febre? Como era?
– É febre alta, e a pessoa fica toda manchada no corpo… – a mãe disse.
“Manchada”? Mas que diabo era aquilo? Manchada como? Por favor, manchada como? Ricardo, com sua pele de tanta alvura, manchado? Como seria possível? Por favor!
– Vê se vocês saem da barra da minha saia! – a mãe reagiu, ríspida, no aperreio de sempre.
E por dias que me pareceram intermináveis convivi com aquele mistério, o da palavra e o da pele branca do menino, que estaria toda modificada pela enfermidade estranha. Minha vontade era bater à porta da casa dele, que era apenas na frente da minha, e perguntar, e saber.
Mas Ricardo não era de aparecer muito na rua, só saía com a mãe ou o pai, não brincava de bola de gude, não se sujava na terra fofa, ainda molhada das chuvas da estação. Para jogar aquele jogo, cavavam-se na terra pequenas covas para receber as bolas, e desenhava-se um triângulo no chão. Era mais fácil se a terra estivesse meio solta e úmida.
Mas Ricardo não se sujava na terra escura. Ele, com seus traços finos, seu nariz afilado, seu cabelo loiro e seus olhos azuis, parecia um príncipe daqueles que encontravam botijas de tesouros escondidos ou despertavam princesas adormecidas. No livro da escola tinha esse tipo de história que eu, a bem dizer, achava estúpida. Sim, porque eu não precisava de ninguém para me despertar de nada.
– Teu olho parece uma bola de gude… – arrisquei dizer a Ricardo um dia, e ele escutou, calado, olho no olho comigo pela primeira vez. – Sabia que teu olho parece uma bola de gude azul? – persisti, mas sem resposta.
Teve um dia que eu mesma botei uma daquelas bolas de gude azuis diante do meu próprio olho e fui ao espelho ver como ficava. Dei risadas. Olho de monstro, saltado para fora!
Mas não é que eu me importasse de fato que não tenham dirigido a mim sequer um único olhar outros tantos meninos loiros, de olhos verdes ou azuis, de pele tão branca diferente que dava vontade de tocar neles.
Não é isso. Não era isso.
Não é que eu me importasse que tantos outros seres loiros como Claudio, como Alberto, como Paulo – nomes comuns de meninos, mas absoluta novidade incomum para mim –, que esses tantos seres não tenham se interessado por mim ainda que fosse por uma simples curiosidade movida pela diferença que nos opunha tão fortemente a ponto de dar vontade de rir de nervoso, entre alegria e estupefação.
Não é que eu me importasse de fato… Ricardo não olhava na minha cara, a professora me ignorava, a escola era nova… Mas eu estava tão acostumada, mas tão acostumada! Meu próprio pai tinha suas preferências, suas escolhidas entre nós, as filhas – e não era eu.
Eu estava, sim, acostumada. Muito embora fosse inevitável entristecer às vezes por isso, e ficar andando sozinha pelos cantos do pátio… quando nem brincar de bola de gude servia para aplacar o sentimento de isolamento e raiva. Era uma espécie de dor no peito. A pura verdade era esta: uma dor no peito, de um sufocante soluço que ia se formando lá bem no fundo de mim mesma, avolumando-se, crescendo, encrespando-se, e, se as lágrimas transbordassem em água salgada, seria como uma onda na praia, rugindo e esborrando e engolfando meu corpo pequeno e franzino até atirá-lo todo em miséria na areia. Então eu não permitiria!
Eu estava acostumada que a onda me cuspisse, me expulsasse, me lançasse feito um molambo na beira da praia. Mas eu levantava logo. Aquilo não era derrota para mim, eu que sou do mar, que tinha nascido no mar e vivido no mar. (Eu não precisava de ninguém que me levantasse.) Então eu não permitia que rolasse de dentro de mim aquela onda quente, que se erguesse nas alturas e descesse e explodisse, e se quebrasse toda em forma de choro. Eu não permitia! Estava acostumada.
Na minha própria família, meu pai tinha sua filha preferida, a mais nova, e não escondia isso de ninguém. Eu estava acostumada.
– Engole esse choro! Engole! – meu pai ameaçava várias vezes, corrigindo as filhas. Então eu resistia, ia chorar somente depois, longe daquele homem mau.
Entretanto, passados uns tantos dias, e num momento daqueles em que eu estava toda concentrada no jogo de bolas de gude com outros meninos e meninas na rua, eis que avistamos Ricardo saindo com a mãe. E ele estava com a pele toda avermelhada! Toda, completamente, da cara aos braços e pernas, que ele vestia shorts. Paramos o jogo por alguns instantes, todos nós, imobilizados pela visão inesperada.
Pararam mãe e filho na entrada da varanda, antes de sair pelo portão. E como a varanda se desenhava em forma de portal arqueado, diferente de todas as outras casas da rua, e como a mãe colocou carinhosamente a mão no ombro de seu filho Ricardo, e como parecia que havia um halo acima deles, daqueles dos santos, coroando a cena que lembrava os tipos angelicais pintados nos afrescos da abóbada da igreja, aquilo não parecia nem real.
– Ricardo! – algum de nós exclamou. – Mas você está todo vermelho!
E houve risos aqui e ali. E Ricardo, de fato, de príncipe e anjo que poderia ser, estava de repente diabólico, numa pele que parecia também áspera. Diabólico, a despeito de seus tristes e úmidos olhos azuis.
– Ricardo!
E houve mais risadinhas.
E eu, muda, tomada por tantas emoções, de surpresa, de ironia, de regozijo pelas risadas que as outras crianças soltaram sem hesitação, eu, no fundo de mim mesma, eu exclamei várias vezes, como quem tivesse acabado de matar uma bolinha azulada, cor de céu e mar, eu exclamei, em vingança pura: “Bem feito! Bem feito para você, Ricardo! Bem feito!”
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