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    Ruas vazias no Porto, em Portugal - FOTO: RITA FRANCA / NURPHOTO / NURPHOTO VIA AFP

depoimento

“A fila para enterrar ou cremar corpos é de até cinco dias”

Brasileira radicada em Portugal relata como o país radicalizou medidas para tentar barrar a explosão da Covid-19

Maria Betânia Alves | 29 jan 2021_19h52
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Apandemia de coronavírus em Portugal chegou a uma fase “terrível”, como afirmou o primeiro-ministro português, António Costa, na última quarta-feira (27).  O país ibérico vê, desde novembro, o crescimento exponencial de casos e mortes causadas pela Covid-19. O sistema hospitalar está à beira do colapso e, para evitar ainda mais estragos, o governo estendeu o lockdown nacionalmente pelo menos até a metade de fevereiro. Os voos que saem do Brasil para Portugal estão cancelados desde o dia 29 de janeiro e só devem voltar ao normal depois do dia 14 de fevereiro, se não houver outra suspensão.

Apenas atividades essenciais estão funcionando e quem é pego andando nas ruas sem justificativa está sujeito a multa. A brasileira Maria Betânia Alves, 47, vive no país desde 2019 com o marido, Waldivino Elias, e os dois filhos, João Pedro e Mariana Alves. Cozinheira em um restaurante de Póvoa de Varzim, na região metropolitana do Porto, a sergipana conta que a segunda onda da pandemia parece um filme repetido do que aconteceu em 2020, só que ainda mais grave. Para ela, é preciso viver um dia de cada vez para poder enfrentar a guerra invisível com o Sars-CoV-2. 

Em depoimento a Marcos Amorozo

Quando veio o primeiro confinamento, em março de 2020, eu já estava trabalhando no restaurante onde sou cozinheira. Fiquei muito assustada, pedi demissão e falei que precisava ficar confinada com minha família. Achei que ia ser algo passageiro e que em pouco tempo tudo ia se resolver. Meu chefe disse que segurava a barra, e eu fiquei um mês em casa com ele pagando tudo. Não saí, estava com medo. Não sabia o que ia acontecer no meio daquilo tudo. 

Maria Betânia na frente do restaurante onde trabalha. Desde novembro, o estabelecimento não recebe mais clientes e vende apenas refeições para entrega. Foto: arquivo pessoal.


Em abril, depois de conversar com o dono do restaurante, entendi que a gente precisava voltar de alguma forma. Desde então a gente tá trabalhando. A gente teve que se adaptar ao distanciamento das mesas, ao aumento da higiene e da desinfecção. Nossa maior demanda passou a ser
delivery e take away, quando o cliente vai buscar a encomenda no restaurante. Na medida do possível, parecia que tudo estava caminhando para uma nova normalidade. 

Não só no meu trabalho, mas em todo o país. Você podia sair para fazer exercícios perto de casa, podia passear com cachorro, ir à igreja, o transporte estava funcionando. O ano letivo começou em setembro, e os alunos voltaram para a escola com o horário reduzido. Minha filha, por exemplo, costumava estudar das 8h30 às 17h20 antes da pandemia e, em setembro, reduziram para de 13h às 18h20, para diminuir a quantidade de pessoas circulando na escola no mesmo horário. 

Mas em novembro o número de casos começou a aumentar, e a gente passou a ver o mesmo filme novamente. Nas portas dos hospitais a situação foi ficando cada vez mais tensa. Filas de ambulância, pacientes atendidos de maneira improvisada e explosão das internações. Já chegamos ao ponto de transportar pacientes de Lisboa para o Porto porque a parte Sul do país não dá conta da demanda. Há casos de pessoas que esperam até 9 horas dentro da ambulância para serem atendidas, muitas já equipadas com oxigênio, pois não conseguem respirar bem. Tem hospitais que estão tirando os leitos normais para colocar pacientes de Covid. Cada dia que passa está aumentando. Portugal, inclusive, já tem as novas variantes do Sars-CoV-2.  

A reação do primeiro ministro foi forte: fechamento de todo comércio que não fosse essencial e toque de recolher. Durante a semana, está proibida a circulação de pessoas após as 23 horas e, aos fins de semana, a restrição passa a valer a partir das 13 horas. Academia, shopping, salões de beleza, lojas, tudo que é comércio assim está fechado. Mesmo os cafés, que são muito tradicionais aqui, estão fechados. Supermercados, açougues, farmácias, postos de combustíveis estão abertos. Para a concorrência não ser desleal, essas lojas só podem vender produtos alimentícios,  não prejudicando a concorrência. Por exemplo, um hipermercado não pode vender nada de roupas, livros, objetos para casa e outros produtos que não sejam alimentícios. 

Outra medida foi a proibição de circulação de pessoas entre as cidades aos fins de semana e feriados, salvo as pessoas que comprovarem necessidade de transitar entre os locais para trabalhar ou estudar. As praias daqui também estão fechadas, e ninguém pode ir. Até os jardins e praças estão fechados, com os bancos lacrados para ninguém sentar. 

Praça em Póvoa de Varzim: bancos selados para evitar aglomeração. Foto: arquivo pessoal


A polícia anda de cima para baixo para poder fiscalizar e avisar a população que estamos num toque de recolher. Se alguém desobedece, o agente pode dar uma advertência, encaminhar o indivíduo para a delegacia ou aplicar uma multa. O valor é altíssimo, varia de 200 a 1000 euros e, se não for pago na hora, ainda é cobrado um valor a mais. Todos os policiais que estavam com férias marcadas tiveram o descanso cancelado para estarem nas ruas aplicando as multas. Só no fim de semana passado, mais de quatrocentas pessoas foram multadas e outras levadas à delegacia. Os agentes já chegaram a flagrar pessoas que estavam infectadas e, ainda sim, estavam fora de casa circulando pela cidade. A polícia foi na casa de um infectado, ele não estava lá e foi encontrado na rua. 

Aqui eles têm um controle certinho. Antes de ir para o hospital, é preciso ligar para o sistema de saúde e por lá tem todo o mapeamento, o que permite que eles saibam quem são e onde moram os pacientes. O governo criou um aplicativo que usa esses dados e permite detectar pessoas que estão infectadas ao seu redor. Não é de uso obrigatório, mas quem baixa é monitorado 24 horas por dia e tem acesso aos dados dos outros. Eu não gosto dessa vigilância excessiva, então não baixei.

Nessa última semana, foi decretada a suspensão de voos para o Brasil, além do fechamento de escolas e universidades. Por enquanto, os alunos não estão tendo nem atividades presenciais nem virtuais, e vai ser assim pelos próximos dias. A previsão é de que, a partir do dia 8 de fevereiro, sejam retomadas as aulas remotas. Para alunos de baixa renda que não têm como ter acesso online ou filhos de profissionais na linha de frente contra a Covid, a escola vai abrir para aulas presenciais, mas só para esses alunos. Alguns alunos vão receber computador para acompanhar as aulas  de casa. 

A gente tá vivendo um dia de cada vez e não tem certeza de nada. Eu estou trabalhando, mas milhares de pessoas foram demitidas nos últimos meses, porque muita coisa fechou.  A gente funcionou hoje, mas não sabe se vai funcionar amanhã. É um período de guerra no qual o inimigo é invisível, e você fica de mãos atadas, com medo. A fila para enterrar ou cremar os corpos tem lista de espera de até cinco dias. Por aí você vê o caos que está aqui. É muito triste chegar ao ponto de esperar todo esse tempo para sepultar um ente querido ou ouvir de autoridades que o tempo frio está ajudando na conservação dos corpos durante a espera.


Aqui na minha cidade, como é menor, a gente vê muito as pessoas ajudando umas às outras, principalmente as igrejas e instituições de caridade. Estão distribuindo alimentação para aqueles que perderam o emprego e não têm nada para comer. Estamos tendo um dos invernos mais rigorosos da década. Algumas estações de metrô de Lisboa e do Porto estão servindo de abrigo para moradores de rua. É muito louco isso. Eu estou num grupo de mães brasileiras de Póvoa de Varzim e a gente vê muita história de conterrâneos passando necessidade, assim como os portugueses. Tem sempre alguém pedindo alimento, tudo consequência da pandemia. Para fome não tem espera. 

Em meio ao caos, a solidariedade é um lado positivo dessa situação. Eu ainda sou do tipo de pessoa que acredita no ser humano. A gente tem que sair melhor disso que a gente tá vivendo, tentar tirar uma lição positiva, ainda que seja difícil. Eu falo para o pessoal daqui de casa que a gente tem que levantar as mãos para o céu e agradecer que a gente tem um teto, comida, roupa e cama quentinha, porque tem muita gente que não tem isso. 

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