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    Lima, agora com 40 anos de idade, mostra a face que foi multifraturada na colisão Victor Daguano

depoimento

Um padre, uma travesti, um ônibus e um modelo chamado de “monstro”

O ator paraibano Leandro Lima relembra como quebrou os ossos da cara ao ser atropelado por um ônibus semanas depois de se tornar um prodígio da moda em Milão

Leandro Lima | 10 nov 2023_11h58
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Em depoimento a Pedro Tavares

 

Eu estava terminando a faculdade de Rádio e TV, trabalhando como estagiário em uma agência de publicidade e continuava fazendo shows com a minha banda Ala Ursa, que montei com os amigos da escola. Era o cantor. Tocávamos axé, que naquela época, início dos anos 2000, tinha o destaque que o sertanejo tem hoje em dia. A gente fazia pouca grana porque os caras da banda eram todos solteiros e queriam investir tudo em equipamento. Aos 18 anos, eu já era casado e tinha uma filha. 

Todo mundo tocava meio mal, era mais uma brincadeira de moleques. Até que uma música do primeiro disco, a pior de todas, começou a tocar no Domingo Legal, do SBT. O Gugu [Liberato, apresentador] começou a botar lá para a Helen Ganzarolli dançar num pole dance vestida de leopardo. Estava em São Paulo para me apresentar no programa e passei pelo Shopping Eldorado. Encontrei por acaso uma scouting [recrutadora de modelos], que tempos antes tinha me visto na rua, em João Pessoa, e dito que eu deveria tentar ser modelo. Ela disse que não existia coincidência e falou para eu atravessar a rua até a Elite Models, onde estava um agente italiano. Decidi ir. Cheguei e vi aqueles caras de São Paulo, todo mundo meio cabelinho para o lado, estilo Justin Bieber, e eu com cabelo descolorido meio Blink-182, meio Belo. Fiz as fotos, passei na frente dos bookers e fui embora. Dois dias depois me liga Betina, que era a booker Internacional, falando que o pessoal da Itália ficou super interessado. Queriam que eu viajasse pra Itália, mas teria de bancar minha passagem. Eles só pagavam para as modelos mulheres. Eu não tinha a grana e recusei. Dois dias depois, me ligam falando que eu seria uma exceção. Pagaram a passagem e me deram uma grana para passar a semana e a hospedagem. A banda não estava num bom momento e o trabalho em publicidade não era o que eu esperava. Minha mãe e a Daniela, minha esposa na época, me apoiaram pra ir. A nossa filha, Giulia, estava com 2 ou 3 anos. Pensei: “Beleza, vou para Milão”. Foi a primeira vez em que saí do Brasil.

Me disseram que você caminha aqui, vai e volta, e ganha dinheiro. Naquele momento a minha maior preocupação era ter um montante em euro que desse para Giulia e Daniela viverem no Brasil. Lá, eu comia pasta Barilla e atum de dia e salada à noite. Eu morava num apartamento com dez caras, e no meu quarto tinha um alemão que não tomava banho. Eu não tinha muita ambição naquilo e também não entendia, mas achava dinheiro fácil perto do que eu fazia em João Pessoa, um perrengue desgraçado para ganhar nada.

Eu morava atrás da Estação Central em Milão, na Via Soperga. Um dia, com dois meses na cidade, acordei bem cedo porque tinha um trabalho para a marca Helmut Lang. Lembro de descer o elevador pantográfico do prédio. E a próxima memória é acordar num corredor de hospital. 

Abri os olhos na maca de emergência e minha cabeça latejava como eu nunca tinha sentido na vida. Minha boca estava inchada e eu estava muito arranhado, porque era verão, então eu tinha saído de regata. Ainda não fazia ideia de que tinha sido atropelado por um ônibus, daqueles duplos, sanfonados. Queria entender tudo aquilo ali, não sabia como é que estava a minha cara. Até então, eu não sabia o que tinha acontecido. Eu estava no cantinho do corredor, a maca no chão, com as radiografias em cima de mim, minha mochila jogada num canto. Um cara estava gritando de bruços.

No mesmo dia, me levaram para Monza, a 40 minutos de Milão, para fazer uma cirurgia no rosto. Acordei lá numa cadeira de rodas, me lembro do corredor nitidamente, bem claro e frio. O médico parecia o Kelly Slater, era loiro com óculos e careca. Ele falou que eu tive uma fratura bucomaxilofacial e fraturei o osso zigomático. Disse que eu não tinha risco de morrer, mas se deixasse meu rosto assim ele podia calcificar dessa maneira. Nessa hora eu comecei a chorar desesperadamente. No dia seguinte, eu fui ao banheiro e me vi no espelho. A minha cara era a do Corcunda de Notre Dame, porque era o lado esquerdo muito grande, o olho não aparecia, era um risco só. Eu sentia meu rosto inchado, latejando. O osso da cara trincou, a parte acima da bochecha afundou e subiu o zigomático. Eu pensei: “Impossível eu voltar ao normal, não vou voltar com a mesma cara de jeito nenhum”. 

Eu sempre acordava muito dopado de morfina. Dois dias depois de chegar a Monza, abri os olhos e vi um cara de batina. Tinha certeza absoluta que era uma extrema-unção. Comecei a chorar. “Tenho certeza de que eu vou morrer”, pensei. O pai do Mecinho, nosso empresário da banda de axé, era o prefeito de João Pessoa e ele tinha um amigo padre, em Pádua, que viajou até Monza, sem avisar. 

“Calma, meu filho, sou o Padre Robson, amigo de Cícero. Eu tô vindo de Pádua. Eu moro lá, sou diretor de uma escola e tô vindo aqui para te visitar, seus amigos e sua mãe estão muito preocupados. Mas já falei com os médicos e eles dizem que você vai ficar bem.”

No terceiro dia, entra o diretor do hospital com toda a equipe médica que estava lá comigo e falando português, disse que trabalhou muito tempo na Bahia: ”Soube do seu caso e que você é modelo, então nós vamos também fazer uma cirurgia modelo em você. Vai voltar pro Brasil do jeito que você chegou.” Eu aceitei na hora, não queria mais ficar sentindo meu globo ocular batendo no osso.

A primeira coisa que eu fiz quando acordei da operação foi passar a mão no rosto, para ver se eu encontrava os pontos, do lado da costeleta e em cima do olho. Fui botando a mão e não achei ponto nenhum. Aí o pensamento foi: “Não me operaram. Não tô acreditando.” 

Fui tentar engolir a saliva. A minha língua tava enorme e inchada. Comecei a sentir os pontos por dentro. Aí veio uma médica e me mostrou as fotos da cirurgia, feita com uma placa com uma liga metálica que se dissolve com o tempo. A cirurgia desloca o maxilar, a língua vem pra fora e eles vão deslocando a pele do rosto ali pra cima. Uma coisa horrível de ver, mas foi um sucesso. Falaram que eu ia ficar igualzinho a quando cheguei. 

Aí fiquei lá no hospital mais uns dias e chegou a hora de voltar para casa, mas não poderia pegar um avião. A variação de pressão poderia quebrar os ossos. Me orientaram também a não segurar espirro, pelo mesmo motivo. Então fiquei na Itália, com os 300 euros que a agência me deu. Estava começando o período do “Ferragosto” – em agosto tudo fecha em Milão para férias. O Paulo, colega da república de modelos, se dispôs a ficar comigo.

Quando eu saí do hospital e cheguei no apartamento parecia reunião de condomínio, com os outros modelos me esperando. O Paulo já tinha falado pra eles que minha cara tava inchada, toda roxa. Eu não sabia se era curiosidade de me ver todo quebrado ou realmente uma preocupação. Acho que era um pouco dos dois. Eu não tinha muito dinheiro, não poderia pegar trabalhos e estava impedido de voltar ao Brasil. Eles me incentivaram a registrar um boletim de ocorrência. Apareceu um outro modelo, que sugeriu procurar a Kate, uma expert em casos de indenização. Saímos todos para lá, numa peregrinação – eles a pé, e eu de muleta. 

Chegando à casa, Kate saiu do quarto: era uma mulher trans com biquíni do Brasil, que disse:

“Nossa Senhora, o menino está muito prejudicado. Isso aí é milhões [em indenização], pelo amor de Deus. Vem aqui, menino, que eu vou te ajudar porque você é brasileiro e porque você vai me dar um anelzinho da Cartier quando você ganhar dinheiro.”

Meus amigos ficaram meio receosos: “Cara, tu vai confiar assim nela?” E a Kate ficava se vendendo muito: “Eu sou do Rio de Janeiro, italiano não me engana, eu sou do Morro do Macaco, você acha que um viado preto ía tá andando de conversível em Milano? Eu sei de tudo.” 

Falei pra eles: “Agora eu não tenho nada, eu tenho a Kate.” Ela me levou para fazer boletim de ocorrência e a polícia entendeu que eu estava atravessando na faixa de pedestres.” E eu teria que esperar.

Paulo e eu compramos uma barraca daquelas montadas em 2 segundos e fomos para o litoral tentar vender caipirinha na praia. Investimos o dinheiro em um cooler de rodinha, as melhores vodcas e copos e canudos bonitos. Só não sabíamos que não se vende nada na areia no litoral italiano, ao menos naquela região, de Milano Marittima. No final da tarde ficamos oferecendo os drinks pra galera na rua que tava saindo da praia. Ninguém comprou nada, mas fizemos amizade com um grupo de meninas e elas nos deixaram montar a barraca na varanda da casa. Uma delas tinha um bar e estava procurando bartender para fazer um evento no dia seguinte. O cachê pela noite seria de 90 euros. Topamos na hora, era uma chance de fazer algum dinheiro.

Chegamos lá e tinha uma galera fazendo os preparativos, e a gente ia ficar ali servindo. Aí começam a chegar uns caras de moto, carecas e com cara de mau. Era um evento dos neofascisti, da Itália. Eu não entendia muito disso, mas lembro de achar estranho, uns tinham tatuagem da suástica no braço. E nós dois, brasileiros. Com medo, fazíamos uns drinks sinistros de propósito, misturando Cuba Libre com vodca, whisky. Escondemos o dinheiro no avental. Até que fugimos dali. 

Na rua, por acaso, encontramos a Kate, no carro conversível dela. “Monstro!!”, ela me chamou. Queria dar continuidade no processo da indenização, mas a essa altura eu só queria voltar para o Brasil. Kate deu uma carona pra gente de Rimini, onde nós estávamos, até Riccione, cidade vizinha. Perto de onde a Kate nos deixou nós vimos um gramado com umas árvores e armamos a barraca ali. Daqui a pouco, eu já quase dormindo, ouço a sirene dos carabinieri (a polícia de lá). “O que vocês estão fazendo acampando dentro do fórum?”, perguntou um dos agentes. Saímos logo e acabamos dormindo num terreno de escavação arqueológica, vimos uns morros de areia e armamos a barraca por ali. No dia seguinte estavam fazendo fotos da gente achando que éramos arqueólogos acampando.

Quando passou o prazo de recuperação da cirurgia e eu pude voltar a João Pessoa com o pouco dinheiro que tinha, decidi que nunca mais seria modelo e voltei a trabalhar com publicidade. Tinha um sócio investidor, convidei alguns amigos e abrimos a agência Trampolim. Até que apareceu uma publicidade da Nivea que pagava uma grana pesada. Voei para Milão, fiz o trabalho e acabei ficando mais dois anos lá. Nunca tive muito apego a essa carreira. Ia fazendo o que aparecia. Conheci a Flávia [Lucini, modelo], minha esposa. Fomos morar em Nova York em 2012, estudei atuação e nesse período surgiu o primeiro convite para fazer uma novela daqui, Joia Rara, da TV Globo. Eu ainda era limitado nas habilidades, mas foi bom pra começar. Eu não dominava a parada ainda, e nem acho que domino. Mas estou no caminho. Tudo começou a acontecer e passei a escolher por onde meu coração leva.

Continuo falando muito com a Kate no WhatsApp, ela manda figurinhas ótimas, bem de “mãe”. O padre Robson batizou o meu filho, que está com 1 ano e 4 meses. A face esquerda virou meu “lado bom” para fotos. E nunca mais segurei um espirro.

 

Leandro Lima atuou em peças como <i>Gaslight</i> e novelas como <i>Pantanal</i>. Está no ar em <i>Terra e Paixão</i>, na TV Globo, e no filme <i>O Lado Bom de Ser Traída</i>, da Netflix

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