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Boca de esponja
Como o bolo de Bolsonaro nos comeu
Fernando de Barros e Silva | Edição 174, Março 2021
Quando o atual governo começou, havia uns chatos que insistiam em dizer que a democracia brasileira estava seriamente ameaçada. Eram minoria, embora tivessem evidências robustas a seu favor. A começar pela figura inequívoca de Jair Bolsonaro. O candidato reiterou inúmeras vezes que, como presidente, seria fiel à sua biografia. A não ser em relação à economia, cuja condução delegava ao mercado assinando uma procuração em branco para o Posto Ipiranga, Bolsonaro atravessou a campanha em conformidade com seu estilo e seus valores: brincou de dar tiros, prometeu fuzilar a petralhada, humilhou minorias, destratou jornalistas, escarneceu das instituições. Evocou mais de uma vez o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra como ídolo maior da galeria de monstros que diz admirar.
Sem deixar de ser uma ruptura, a chegada de Bolsonaro à Presidência veio completar um processo vertiginoso de erosão da democracia que estava sendo gestado no país havia anos, e sem o qual a mitologia criada em torno de um personagem tão desqualificado seria impensável. Conhecemos o filme: as manobras de Aécio Neves para pôr sob suspeição o resultado da eleição de 2014, o impeachment “mandrake” de Dilma Rousseff em 2016 e a prisão arranjada de Lula em 2018 são como estações de um mesmo trajeto por onde passou um trem desgovernado, recolhendo mais e mais gente a cada parada, rumo à estação Messias, seu destino final. O ponto de partida dessa viagem ao fundo da noite está lá atrás, nas Jornadas de Junho de 2013, quando forças de direita até então desconhecidas capturaram a energia social de contestação que havia tomado as ruas.
A sequência de acontecimentos indicando que a democracia esfarelava diante de nós e o fato de Bolsonaro ter apresentado todas as suas credenciais não foram suficientes para abalar as convicções do “cidadão civilizado”. Muitos preferiram fechar os olhos e brincar de as instituições estão funcionando. A ideia de que o presidente seria domesticado pelo cargo e/ou pelo sistema de freios e contrapesos próprios dos regimes democráticos deu a tônica da crônica política nos meios de comunicação e nos ambientes acadêmicos durante um bom tempo.
Esse sentimento (ou, melhor dizendo, esse cinismo da classe dominante que abraçou o diabo em troca não da juventude eterna, mas da promessa infinita de privatizações) foi expresso de maneira definitiva por Paulo Guedes, ainda durante a campanha: “Amansa o cara! Acho que Bolsonaro já é outro animal”, disse o então futuro ministro a Malu Gaspar, em perfil publicado pela piauí em setembro de 2018.
Estamos vendo agora, com a crise deflagrada pela intervenção na Petrobras, quem foi amansado e quem já é outro animal. Bolsonaro transformou seu posto de serviços em cão vira-lata que mija sobre suas próprias convicções, mas não larga o osso. O raciocínio não vale só para Guedes, evidentemente.
Quando esse pesadelo teve início, dizia-se que o governo era sustentado por um tripé. Ao lado do banqueiro egresso da escola de Chicago, com uma folha de serviços prestados à ditadura de Augusto Pinochet, estava Sergio Moro, aquele que havia posto Lula atrás das grades e limpado o caminho para o triunfo de seu novo chefe. Na retaguarda, completando a trinca, os generais, considerados uma salvaguarda de bom senso e moderação contra as inconsequências e os arroubos do capitão (traços que eram vistos positivamente, como sinônimos de sua autenticidade).
As coisas apareciam na grande imprensa quase como se Bolsonaro fosse o preço a pagar em nome de uma causa maior, uma espécie de pedágio acidental para que Guedes, Moro e o generalato pudessem tomar conta do país. Afinal, o juiz havia livrado o Brasil do PT, e o domador de animais ofertava ao capital o Eldorado das reformas e dos grandes negócios. A adesão do patronato à agenda de Guedes era irrestrita. E, com uma ou outra exceção, os meios de comunicação haviam comprado a fabulação da Lava Jato pelo valor de face. Além disso, nos primeiros meses de governo, os militares palacianos apareciam com frequência na imprensa, sempre na condição de interlocutores sensatos, dispostos a debater os problemas nacionais.
Não demorou muito para que essas figuras supostamente respeitáveis fossem se volatilizando. Assim como está fazendo com Guedes, Bolsonaro encolheu os generais. Foram todos reduzidos ao seu tamanho. Moro, por sua vez, podia estar coberto de razão no episódio que provocou sua saída do governo, mas a fantasia do herói já havia sido rasgada. Ele é hoje um ex-juiz sob suspeição, com o agravante de ter torrado seu cacife político para emprestar uma aparência de legitimidade a um projeto de poder miliciano na raiz.
Moro, Guedes, generais – todos se bolsonarizaram. Sucedeu aos medalhões do governo algo semelhante ao que se passa no poema O Bolo, de Carlos Drummond de Andrade, publicado em Lição de Coisas (1962). A primeira estrofe diz o seguinte:
Na mesa interminável comíamos o bolo
interminável
e de súbito o bolo nos comeu.
Vimo-nos mastigados, deglutidos
pela boca de esponja.
O registro surrealista e meio brincalhão desses versos serve, no nosso caso, para jogar luz não apenas sobre o absurdo da situação brasileira, mas sobre a quase impossibilidade de traduzir à altura esse absurdo. A boca de esponja de Bolsonaro engoliu os comensais. Podemos ouvir a voz do Bolo escarnecendo de todos: Vocês acreditaram em Sergio Moro? Pois eu estou entupindo o país de armas e de munições. E o povo armado jamais será derrotado. Vocês confiaram na excelência dos generais? Pois eu lhes dei Pazuello como presente na pandemia. Também depositaram expectativas em Paulo Guedes? Deixe eu lhes contar um segredo: o Posto Ipiranga disso daí sou eu.
Para avaliar o tamanho dessa indigestão histórica seria preciso considerar ainda o que está sendo feito do meio ambiente, da educação, das relações internacionais, da cultura, dos direitos humanos. Falar em franja radicalizada do bolsonarismo é uma ilusão retórica. Faz supor que há um miolo moderado ou ao menos “conversável” entre os colaboradores do presidente. O bolsonarismo é radical, ou extremo, no seu núcleo. A única franja radical do bolsonarismo é aquela franjinha de Jair Messias. Radicalmente kitsch, com evocações hitlerianas, a emoldurar o rosto aversivo, sem lábios e com pele escamada. Bolsonaro lembra um lagarto de peruca. Mas voltemos.
Mesmo a prisão recente desse marmanjo anabolizado, o deputado de Cro-Magnon, pode ser entendida na perspectiva do poema de Drummond. Não haverá impeachment de Bolsonaro, depois de tudo o que ele fez. Como prêmio de consolação, o Supremo Tribunal Federal manda prender Daniel Silveira e a Câmara cassa seu mandato. As instituições estão funcionando. O Bolo nos comeu.
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