João (à direita), com a família em 2014, durante trégua na campanha presidencial de Eduardo: na disputa pela Prefeitura do Recife, os clãs Campos e Arraes produziram cenas nas quais faltou apenas “sangue civil tingindo mãos cidadãs” CREDITO: ALEXANDRE SEVERO_2014
O herdeiro
João Campos, o jovem prefeito do Recife, e os dramas agrestes de uma dinastia política
Consuelo Dieguez | Edição 175, Abril 2021
O prefeito do Recife, João Campos, se aproximou do topo da escadaria do Alto do Buriti, em uma comunidade pobre da capital pernambucana, apreciou por alguns instantes a vista da cidade iluminada abaixo dele e apontou para o Parque da Macaxeira, localizado quase ao pé do morro. Com 10 hectares de extensão, o parque foi inaugurado às pressas por seu pai, Eduardo Campos, em seu último dia como governador (2007-14). Com o braço estendido e entusiasmo na voz, o filho disse: “Meu pai gostava tanto deste projeto que acompanhava a obra diariamente. Este é o maior parque da cidade.” Em seguida, com uma expressão marota, fez uma provocação. “Mas eu vou barrar ele. Vou fazer um parque ainda maior”, e deixou o riso escapar por debaixo da máscara que lhe cobria o rosto.
Era começo da noite de 12 de janeiro e João Campos, embora completasse quase doze horas de trabalho, não aparentava cansaço. Eleito prefeito da cidade pelo Partido Socialista Brasileiro (PSB) em novembro passado, desde que tomou posse ele ocupa parte do seu dia visitando bairros da cidade. Faz tudo acompanhado de uma equipe de cinco pessoas, que grava todos os seus movimentos e suas falas, que são imediatamente postados nas redes sociais. A presença constante nas ruas do Recife, sempre misturado aos moradores dos lugares que visita, levou adversários políticos a dizerem que ele continua em campanha. Campos não se abala. “Parte do trabalho de um prefeito é ir para a rua, ouvir os moradores da cidade, entender seus problemas e suas necessidades”, diz.
Aos 27 anos, João Campos é o mais novo prefeito de capital do Brasil. O maior desafio de sua estreia, no entanto, não é a juventude, mas a comparação a que está submetido – e sempre estará – com dois dos políticos mais carismáticos do estado nos últimos setenta anos: seu bisavô, Miguel Arraes de Alencar, morto em 2005, e seu pai, Eduardo Henrique Accioly Campos, que morreu em acidente aéreo durante a campanha presidencial de 2014. Os dois, bisavô e pai, faleceram no dia mais agourento da política pernambucana: 13 de agosto. Ainda que João Campos tente se livrar das comparações – e ele mesmo brinca de desafiar a obra de seu criador –, não há lugar em que ele não ouça referências aos dois líderes políticos. “Espero que você faça por nós o que seu bisavô fez”, lhe disse um homem, na porta de uma mercearia, no Alto do Buriti, onde ele entrou para cumprimentar os moradores. “Eu gostava muito do seu pai, não vá me decepcionar”, berrou uma mulher, enquanto ele caminhava pelas ruas do bairro para inaugurar a troca da iluminação pública por lâmpadas de LED, projeto que, iniciado na gestão do seu antecessor, Geraldo Julio, também do PSB, João Campos promete estender para toda a cidade. Conforme o caminhão da prefeitura passava trocando as lâmpadas dos postes e iluminando radiosamente as ruas, Campos acompanhava o veículo, seguido por um séquito de assessores e moradores.
João Campos é o herdeiro de um dos clãs políticos mais longevos de Pernambuco. Desde os anos 1950, com exceção do período da ditadura militar, Miguel Arraes e, mais tarde, Eduardo Campos sempre tiveram protagonismo na política local. O Doutor Arraes, ou Véio Arraia, como era chamado pelos sertanejos que o veneravam, foi prefeito do Recife, deputado estadual, três vezes governador e três vezes deputado federal. Eduardo, como os eleitores o tratavam, foi duas vezes governador, deputado estadual, deputado federal e ministro da Ciência e Tecnologia. Membros da elite econômica e cultural de Pernambuco, os dois sempre foram considerados os mais proeminentes líderes de esquerda do estado.
Arraes, nascido numa família de classe média em Araripe, no Ceará, formou-se pela Faculdade de Direito do Recife. Após um período no antigo Instituto do Açúcar e do Álcool, no Rio de Janeiro, voltou para o Recife em 1948, a convite do então governador do estado, Barbosa Lima Sobrinho, que o nomeou secretário da Fazenda. Na capital pernambucana, casou-se com Célia de Souza Leão, filha de usineiros e herdeira de uma das maiores fortunas do estado. Em 1959, aos 42 anos, foi eleito prefeito do Recife. Em 1962, elegeu-se para o governo do estado, e bateu de frente com os usineiros ao proibir que a polícia estadual atuasse como milícia contra os trabalhadores rurais que reivindicavam melhores condições de trabalho. Criou vários programas que beneficiaram a população mais pobre, como crédito subsidiado ao pequeno agricultor e para a aquisição da casa própria. Por causa dessas medidas, nunca foi perdoado pela elite local.
A revanche viria no golpe militar. Tachado de comunista pelos militares e pela direita pernambucana, Arraes foi deposto no mesmo dia do golpe, ficou preso por mais de um ano e partiu para o exílio na Argélia, em 1965. Só voltou ao Brasil em 1979, com a Lei da Anistia. Juntou-se ao MDB de Ulysses Guimarães, a legenda que combatia a ditadura, e só deixou o partido em 1990, quando entrou para o PSB , do qual mais tarde se tornou presidente. Transformou a pequena legenda em uma potência política em Pernambuco e em um importante partido de centro-esquerda no país.
Quando seguiu para o exílio, Arraes tinha oito filhos com a primeira mulher, da qual enviuvara, e um filho com sua nova esposa. No Brasil, ficou apenas a filha Ana Arraes, casada com Maximiano Campos, um importante escritor local com quem teve dois filhos: Eduardo e Antônio. O primogênito poderia chamar-se Eduardo Arraes Campos, mas, por causa da perseguição política à família, o sobrenome do avô foi suprimido. O garoto cresceu no Recife, formou-se em economia na Universidade Federal de Pernambuco e começou sua militância política no movimento estudantil até filiar-se ao PMDB e, mais tarde, ao PSB. Assim como o avô, sempre esteve mais próximo da social-democracia do que do ideário socialista anunciado no nome da legenda.
Arraes nunca encorajou os filhos a entrar para a política. Costumava dizer que liderança não se herda, se conquista. Tanto que, à exceção de Ana, que foi deputada federal por insistência do filho e não do pai, nenhum deles seguiu seus passos. Quando instado a falar sobre a presença do neto Eduardo na política, ele dizia, quase com irritação: “Eduardo já estava fazendo política quando eu estava no exílio. Não fui eu que o coloquei nisso.” No entanto, ao ser eleito governador em 1986, Arraes escolheu o neto para ser chefe de gabinete. Quando foi eleito de novo em 1995, nomeou-o secretário de Fazenda do estado, dando ao neto, como acontece nas oligarquias que se prezam, o mesmo cargo que ocupara quase quatro décadas antes. Dali em diante, Eduardo Campos só avançou na carreira política até se lançar candidato a presidente da República e morrer durante a campanha quando seu avião caiu em Santos, no litoral paulista.
Ao contrário do seu avô, Eduardo Campos sempre quis que os filhos trilhassem seu caminho. Em 2014, chegou a cogitar lançar João, que nem completara 21 anos ainda, como candidato a deputado federal naquele mesmo ano. O então presidente do PSB, Carlos Siqueira, político muito ligado a Arraes, achava que a candidatura passaria a impressão de que Eduardo estava querendo criar a dinastia dos Campos, como José Sarney no Maranhão e Antônio Carlos Magalhães na Bahia. Renata Campos, a mãe de João, que sempre atuou nos bastidores da política, também não gostou da ideia. Queria que, antes de abraçar a política, o filho candidato se formasse na Universidade Federal de Pernambuco, onde cursava engenharia civil. “Ela costuma dizer que política não é profissão. Que antes de tomarem esse caminho, os filhos precisam ter uma profissão caso deixem a vida pública”, contou Siqueira. João não foi candidato.
Dos cinco filhos de Eduardo e Renata, apenas a mais velha, Maria Eduarda, arquiteta, e o caçula, Miguel, ainda muito criança, não demonstraram pendor pela política. Os outros três – João, Pedro e José – desde cedo acompanharam as atividades do pai. “Ele nunca foi de mandar tirar os filhos do terraço quando havia políticos na casa”, contou João Campos. O terraço da casa – um chalé branco, cercado por um grande jardim e protegido por um muro alto, onde Renata vive até hoje com o filho mais novo – era o lugar das reuniões com correligionários, inclusive nos fins de semana. “Nós crescemos vendo meu pai fazer política. Nós víamos a paixão dele. Ele sempre nos disse que a política era o caminho para mudarmos a sociedade.” Alguns amigos de Eduardo Campos o consideravam um compulsivo. “Ele era um homem de um tema só”, descreveu um aliado. “As pessoas gostam de música, de literatura, de viagens. Gostam de falar de vários assuntos. Com Eduardo, isso era impossível. Ele só falava e pensava política 24 horas por dia.”
A morte de Eduardo Campos acabou antecipando a entrada de João na vida pública. Depois do acidente, a família se reuniu no flat paulista que funcionava como base de campanha do candidato para retirar seus pertences. Ali, João soube que seria convocado pelo PSB a participar da campanha ao governo estadual de Paulo Câmara, que tinha sido indicado pelo seu pai. Ficou quinze dias trancado em casa e então decidiu que aceitaria a convocação. “O mantra que eu repetia era: ‘Vou fazer o que meu pai gostaria que eu fizesse.’ Ele não gostava de me ver para baixo. Não gostava de ver ninguém para baixo. Pensei que se ele estivesse lá, ele estaria na linha de frente, aceitando qualquer desafio. Decidi que era também o que eu tinha que fazer.”
Em apenas quinze dias, acompanhado pelo vice da chapa, o emedebista Raul Henry, João visitou 44 cidades. “Era uma comoção quando o João chegava. Ele subia num caixote, começava a falar e a multidão se aproximava”, contou Henry, hoje deputado e presidente do MDB de Pernambuco, durante uma conversa em janeiro, na sede do partido, no bairro do Recife Antigo. Na realidade, isso se devia à comoção ainda latente com a morte do pai no acidente aéreo. João conta que, naquele momento, se sentiu muito à vontade discursando nos comícios, embora fosse a primeira vez que se submetia àquela experiência. A partir daí, ainda que não tivesse se formado em engenharia como queria sua mãe, João abraçou a política com entusiasmo.
Ele conta como se deu o processo. “Sempre gostei de política, sempre acompanhei o meu pai. Mas isso não significava que eu queria ir para a linha de frente”, disse. “Eu tinha a compreensão de que eu queria fazer parte da política, mas não necessariamente disputar eleição. O que eu queria era estar ao lado do meu pai.” O acidente fatal mudou tudo. “O falecimento dele foi muito duro para a família. Do ponto de vista pessoal, a vida muda. Nós somos uma família muito unida, cinco irmãos, os pais casados há trinta anos. Tudo isso virou de cabeça para baixo, como aconteceria com qualquer família.” Mas havia aí o componente político que o pai representava no cenário nacional. “A repercussão nacional que a morte dele teve fez com que sentíssemos a nossa dor sendo compartilhada por muita gente. Nós estávamos no meio da eleição presidencial e para o governo do estado. Meu irmão Pedro e eu estudávamos e, na semana seguinte, íamos trancar o curso para ajudar na campanha de nosso pai”, contou.
Com a folgada vitória de Paulo Câmara, a história voltou a se repetir. João Campos foi nomeado para a chefia de gabinete do governador, o mesmo cargo que seu pai ocupou no governo do avô. Exatamente como o pai, João também tinha 22 anos quando chegou ao cargo. Ali, o jovem fez contatos com parlamentares, prefeitos e políticos do interior. Começou a acompanhar o funcionamento da máquina pública e, depois de se formar em engenharia, nunca fez outra coisa. Em 2018, elegeu-se deputado federal por Pernambuco com 460 mil votos, a maior votação da história do estado. Exerceu por apenas um ano seu novo mandato, do qual abriu mão para lançar-se à Prefeitura do Recife. “Ele é um jovem preparado”, avalia Antônio Lavareda, cientista político pernambucano e especialista em comportamento eleitoral e marketing político. “Acompanhou o trabalho do pai e depois o de Paulo Câmara no governo do estado e acabou ganhando experiência com isso.”
Seu sucesso tem a ver com o bisavô e o pai? Com uma fala arrumada, João responde: “Eu não me coloco na posição de herdeiro. Eu sempre afirmo que o legado de Arraes e de Eduardo vai ser de quem acredita na política como elemento de redução das desigualdades e de se fazer justiça social. Qualquer pessoa que acredita nessa boa prática representa o que eles acreditaram e fizeram.” E continuou, sem pausa. “Eu os considero referências na minha vida, mas não estou aqui para ser maior do que eles ou para copiá-los. Eles fizeram política em outros tempos e de uma forma completamente diferente de como eu faço, mas que tinha um objetivo muito nítido que era fazer da política um instrumento de transformação social.” E concluiu: “Na vida a gente tem que aprender a construir o nosso caminho, que não tem que ser igual ao de ninguém.”
João Campos é magro, de estatura mediana. Tem cabelos castanhos ondulados, imensos olhos azuis e um largo sorriso de dentes perfeitos que se abre debaixo de um nariz proeminente. A fala é articulada e serena. Ao se expressar, parece tratar-se de uma pessoa mais velha, com as manhas de políticos experientes. No entanto, frequentemente deixa escapar um entusiasmo juvenil ao falar de seu trabalho na prefeitura. Nessas horas, costuma abrir o enorme sorriso. Presta muita atenção às perguntas, fixando o olhar no interlocutor, e responde imediatamente qualquer questionamento, sem pausa para reflexão. Veste-se de maneira informal, sempre de calça jeans, camisa justa abotoada na frente e sapato social. Só usa blazer em ocasiões mais solenes, como quando participa de eventos ao lado do governador Paulo Câmara.
Desde o final de 2019, divide-se entre a política e sua namorada, a deputada Tabata Amaral, eleita pelo PDT de São Paulo. A aproximação do filho da aristocracia pernambucana com a jovem de 27 anos, criada na periferia paulistana, causou frisson nos meios políticos e nas colunas de fofoca. O encontro se deu porque passaram a trabalhar juntos numa comissão parlamentar que acompanha o trabalho no Ministério da Educação, um tema caro aos dois, numa época em que João ainda estava noivo. Numa conversa online no começo de março, a deputada disse que, antes de engatarem o namoro, o que lhe chamou a atenção em João era seu compromisso e a disposição para o trabalho. “No começo, as pessoas insinuavam que nós estávamos namorando. Nós ríamos com aquelas provocações porque não era verdade. No fim, tudo aconteceu muito naturalmente”, disse, sorrindo.
Depois de conhecer melhor o namorado, Tabata diz que se encantou com “o genuíno interesse dele pelas pessoas menos favorecidas”. “Eu vim da periferia, ele é um jovem de classe média alta. Por isso, me fascina ver como ele realmente se emociona e se envolve diante de uma situação de injustiça.” Outro ponto a favor do namorado, ela diz, é a leveza. “Eu sou do signo de Escorpião. Sou muito intensa. Por isso aprendo muito com ele. Ele é leve, divertido, generoso”, derrama-se. Os programas preferidos dos dois, quando conseguem se encontrar nos fins de semana, são assistir a séries na Netflix e fazer trilhas na mata nos arredores do Recife e no interior de São Paulo. O intenso trabalho na política, ela reconhece, tem dificultado os encontros, mas eles se falam bastante.
No dia seguinte à visita a Alto do Buriti, João participou da inauguração de uma ala especial para infectados pela Covid-19 em um hospital municipal, ao lado do governador. Sempre acompanhado por sua equipe de áudio e vídeo, cumprimentou os enfermeiros dando soquinhos nas falanges, como costuma fazer, e gravou sua participação no evento. Aproveitou para visitar o pronto atendimento do hospital, onde, novamente, foi saudado pelas pessoas. Em seguida, às 15h15, rumou para o bairro popular Córrego da Areia, arrastando consigo a equipe de cinegrafistas, para fiscalizar o trabalho de contenção de encostas feito pela prefeitura em parceria com os moradores. A prefeitura entra com o material e a assistência técnica e os moradores se ocupam da obra. No bairro, ele foi saudado entusiasticamente pelos moradores. Nessas horas, ele levanta os braços e acena para a multidão que grita o seu nome.
Muitos moradores, principalmente as mulheres, não se contentam em cumprimentá-lo de longe e o abraçam para tirar fotos. Embora à vontade no meio da multidão, ele se constrange quando as mulheres, de todas as idades, o chamam de “lindo”. Uma trabalhadora ambulante de meia-idade correu até ele e o cumprimentou com empolgação. Ele é um bom prefeito? Com olhar zombeteiro, ela respondeu: “Bom? Ele é ótimo! Tinha três filhos com ele”, e gargalhou. João se afastou, apressado.
Pela manhã, o prefeito participara de outro evento com o governador. Dessa vez, recebeu o deputado Arthur Lira (PP-AL), então candidato à presidência da Câmara apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro. Com o encontro, deu asas à especulação de que, na surdina, estaria apoiando Lira contra o candidato da oposição, Baleia Rossi (MDB-SP). Ele nega. “Eu recebi e receberei qualquer pessoa que esteja pleiteando posição estratégica do país. Aqui conversamos com Arthur Lira e Baleia Rossi. Ambos foram recebidos.” Em seguida, recorreu ao velho patuá das raposas políticas: “Nunca me envolvi de maneira direta, mesmo porque não sou eleitor, não sou mais deputado. Nem tenho como influenciar. Além do mais, meu partido se posicionou contra a candidatura de Lira.”
Na sexta, dia 15, depois de todos esses eventos em meio à multidão, João fez teste para Covid-19. Deu negativo. No sábado, saiu a contraprova. Deu positivo. Embora estivesse de máscara nas suas aparições públicas, ele não consegue evitar os abraços e as selfies. Ficou uma semana em casa. Numa conversa online, em fevereiro, contou que fazia testes periódicos e que aquela fora a primeira vez em que testara positivo. Indagado se não era um risco para ele e para os outros a sua intensa circulação, inclusive dentro de um hospital, deixou claro que, apesar de tudo, não pretende mudar de comportamento: “Eu tomo todos os cuidados. Uso máscara o tempo todo, e tento evitar contatos mais próximos.”
Antes da posse, ainda em dezembro, o prefeito eleito criou um comitê para estudar formas de evitar a propagação da doença e o caos nos hospitais da cidade, como vinha acontecendo em outras capitais. Montou uma equipe com Sérgio Rezende, ministro da Ciência e Tecnologia no governo Lula, além de médicos e cientistas. Em fevereiro, quando as vacinas começaram a chegar, a cidade já tinha montado um sistema online de marcação de vacinação. Os moradores só chegam aos locais de imunização com hora marcada. “Isso evita filas e reduz a possibilidade de contágio”, disse. O sistema também permite programar quantas pessoas serão vacinadas por dia. Com a falta de vacinas, os postos de muitas cidades ficavam lotados e muita gente saía sem receber a vacina. “O problema aqui não é falta de organização. É a falta de vacina. Nós temos condições de vacinar 5 mil pessoas por dia.” E reclamou da falta de programação do governo federal. “Nós não podemos sequer comprar as vacinas porque os laboratórios só liberam para a compra dos estados depois que o governo federal afirma que não irá comprá-las. E o Ministério da Saúde sequer faz essa comunicação”, indignou-se.
Em seus primeiros seis meses como prefeito, ele decidiu dar prioridade ao combate à pandemia para evitar a debacle econômica da cidade. “O grande desafio desse início de gestão é construir uma forte agenda de vacinação”, adiantou. Mas demonstrou temor de que a crise econômica possa trazer imagens enterradas no passado: a de pessoas saqueando supermercados em busca de comida. “Sem o auxílio emergencial haverá uma queda brutal no consumo que vai afetar o emprego e a renda. A maior parte da renda do Recife vem de serviços e eles estarão comprometidos. Eu tenho que estar muito atento para evitar um aprofundamento da crise.”
O começo da gestão de João Campos recebe elogios da oposição. “Ele teve um bom início de gestão, pró-vacinação, com agendamento, com respeito aos mais vulneráveis, às pessoas com comorbidades. Isso foi muito positivo”, disse um adversário político. Mas os elogios cessam por aí e entram num terreno pantanoso para o prefeito e o clã a que pertence: trata-se do controle do estado pela família e pelo PSB, acusados de tomar conta da estrutura pública para se eternizar no poder. “É claro que o trabalho dele é facilitado pelo fato de o PSB ter a máquina da prefeitura na mão há oito anos e a do governo do estado há catorze. Tem muita tecnologia de governo. Eles controlam tudo”, disse esse político, que pediu o anonimato para não se indispor com os Campos.
Não há dúvida de que foi o PSB pernambucano que transformou a legenda em uma força nacional. E também é certo que o salto se deu sob o controle do clã Arraes-Campos, que domina a legenda desde 1990, quando Miguel Arraes trocou o PMDB pelos socialistas. Desde então, eles só perderam uma eleição para o governo do estado, a de 1998, quando o PMDB (hoje apenas MDB) se uniu ao PFL (hoje DEM), formando uma aliança entre inimigos históricos. O objetivo era derrotar Arraes e eleger o peemedebista Jarbas Vasconcelos. O resultado das urnas rendeu uma derrota acachapante para Arraes. Vasconcelos venceu com mais de 1 milhão de votos de vantagem.
A campanha foi furiosa. Na época, o governo de Arraes estava moralmente destroçado com o chamado “escândalo dos precatórios”, como ficou conhecida a emissão fraudulenta de títulos públicos por estados e prefeituras para pagar dívidas judiciais. Quando o governo de Pernambuco foi acusado de emitir 480 milhões de reais, numa época em que suas dívidas judiciais não chegavam a 30 milhões, o suspeito imediato pelo superfaturamento era o secretário da Fazenda e neto do governador, Eduardo Campos. Arraes ficou desmoralizado. Pessoas chegavam a cuspir na rua quando seu carro passava. Como a origem do escândalo era a Prefeitura de São Paulo, que criara e exportara a tecnologia da fraude, Arraes e Eduardo acabaram tendo seus nomes vinculados ao então prefeito paulistano, Paulo Maluf, cuja biografia é sinônimo de corrupção. (O avô foi processado, mas o caso prescreveu antes da sentença. O neto foi absolvido penalmente, mas condenado em processo administrativo.)
Arraes nunca perdoou Jarbas Vasconcelos por ter explorado o caso até o limite na campanha. Morreu sem falar com aquele que um dia fora seu grande aliado. Mas o caso dos precatórios não separou apenas antigos aliados. Rachou também o clã familiar – os Arraes de um lado, os Campos de outro. Os filhos de Arraes nunca perdoaram o sobrinho Eduardo por ter colocado o patriarca naquela situação humilhante. Criou-se, então, no PSB, o que hoje se chama no estado uma cisão entre a “ala arraesista” e “ala eduardista”. O avô e o neto, contudo, nunca romperam, pelo menos abertamente. Foi um momento tenso para a família, que colocou em risco a hegemonia do clã no estado. Em 2002, no entanto, Eduardo Campos, recém-eleito para exercer seu terceiro mandato de deputado federal, se aproximou do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que o nomeou ministro da Ciência e Tecnologia no início de 2004. Lula e Arraes já nutriam uma antiga amizade, que se estendeu a Eduardo Campos. Começava ali também uma tumultuada aliança entre o PT e o PSB no estado.
O ex-senador pernambucano Armando Monteiro Neto disse que o apoio de Lula reintegrou Eduardo Campos ao grande jogo da política. Monteiro Neto sabe do que fala. Ele pertenceu ao PTB, aderiu ao PSDB, já foi aliado de Eduardo Campos e do próprio PT em algumas campanhas em Pernambuco. “É claro que Eduardo tinha um enorme talento político. Mas ele voltou a ganhar respeitabilidade por causa do apoio de Lula. Se ele fosse um candidato de direita, nunca teria se reerguido após o escândalo dos precatórios”, opinou. “A partir dessa aliança, Eduardo retomou o projeto de domínio da família, dando novo rosto a essa oligarquia.”
Em 2006, reabilitado, Eduardo Campos se elegeu governador do estado com uma vitória maiúscula sobre José Mendonça Filho, o vice de Jarbas Vasconcelos, com uma diferença também de cerca de 1 milhão de votos. Era o neto promovendo a revanche do avô. Desde então, o PSB nunca mais perdeu uma eleição no estado. Ao deixar o governo para se lançar à Presidência da República em 2014, Eduardo indicou como seu sucessor o economista Paulo Câmara, seu ex-secretário de Fazenda. Câmara era um tecnocrata, sem pendor para a política, mas foi eleito com folga no calor da comoção pela morte de Eduardo, reelegendo-se para o cargo em 2018. Para a Prefeitura do Recife, o nome indicado foi Geraldo Julio, outro técnico cevado por Eduardo. Elegeu-se em 2012 e reelegeu-se quatro anos depois.
A eleição de João Campos para a prefeitura marcou o retorno efetivo de um membro da família Campos à política pernambucana. “João foi a única figura capaz de oferecer uma sobrevida a esse projeto familiar-partidário”, disse Armando Monteiro Neto. “Ele é uma espécie de herdeiro príncipe, porque encarna essa dinastia com o sangue.” Para o ex-senador, ainda é cedo para se fazer qualquer juízo sobre a gestão de João Campos, mas ele vê riscos de desgaste futuro. “Ele é um jovem que tem atributos, se comunica bem, tem boa presença e tem estudado, efetivamente, os problemas do Recife. Mas ele é o novo velho. Ele representa a derradeira arma desse grupo político para manter-se vivo. Ele é um rosto novo, dentro de um sistema oligárquico velho.”
Antes mesmo da eleição de 2020, a oposição já denunciava o projeto hegemônico da família Campos e do PSB. Em entrevista ao Jornal do Commercio em 2019, Mendonça Filho, ministro da Educação no governo de Michel Temer e hoje presidente do instituto que funciona como braço de formação política do DEM, ocupou-se até em detalhar o calendário do clã. “A gente vai enfrentar, mais uma vez, a máquina do PSB, que tem um projeto de poder até 2038”, disse ele, que disputou a Prefeitura do Recife e ficou em terceiro lugar. Nas contas de Mendonça Filho, João Campos será candidato à reeleição em 2024, o que manteria a prefeitura nas mãos do PSB até 2028. Geraldo Julio, que cumpriu dois mandatos como prefeito da capital, será candidato ao governo estadual em 2022 e planeja ficar no cargo até 2030, quando então passaria o bastão para João Campos que, por sua vez, se aboletaria no posto até 2038.
João Campos desdenha da crítica do adversário. Numa conversa virtual, disse que se essa previsão se concretizar é sinal de que o povo de Pernambuco aprova as administrações do PSB. “Criticar pelo que dá certo me parece algo sem coerência. Dentro de um regime democrático, e passando por eleições, é natural que as pessoas elejam quem está fazendo entregas verdadeiras”, disse.
Quando apresenta números e técnicas de gestão, seu discurso se assemelha ao de um jovem executivo. “As pessoas mais do que nunca cobram resultados da política. Quando a população olha para o serviço público, olha como uma plataforma de serviço.” E, sem fazer uma pausa, continuou a explanação. “Se você vai num restaurante, quer ser bem atendido, ou numa loja. Ou seja, em qualquer tipo de serviço as pessoas querem boa qualidade e vão avaliar a gestão pela qualidade.” Mas logo retoma o seu perfil político. “Aqui em Pernambuco, tanto o governo do estado quanto a prefeitura estão entregando bons serviços. As pessoas reconheceram isso e entenderam que quem poderia fazer melhor pelo estado e pelo município era o PSB.”
Após tantos anos no poder, o PSB, segundo a oposição, ganhou um poder perigoso. O partido – e os Campos – controla, por exemplo, o Tribunal de Contas do Estado, onde quatro dos sete conselheiros foram indicados por Eduardo Campos ou Paulo Câmara. “Quem vai questionar as contas da prefeitura e do estado?”, indaga um rival, que pediu anonimato porque disse já ter se desgastado demais com as brigas com a família Campos e o PSB. “E que prefeito irá se desentender com o PSB e correr o risco de nunca ter suas contas aprovadas pelo TCE?” O partido também tem grande influência sobre o Tribunal de Justiça, já que a maioria dos desembargadores foi indicada pelo grupo no poder, e também dispõe de maioria na Assembleia Legislativa. Nas eleições municipais, o PSB e sua base aliada fizeram 31 dos 39 vereadores eleitos, garantindo uma supremacia absoluta na Câmara Municipal. João Campos acha que o discurso da oposição é desrespeitoso com as instituições estaduais que, segundo ele, são “totalmente independentes do Executivo pernambucano”.
Como acontece em todas as dinastias, as suspeitas de favorecimento também correm. Depois da eleição de João Campos, sua irmã Maria Eduarda deixou um cargo na prefeitura, que ocupava desde os 23 anos e no qual ganhava 10,3 mil reais, mas assumiu o posto de diretora executiva de regularização fundiária na Pernambuco Participações e Investimento S.A, uma sociedade de economia mista ligada ao governo estadual. No novo cargo, ganha 8,6 mil reais. O irmão, Pedro, é engenheiro concursado da Compesa, a companhia de saneamento do estado, mas ganhou ali um cargo comissionado, aumentando seu salário de 8,5 mil para 12,2 mil reais. Pedro tem 25 anos. O avô, pai de Renata Campos, pertenceu ao conselho da Compesa. Esse controle da máquina foi de grande ajuda na eleição de João Campos. “Eles têm a máquina e o dinheiro na mão”, disse um rival, acrescentando que o PSB também despejou na eleição do Recife quase que todo o fundo eleitoral permitido para a campanha: 7,5 milhões de reais.
Ana Arraes, avó de João, também aparece no rol dos que se entrincheiraram na máquina pública. Em 2011, Eduardo Campos empenhou-se à exaustão para descolar uma vaga para a mãe no Tribunal de Contas da União, em Brasília. Sua insistência era tal que chegou a causar desconforto entre seus pares no Congresso Nacional, mas acabou reunindo apoio suficiente para conseguir o tal cargo. (Em dezembro passado, Ana foi eleita presidente do TCU, numa articulação liderada pelo pernambucano José Múcio Monteiro, aliado dos Campos.) Mesmo Renata Campos, mãe de João, que trabalha como auditora do Tribunal de Contas do Estado, é acusada de querer se aproveitar das benesses públicas por pleitear a pensão integral do marido referente ao tempo que ele atuou na Câmara dos Deputados. Quando morreu, Eduardo já não era deputado havia sete anos. Em 2014, como prevê a lei, Renata ganhou a causa e passou a ter direito a receber uma pensão vitalícia.
Apesar das críticas, os adversários respeitam a gestão de Eduardo Campos e admitem que ele fez um bom trabalho no estado. Tanto que chegou a ser um dos governadores mais bem avaliados do país. Em seu governo, ele construiu estradas, fez o Porto de Suape, o maior complexo portuário público do Nordeste, e levou empresas para Pernambuco. Embora louvem sua capacidade de gestão, os rivais fazem a ressalva de que parte desse sucesso teve a ver com a generosa ajuda que Pernambuco recebeu da União no governo de Lula. “Lula mandou muito dinheiro para Pernambuco na época de Eduardo”, disse um correligionário, que pediu para não ser identificado por ser próximo da família. “Mas ele soube aproveitar bem os recursos e ganhou muita popularidade. E o PSB até hoje se beneficia disso.”
Com tanto a perder, o PSB partiu com fúria para resguardar seu território na eleição municipal do Recife. Ser excluído do comando de uma das mais importantes capitais nordestinas seria não apenas um atestado de fracasso administrativo, mas também a perda de poder e prestígio. Porém, o que tornou a disputa mais eletrizante e deu a ela ares de tragédia shakespeariana foi o fator familiar. A candidata que enfrentou João Campos no segundo turno foi Marília Arraes, do PT. Ela é neta de Arraes e, portanto, prima de Eduardo, pai de seu adversário no segundo turno. A disputa dos dois reabriu antigas feridas familiares e rendeu acusações ácidas, trazendo à tona a divisão entre “arraesistas” e “eduardistas”.
Um observador da cena política pernambucana disse, em tom jocoso, que a disputa entre os Campos e os Arraes pela prefeitura se encaixava perfeitamente na cena de abertura de Romeu e Julieta, bastando apenas que se trocasse a bela Verona pelo belo Recife. E declamou: “Na bela Verona, onde situamos nossa cena, duas famílias iguais na dignidade, levadas por antigos rancores, desencadeiam novos distúrbios, nos quais sangue civil tinge mãos cidadãs.”
O sangue não jorrou, mas a disputa entre os primos foi brutal. Nos poucos dias de campanha do segundo turno, eles se atacaram de forma nunca vista. “A campanha de João Campos no segundo turno foi de fazer inveja a Bolsonaro, tamanhos os ataques misóginos e reacionários contra Marília”, disse um político pertencente ao grupo que acabou fora da disputa mas não quis se identificar porque não quer se indispor com a família. “Foi também de uma virulência contra o PT que nem a direita ousou fazer.”
O PT tentou desqualificar João por sua juventude e dizia que, caso vencesse a eleição, quem administraria a cidade de fato seria Renata, sua mãe. O PSB dizia que Marília não conhecia a cidade nem seus problemas e deveria dedicar-se a estudar mais antes de tentar ser prefeita. No primeiro turno, Marília usou pouco o vermelho do PT e evitou vincular-se a Lula. Ao perceber que perderia votos com isso, colocou a foto de Lula ao lado da do avô e vestiu ostensivamente o vermelho e a estrela do partido. O PSB pegou a deixa para dizer que petistas envolvidos em caso de corrupção, como José Dirceu e Delúbio Soares, seriam os verdadeiros administradores do Recife.
Marília Arraes é uma mulher bonita, acaba de completar 37 anos, tem os mesmos olhos azuis do primo, cabelos claros e pele de porcelana. O perfil angelical se encerra aí. Ela tem fala articulada e opiniões fortes. Em um almoço no começo de janeiro, enquanto dava garfadas em um bacalhau acompanhado de arroz de alho em um restaurante português no Recife, ela contou que não é de hoje que tem diferenças com a família Campos e o PSB. Acusou o partido comandado pelos primos de autoritarismo e de querer impor suas posições, não abrindo espaço para novas lideranças.
Sua estreia na política ocorreu nas eleições municipais de 2008, quando foi eleita vereadora pelo PSB já sob o comando de Eduardo Campos. Foi reeleita em 2012. Mas, quando tentou dar voos mais altos, teve as asas cortadas por ele. “O fato é que Marília era a única pessoa que enfrentava Eduardo. E isso era um incômodo para ele, que acabou por jogá-la para escanteio”, disse um aliado dos Campos, alegando que “nesse ambiente familiar é tudo muito complicado”. Marília Arraes interpreta a situação da mesma forma. Ela diz que o primo não a apoiava porque desconfiava dela. “Ele sabia que eu não era capacho dele”, disse. “Veja o que ele fez na prefeitura e no governo do estado, colocou dois capachos, Paulo Câmara e Geraldo Julio. Acho que vivemos aqui em Pernambuco uma verdadeira Sucupira”, provocou, referindo-se à novela O Bem-Amado em que o prefeito, corrupto caricato e demagogo infalível, mantinha um controle imperial sobre a vida da cidade.
Por causa dessas desavenças e da falta de apoio de Eduardo, na campanha de 2014 Marília apoiou a candidatura de Armando Monteiro Neto, então do PTB, aliado do PT, na disputa pelo governo do estado. Mesmo sendo do PSB, ela se colocou abertamente contra a decisão do primo Eduardo de promover a candidatura de Paulo Câmara. E partiu para o confronto. Acusou o PSB de estar dando uma guinada à direita e disse que, naquela altura, o S do PSB era apenas uma letra, não representando mais os ideais socialistas. “Eu comecei na política ao lado do meu avô”, lembra ela. “Acompanhando meu avô nas eleições de 2002. Ele era verdadeiramente de esquerda. O PSB de Eduardo se distanciou disso.” No dia seguinte às suas declarações contra o partido, uma cadela vira-lata que apareceu no comitê de campanha de Paulo Câmara foi batizada de Marília. Ela conta que as agressões foram mais longe. “Eles picharam o muro perto da casa de minha mãe com palavras como Marília gorda e Marília puta.”
Ainda assim, seu rompimento com Eduardo se dera apenas na esfera política, e não na pessoal. “Ele nunca me tratou mal e continuamos a nos encontrar nas festas de família.” Mas, depois da morte dele, as coisas começaram a mudar. O corpo de Eduardo foi velado primeiro na casa dele, e depois num espaço público. “Eu estava indo para o velório na casa da família e me disseram que eu não era bem-vinda. Que eu fosse para o velório público. Eu não fui, e entendi, então, que o rompimento era também pessoal.” Marília atribuiu boa parte da responsabilidade pelo rompimento a Renata, viúva de Eduardo. Para os Arraes, Renata usa sua ascendência sobre o PSB para minar o surgimento de outros líderes e proteger sua prole. É difícil medir a influência de Renata, mas ela certamente existe, desde os laços de parentesco. Renata é tia da mulher de Paulo Câmara e, também, tia da mulher do deputado federal Felipe Carreras. Câmara e Carreras são ambos personalidades influentes no PSB*. “Renata não manda, mas ela pisca”, brinca o jornalista Ricardo Leitão, presidente da Companhia Editora de Pernambuco, a gráfica do estado, que trabalhou anos ao lado de Miguel Arraes e sabe de cabeça todo o histórico da vida da família na política.
Rompida com o partido, Marília Arraes bandeou-se para o PT em 2016. Mas, mesmo lá, teve seus planos frustrados pela ação do PSB. Nas eleições de 2018, ela tinha sido indicada candidata ao governo do estado pelo PT. Mas o acordo nacional entre os dois partidos, que previa o apoio do PSB a Fernando Haddad na campanha pela Presidência em troca do apoio do PT à reeleição de Paulo Câmara ao governo de Pernambuco, acabou tirando Marília da disputa. Ela, então, candidatou-se a deputada federal. Elegeu-se com quase 200 mil votos. Foi a segunda maior votação no estado, atrás apenas de João Campos, que, com seus 460 mil votos, superara em números absolutos o recorde anterior que pertencia à sua avó Ana Arraes (387 mil votos, em 2010), que, por sua vez, também considerando apenas os números absolutos, batera o recorde do seu pai, Miguel Arraes (340 mil votos, em 1990).
O ápice da guerra familiar, porém, estava por vir. Deflagrou-se na campanha para a Prefeitura do Recife. O PSB não poupou a candidata do PT, ainda que fosse herdeira de Miguel Arraes. Marília foi apontada como uma defensora do aborto e anticristã, pois o PSB queria o apoio de setores mais conservadores e ligados aos evangélicos. O partido também recorreu à velha estratégia de criar medo na classe média que rejeitava o PT e lembrou os escândalos de corrupção na gestão petista.
No dia seguinte à notícia de que Marília conquistara o direito a disputar o segundo turno com João, um grupo do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), usando bonés e camisetas que os identificavam como militantes do movimento, tomou as ruas do Recife. O comitê de campanha de Marília Arraes disse à piauí que foi uma ação orquestrada por seus adversários, que reuniram falsos militantes com o objetivo de instigar medo na classe média. Contudo, o apoio do MST à candidata petista era explícito. Em novembro, vinte ônibus do interior de Pernambuco levaram integrantes do movimento às ruas do Recife em apoio à sua candidatura. O líder do MST no estado, Jaime Amorim, também divulgou um vídeo em defesa de Marília.
O PSB nega que tenha reunido militantes falsos. “Isso é uma mentira”, disse o jornalista Gilberto Prazeres, chefe da assessoria de comunicação de João Campos. Mas o partido não perdeu a chance de explorar politicamente a situação, sabendo que o apoio dos sem-terra assustaria setores do eleitorado. Na época, o noticiário local informou que o PSB distribuiu folhetos com logomarcas de grupos de direita – como o Movimento Brasil Livre e o Movimento Resgate Brasil – nos quais apareciam fotos do MST acompanhadas da seguinte frase: “Eles querem voltar, vocês vão deixar? PT nunca mais.”
Na reta final da campanha, o PSB desferiu então um golpe mortal. Divulgou um áudio no qual o deputado Túlio Gadêlha (PDT-PE) parece dizer que Marília lhe orientara a embolsar parte dos salários dos funcionários de seu gabinete, esquema conhecido como “rachadinha”. A gravação foi entregue ao comitê de campanha do PSB por um assessor do gabinete de Túlio Gadêlha. O PDT, aliado do PSB na disputa pela prefeitura, indicara Isabella de Roldão como candidata à vice na chapa de João Campos. Marília nega que tenha tido uma conversa nesses termos com Gadêlha e que tenha feito rachadinha em seu gabinete. O próprio Gadêlha desmentiu a interpretação criminosa do áudio, acusou o PSB de fabricar “mais uma fake news” e anunciou apoio a Marília. O estrago eleitoral, no entanto, estava feito.
A briga familiar, contudo, não está restrita aos Arraes e aos Campos. Os Campos também brigam entre eles desde 2019. E quem armou a confusão foi justamente João, que costuma ser visto por seus pares como um político de perfil diplomático. A encrenca se deu durante a audiência na Câmara do então ministro da Educação de Jair Bolsonaro, Abraham Weintraub, convocado para prestar esclarecimentos sobre sua acusação de que as universidades eram antros de drogas e “balbúrdia”. Interpelado duramente por João Campos, Weintraub reagiu afirmando que Campos o atacava, mas se esquecia de que seu tio, Antônio Campos, irmão caçula do seu pai, era funcionário do Ministério da Educação. Antônio Campos, o Tonca, como é conhecido, é advogado e presidente da Fundação Joaquim Nabuco, uma autarquia vinculada ao MEC cuja sede fica em Pernambuco. João Campos surpreendeu em sua reação ao então ministro: “Eu nem relação tenho com ele. Ele é um sujeito pior do que você.”
Ao tomar conhecimento do ataque do seu neto contra o seu filho, Ana Arraes enfureceu-se. Em uma entrevista ao Jornal do Commercio, afirmou que o neto a agredira ao atacar seu filho caçula. “Eu espero que ele me peça desculpas”, disse. “Ele foi desrespeitoso com um tio que é uma pessoa decente, trabalhadora, competente e educada. Como eu eduquei o pai dele, eu eduquei o irmão […]. Por isso, não admito que um neto venha criticar um filho da forma como ele fez. Na minha família isso não existe.” Antônio Campos, meses depois, disse que o sobrinho tinha “sido nutrido na mamadeira da Odebrecht”. A empreiteira fez parte do consórcio que construiu a Arena Pernambuco para a Copa do Mundo, na gestão de Eduardo Campos. O Tribunal de Contas do Estado, numa rara decisão contra a dinastia Campos, considerou que a obra foi superfaturada em mais de 80 milhões de reais, em valores da época.
Amargurada com as disputas fratricidas, Ana Arraes, hoje com 73 anos, decidiu não se envolver na disputa pela prefeitura entre seu neto e sua sobrinha. Preferiu isolar-se em Brasília. Mas não pretende abrir mão de sua influência. Em entrevista ao mesmo Jornal do Commercio concedida antes da eleição municipal, Ana Arraes falou como matriarca de uma dinastia. “Ela [Marília Arraes] tem todo o direito de ser candidata. Todos têm direito de ser candidatos, mas eu quero dizer também que a origem política é minha. Eu sou filha de Miguel Arraes, mãe de Eduardo Campos e de Antônio Campos. Criei os dois na política. Sempre estiveram com o avô deles. Então, o nascedouro é meu.” Na entrevista, ela mostrou disposição de voltar à política quando se aposentar do TCU.
Em conversa pelo WhatsApp, Antônio Campos contou que hoje seu relacionamento com João é “distante”, embora não haja animosidade entre os dois. Ele apoiou abertamente Marília Arraes nas eleições, ainda que discorde do PT. Na conversa, criticou a gestão de Geraldo Julio na Prefeitura do Recife, lembrou que ele foi investigado por irregularidades na compra de respiradores para pacientes com Covid-19 e disse esperar que o sobrinho “conserte os erros da gestão passada e lute para que o Recife volte a ter o protagonismo que perdeu no Nordeste”. Depois, queixou-se da família e do partido. “Hoje há uma nítida divisão de poder na família, acentuada pela morte de meu único irmão”, escreveu em mensagem no aplicativo. Quanto ao partido, não escondeu a mágoa por ter sido abandonado pelo PSB quando concorreu à Prefeitura de Olinda. “No segundo turno, eles fingiram me apoiar, mas ajudaram o meu opositor. Pernambuco conhece essa história. Eu não perdi eleitoralmente para Lupércio Nascimento [do Solidariedade], mas para a máquina do PSB, que tem uma visão pragmática da política.”
As chagas da eleição municipal não estão apenas nos laços do clã Arraes-Campos, mas também aparecem na corrida para a sucessão presidencial. A disputa acirrada entre PT e PSB no Recife deu mostras de que os partidos de esquerda estão dispostos a desafiar a hegemonia petista em 2022. A luta encaniçada pela prefeitura deixou cicatrizes nos dois partidos. Carlos Siqueira, presidente do PSB, muito próximo de Miguel Arraes e, agora, de João Campos, não esconde sua insatisfação com o comportamento do PT. Numa conversa em fevereiro, disse que a decisão do PT de lançar candidato para a Prefeitura do Recife, em vez de aliar-se ao PSB, como havia sido combinado, gerou um enorme mal-estar. “Eu tive três conversas com a Gleisi Hoffmann, presidente do partido, e com o José Guimarães, o vice-presidente, e não consegui convencê-los de não lançar candidato”, contou.
Sem alterar o tom de voz, Siqueira disse como foi a conversa. “Eu falei: ‘Olha, vocês estão cometendo o mesmo erro que cometeram ao longo da história nos últimos 35 anos. É um erro grave’”, explicou, revolvendo mágoas do passado. Referia-se a um certo DNA exclusivista e hegemônico do PT demonstrado em algumas ocasiões, como quando decidiu impedir que seus parlamentares votassem em favor de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral em 1985 para encerrar a ditadura, ou quando ameaçou expulsar quem assinasse a Constituição de 1988 que considerava burguesa [no final, todos os petistas assinaram a Carta], ou quando se opôs ao Plano Real lançado no governo de Itamar Franco. “Agora, estão cometendo o mesmo erro lançando candidato em tudo que é lugar sem que eles tenham viabilidade.” E concluiu. “É um direito de vocês cometer esses erros, mas um dever nosso, do PSB, não acompanhar vocês nesses erros.”
Diante disso, o PSB começou a se articular com o PDT, o PV e a Rede. “Foi por isso que conseguimos conquistar quatro capitais no Nordeste, e o PT, nenhuma.” Para Siqueira, o PT tem que compreender que a briga agora não é esquerda contra direita, mas sim de democracia contra autoritarismo. A visão de seu partido é de que, se não houver uma grande aliança dos partidos de esquerda, centro e mesmo de centro-direita, há risco de Bolsonaro conseguir se reeleger. “Eu disse o tempo todo que não estamos vivendo um momento trivial. É um momento de profundo retrocesso, e se não houver unidade, a nossa derrota será maior. Quanto menos unidade, maior a derrota. Mas não convenci, porque o PT fez o que sempre faz, que é manter seus candidatos.”
A insistência do PT em lançar candidato próprio causou desgaste mesmo entre petistas. O senador Humberto Costa (PT-PE) chegou a ir a São Paulo para tentar convencer o comando nacional a se aliar ao PSB no Recife. “Foi um equívoco da Comissão Executiva Nacional. Foi um processo muito ruim. Nós tentamos manter a aliança aqui, porque o PSB de Pernambuco é o que tem um comportamento menos conservador dentro do partido. Eu sabia que iria resultar em um estremecimento das relações entre os dois partidos, o que pode atrapalhar a aliança nacional em 2022.” Costa lamentou que, ao se indispor com Gleisi e Guimarães, acabou por se indispor também com Lula, que forçou o lançamento de candidato no Recife. E mostrou todo seu descontentamento com o fim da aliança das esquerdas no estado. “Nenhum deles é dono do PT. Nem Lula. Lula pode ser o papa, mas a Igreja tem os bispos, os arcebispos e os fiéis.” Em janeiro, o PT entregou os cargos que tinha no governo do estado e na prefeitura, ambos sob comando do PSB.
Apesar de sua insatisfação com o partido por ter empurrado a candidatura de Marília Arraes goela abaixo dos integrantes do PT pernambucano, Costa não é fã de João Campos. “Ele foi lançado pela máquina e pelo parentesco. Ele é carismático e esforçado como o pai”, disse, mas ressaltou: “O Eduardo esmagava quem estivesse na frente para ganhar a eleição. Mas depois do que fizeram com a Marília no Recife, pude constatar que João Campos é muito mais obcecado pelo poder do que o pai. A campanha que ele fez no segundo turno, nem todo bolsonarista faria com a mesma cara de pau.”
José Guimarães, vice-presidente nacional do PT, não vê sentido nas críticas. Numa conversa em fevereiro, ele concordou que as esquerdas precisam estar unidas para enfrentar o bolsonarismo, mas disse que isso não pode forçar o PT a abrir mão de lançar seus candidatos. “É bom relembrar para o PSB e João Campos que o governador atual [Paulo Câmara] só foi reeleito em primeiro turno por conta do apoio do Lula e do PT em 2018. Foi o PT que garantiu a vitória ao Paulo Câmara. O que aconteceu agora foi que o PT nacional tirou como linha estratégica disputar nas principais capitais. Em várias, fizemos aliança; em outras, não.”
Em seguida, questionou, demonstrando certa irritação com as críticas ao comportamento do partido: “Por que todo mundo tem direito de ter candidato e o PT não tem? Que história é essa? Essa não é a condição. O PT pode, sim, discutir aliança, mas é natural decidir ter seu candidato. Uma eleição municipal não é maior do que um projeto. O projeto específico de uma capital não é maior do que um projeto nacional. Que história é essa? Isso é pensar pequeno. E nós temos que pensar no país”, advertiu.
Em nova conversa em março, João Campos, ao ser informado dos argumentos de Guimarães, rebateu. “Na eleição passada, o PSB, através da Executiva Nacional, elencou Recife como eleição prioritária. Se o PT quer aliança, tem que entender o jogo do ganha-ganha. Onde é prioridade para um você ajuda, e recebe ajuda em outro lugar. O PT não entendeu isso e lançou candidaturas em quase todas as capitais no Nordeste e veio depois dizendo que pregava unidade. Como fazer aliança dessa maneira?”, questionou. “Você faz unidade dialogando. Aliança existe quando se entende quais são as prioridades dos partidos com os quais se tem afinidade ideológica, e o PT até hoje não entendeu isso. Não entendeu sequer que a eleição de 2020 deu um recado muito claro: a maioria não está nem no bolsonarismo, nem no petismo.” Em seguida, seguro de si, concluiu: “Se a política, no campo democrático, não fizer o seu dever de casa, não reconhecer seus erros e construir um projeto de Brasil, nós corremos o risco de Bolsonaro ser reeleito em 2022. E isso será muito ruim para o Brasil.”
* Trecho atualizado em 27/04/2021.
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