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    Jardim Vasco da Gama, em Recife Foto: Andréa C. A. Rêgo Barros

questões urbanas

Urbanismo social com as cores do Recife

Seis anos depois do seu lançamento, o Programa Mais Vida nos Morros se tornou referência na América Latina da estratégia de intervenção voltada para os territórios mais vulneráveis

Tullio Ponzi e Carlos Leite | 26 nov 2021_16h02
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Uma política pública norteada pela bússola do urbanismo social que fosse capaz de reinventar não apenas as periferias do Recife – mas reinventar o próprio Recife a partir das periferias.

O projeto, batizado de Mais Vida nos Morros e lançado em dezembro de 2015 pela Prefeitura da capital pernambucana, pode soar ambicioso demais. E é mesmo. No entanto, seis anos depois de seu início, quando se tomam as réguas dos dados e das evidências – as únicas capazes de garantir avaliações imparciais de políticas públicas, cada vez mais imperiosas em um cenário de destemperadas polarizações – é legítimo afirmar que o Programa Mais Vida nos Morros constitui hoje uma das experiências de urbanismo social com maior escala territorial no Brasil, impactando diretamente mais de 40 mil recifenses, em 56 comunidades vulneráveis na metrópole nordestina.

Urbanismo social, recorde-se, é a extraordinária estratégia de intervenção nas urbes, sobretudo em suas áreas de maior vulnerabilidade, que levou Medellín, na Colômbia – onde foi criada –, da dramática condição de cidade mais violenta do planeta nos anos 1990 para o patamar de mais inovadora, em 2013. Com pioneirismo no Brasil, o Recife vem seguindo desde então o modelo colombiano, inicialmente com o projeto do Centro Comunitário da Paz – Compaz.

O Mais Vida nos Morros, que começou como uma ação de defesa civil preventiva a desastres e deslizamentos em áreas de risco – 67% do território recifense é de morros –, complementando as obras de infraestrutura de contenção e estabilização de encostas, acabou se consolidando como algo de maior envergadura, com as intervenções e o engajamento dos próprios moradores das comunidades socialmente vulneráveis.

O projeto Mais Vida nos Morros, lançado em dezembro de 2015 pela Prefeitura de Recife, impacta diretamente mais de 40 mil pessoas em 56 comunidades – Foto: Grinaldo Gadelha Jr.

 

Pilares como o protagonismo comunitário, a requalificação urbana e o redesenho do espaço público para as crianças são os principais objetivos do programa – e, sem dúvida, o grande legado perceptível para a população.

É preciso sublinhar, todavia, o outro alicerce central do Mais Vida nos Morros: do ponto de vista da máquina administrativa, o programa se orienta como uma espécie de startup, desenvolvendo e aprimorando uma governança baseada no tripé poder público, iniciativa privada e comunidade.

A forma de o poder público municipal se relacionar com a população também teve sua lógica invertida: a regra deixou de ser chegar na comunidade com a solução pronta e foi substituída pela ideia de cocriar com o cidadão as saídas para as questões, afinal, ele é o especialista, é quem conhece com sobras os problemas de sua comunidade. Disso resultou um redesenho também no âmbito organizacional, com a estruturação de uma Secretaria Executiva de Inovação Urbana, a qual, atuando transversalmente em relação a todas as demais pastas, recebeu não apenas a tarefa de coordenar o programa, mas de buscar soluções para os desafios da cidade a partir do protagonismo da população.

 

Como é exaustivamente sabido, a desigualdade socioespacial traduz com exatidão o tamanho dos obstáculos de quem mora nas periferias do Recife – e, claro, de todo o Brasil – para alcançar uma existência digna, vale dizer, com seus direitos básicos garantidos. Contra todos os frequentes desvios da política pública para encarar, de fato, tal realidade, o Mais Vida nos Morros e sua metodologia de urbanismo social se apresentaram como uma resposta de alto impacto, baixo custo e implantação rápida.

Entre os problemas de infraestrutura urbana e habitabilidade de que essas áreas padecem, destacam-se a dificuldade de acesso e o déficit de espaços de convivência e lazer – quando muito, as únicas áreas dessa natureza são as escadarias, becos e vielas, não raras vezes com bastante lixo acumulado irregularmente.

Daí a assertividade do Mais Vida nos Morros em promover a requalificação desses microvazios urbanos nos territórios vulneráveis, onde cada cantinho que era lixo, rato, barata e escorpião se converte em espaço público para as pessoas, especialmente as crianças.

Rua Vitoriana, Berberibe, Recife – Foto: Andréa C. A. Rêgo Barros

 

Quem anda e visita algumas das comunidades também pode se impressionar com os espaços transformados e muito bem cuidados pelos moradores, com arte urbana, amarelinhas e outras brincadeiras por todo lado.

As cores, ressalte-se, fazem parte do imaginário coletivo da metrópole pernambucana. Entretanto, a formidável inovação que aconteceu a partir do programa foi no processo de transformação, no jeito que o recifense passou a exercer a sua condição de cidadão: proativamente. O que se vê lá agora é a cidadania ativa.

Cada oficina participativa, cada visita técnica nas casas dos moradores era uma oportunidade para a equipe do Mais Vida nos Morros não apenas escutar ou dialogar como também, olho no olho, se colocar ao lado das pessoas para enfrentar juntos os desafios, definir e priorizar as ações que estariam por vir. 

 

Outro fenômeno digno de nota foi o da pedagogia urbana ou pedagogia cidadã – a cada comunidade transformada, outras começavam a se inspirar, e, independentemente da atuação do poder público, iniciavam intervenções urbanas e ambientais. O impacto da política pública transcendia, portanto, os territórios de atuação. Crianças de escolas particulares, antes mesmo da rede municipal pública, começavam a visitar as comunidades transformadas. Ou seja, para além da relação do cidadão com o poder público e com a cidade, o Mais Vida nos Morros mudou ainda a relação entre os habitantes.

O engajamento dos moradores ensejou, igualmente, novas soluções. Territórios até então vulneráveis viraram verdadeiros laboratórios de inovação urbana. Os exemplos são numerosos: compartilhamento entre ruas, calçadas e campinhos de futebol para as crianças; parklets; novas soluções para erradicação de pontos críticos de lixo; compostagem do lixo orgânico e reaproveitamento de alimentos; protótipo de iluminação em LED nas periferias; mobiliários urbanos de plástico a partir do upcycling do próprio resíduo; intervenções táticas para segurança do pedestre; pista de cooper no bairro do Alto José Bonifácio, com um sobe e desce de escadaria no percurso; professor de educação física em equipamento municipal de lazer; uma das maiores amarelinhas do país (situada na comunidade do Caíque, Ibura) – o salto, por assim dizer, foi largo.

Em 2018, o Mais Vida nos Morros foi acelerado na Universidade de Harvard, em parceria com a Fundação Bernard Van Leer por meio do Programa Urban 95 (https://bernardvanleer.org/pt-br/ecm-article/2018/urban95-creating-cities-for-the-youngest-people/ ), e começou a redirecionar toda sua metodologia para as crianças, em especial no desenvolvimento da primeira infância (0 a 6 anos). A ideia era que intervenções lúdicas no espaço público, na altura dos 95 cm – tamanho médio de uma criança de até 3 anos – pudesse estimular o desenvolvimento infantil, a partir justamente do brincar. É como se a rua fosse uma extensão da própria casa, ou até mesmo da escola, despertando a criatividade, a curiosidade, a autoconfiança, a capacidade de aprender ou de imaginar. 

Essa nova abordagem de redesenhar e repensar todo o espaço urbano, sob a perspectiva dos pequenos, fez com que em algumas comunidades, como Lagoa Encantada, Burity e UR-10, aproximadamente 90% das crianças, segundo seus pais, passassem nos horários livres a brincar nas proximidades fora de casa, quando antes das intervenções o índice era de 30%.

Na prática, ao brincarem nos espaços públicos da comunidade, os pequenos traziam as famílias para acompanhar suas atividades, e então os vizinhos começaram a se relacionar muito mais – alguns, muitas vezes, sequer se conheciam. Ao mesmo tempo, com a comunidade ocupando a rua, a sensação de segurança de todos aumentava significativamente.

A partir da escala e da capilaridade territorial dessas intervenções, foi possível promover uma nova dinâmica na capital pernambucana, por meio da qual os recifenses passaram a reconhecer em maior grau a sua própria cidade, permitindo um novo fluxo de circulação econômica e de pessoas, fazendo com que os moradores das periferias se integrassem cada vez mais à cidade formal – e vice-versa.

Sob a acepção do protagonismo comunitário e do engajamento territorial – em tempos de ações administrativas ainda tão segmentadas – é cristalino que o urbanismo social pode representar um meio de integração de todas as políticas públicas de maneira simultânea, transformando as externalidades positivas em intencionalidade estratégica.

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