CREDITO: ANTONIO SIMAS XAVIER_2022
Os coadjuvantes
Talvez eu não seja a melhor curadora de arte, mas com certeza sou a melhor curadora de pessoas
Clara Drummond | Edição 186, Março 2022
Sou misândrica e misógina, não tenho a menor paciência para homens e mulheres, nada contra, como dizem por aí, só não gosto de interagir, não tenho assunto, sinto que o tempo inteiro estou sendo condescendente, ou estão sendo condescendentes comigo. Mas não sou misantropa porque gosto de homens gays. É o único tipo de ser humano que dá pra conviver de igual pra igual. Não me sinto confortável no ambiente que me foi designado ao nascer. Só de pensar em casamento e filhos tenho ânsia de vômito. Biologia não é destino. Aqui, posso elencar os motivos para tal conclusão, mas soaria bobo, datado e, sobretudo, poderia logo de cara me igualar a essas retardadas que desejam um melhor-amigo-gay-próprio. Gay não é pet. Vamos nos conscientizar. Para deixar claro que não sou dessas, solto uma palavra em pajubá, de preferência nível intermediário, porque os termos mais básicos até minha mãe sabe, e o vocabulário avançado denota excesso de esforço. Ou decido contar uma história significativa, tipo a vez que dois amigos meus que não se conheciam estavam trepando no darkroom da Berghain. Você é amigo da Vivian, não é?, perguntou um deles, não sei em que etapa da coisa. É bom pertencer a um grupo. De qualquer forma, preciso segurar a ansiedade, não sair metralhando códigos cifrados, às vezes até nos primeiros minutos de conversa, porque quem pertence é tranquilo, não se esforça para passar uma imagem, está em casa, e eu quero muito estar em casa.
Por muito tempo, morei entre Rio e São Paulo, a depender do emprego, às vezes fixo, às vezes temporário, sempre errático, instável, mal pago, quando pago. E ainda assim eu me submetia a isso, pois cada uma dessas experiências significava pontos estrelados no meu currículo. Sou curadora independente, trabalhei em galerias, bienais, museus, ateliês, fui assistente de grandes exposições, produzi sozinha mostras menores, mas significativas, escrevo crítica de arte para revistas e jornais, tanto daqui quanto de fora. Em seguida, as pessoas me parabenizam, meus pais me dão algum presente, como uma viagem a Berlim, uma carteira Comme des Garçons, uma fotografia da Francesca Woodman. Não trabalho com pintores, tampouco fotógrafos, porque são héteros, volta e meia dá merda, tem uns que são charmosos, com aquela autoconfiança de artista. Quando via, estava transando com o sujeito na abertura da exposição dele, trancada no banheiro da galeria, dividindo uma linha da noite anterior, às onze da manhã de um sábado. No fim, eles sempre emergem ainda mais autoconfiantes, depois de uma rapidinha com uma garota dez anos mais jovem, e eu quase nunca gozava. Por isso, prefiro outros tipos de artista, que apesar de também narcisistas ao menos são divertidos, e não oferecem assim risco de contratempos emocionais.
Perto do meu aniversário de 30 anos, meus pais me compraram um apartamento em Botafogo, dois quartos, chão de taco de madeira, 90 m2, porteiro 24 horas. De quebra, também me emprestaram uma poltrona Mole do Sergio Rodrigues (o cachorro tinha comido parte do couro, eles pegariam de volta quando conseguissem um bom estofador, mas acho que esqueceram, isso já faz dois anos). Ficava bonita junto a uma enorme fotografia do João Silva. Foi um presente, quer dizer, paguei a impressão e a moldura, mas agora minha casa tem mais uma obra de arte, da mesma série que está no Malba. Esse período coincidiu com um aprimoramento do meu currículo. O critério exclusivo de seleção de trabalhos passou a ser a contribuição para a minha carreira, sem levar em conta questões financeiras. E, caso o orçamento apertasse, seja lá o que isso significasse, eu alugava o apartamento por duas ou três semanas e ia passar uma temporada no apartamento extra da minha família, em São Paulo. Esse esquema era especialmente lucrativo no Carnaval e no Réveillon. Aí, eu conseguia dinheiro para alguns meses, o que possibilitava uma pausa para férias, talvez um curso fora, quem sabe botox.
A localização do apartamento era perfeita, tinha vendedores ambulantes de domingo a domingo, a noite toda, sempre com bom estoque de Heineken. Darlene, que ficava bem em frente à minha casa, avisou que era perigoso do outro lado da rua, já teve inclusive uma execução, coisa feia. Não me preocupei, é possível que ela só quisesse afastar a concorrência. São imensas as alegrias da casa própria, eu escolho a cor do papel de parede do quarto, faço do antigo quarto de empregada um closet espaçoso, tenho cozinha anexa à sala principal, janelas antirruído. O banheiro eu quis deixar quase igual ao original porque gosto dessa estética classe média dos anos 1950. Não entendo esse seu universo em que os apartamentos surgem do nada, comentou a Marina Falcão. Toda semana improvisávamos alguma festinha, eu ofereço a geladeira, o saco de gelo, a caixa de som, a lâmpada vermelha, e cada um traz seu drink, sua droga, sua playlist. Os vizinhos, já idosos, reclamam às vezes, o que não é um grande problema, dizia Alex, daqui a pouco morrem ou são gentrificados. Alex era o responsável por trazer a nova geração de bichinhas da noite alternativa, orgulhosas de pequenos atos de subversão, como brincos coloridos, unhas cor-de-rosa, talvez uma vestimenta nitidamente feminina, algo que aprovo e estimulo. Torna o elenco mais diverso, enriquece o ambiente.
Naquele dia, organizei um jantar aqui em casa para os amigos mais próximos, e em seguida iríamos a uma festa, onde Rodrigo seria DJ. Eu estava muito feliz que ele tinha saído do armário, inclusive para a família, ainda mais conservadora que a minha e que cultivava grandes esperanças no nosso casamento. Há uns anos, ele chegou até a propor termos um relacionamento de fachada para que seus pais o deixassem em paz. De quebra, ganharíamos uma festa de arromba e acesso a sua casa em Paris. A possibilidade de uma vida heteronormativa conforme o modelo convencional de sucesso até me pareceu tentadora por quinze minutos, mas só. Na minha opinião, Rodrigo devia se livrar dos amigos da escola, aqueles idiotas que trabalham no mercado financeiro, e conhecer pessoas mais interessantes, que atuam no mercado de arte.
Rodrigo seria o último a tocar, só de manhã, então saímos de casa por volta das duas. A festa não seria num inferninho, com laser, estrobo, projeções, e sim de graça, numa praça perto do Centro Cultural Banco do Brasil. Na verdade, a praça era uma espécie de pátio público com grade e apenas uma entrada, dois seguranças para controlar a lotação, distribuir pulseiras e monitorar possíveis abusos. Um nicho específico, público gay abastado, majoritariamente branco, que menospreza símbolos tradicionais de ostentação, é alinhado aos valores liberais e progressistas, não necessariamente de esquerda, ao menos em termos econômicos. Como de costume, ambulantes vendiam bebidas enquanto as pessoas esperavam para entrar na festa.
Para minha surpresa, Darlene, a ambulante da minha rua, estava ali, mas não vendendo cerveja, e sim caipirinha. Ao seu lado, um velho mal-humorado vendia Heineken. Acenei para ela, sorrindo, e gritei: Oi! João Silva saiu de onde estávamos para abraçá-la, beijou sua bochecha, perguntou sobre seu filho. Ele conseguia fazer esse tipo de coisa sem soar condescendente, eu não. Por isso, eu preferia ser mais discreta, manter uma relação mais profissional, cliente e comerciante, com medo de alguma gafe. Até porque na minha cabeça ela trabalhava todos os dias na frente da minha casa, nem tinha reparado que aos sábados ela estava em outro lugar, era outra pessoa. E muito menos sabia qualquer coisa sobre a família de Darlene. A fila andou alguns metros, mas logo estacionou, de modo que ficamos todos paralelos à sua barraca portátil de caipirinhas. Imaginei que você pudesse estar aqui!, ele disse. Ora, João Silva morava em São Paulo, como ele conhecia o itinerário profissional da Darlene? Isso tudo só das vezes que descia pra comprar cerveja nas festas lá em casa? O processo de entrada estava especialmente lento. Quarenta minutos sem sair do lugar. Sem problema, estávamos distraídos, conversando com Darlene. Ela se lembrava de detalhes de acontecimentos antigos, perguntava o desenrolar das situações. Era esperta, rápida, engraçada, bem informada, até mesmo culta, falava nossa linguagem, não era evangélica, votava no Psol. A conversa estava tão gostosa que ninguém percebeu a chegada súbita da Guarda Municipal.
A princípio, não era pra ninguém se incomodar tanto, sempre foram inofensivos, mas àquela altura da política brasileira as coisas começavam a ficar estranhas. O camburão que surgiu na nossa frente diferia pouco da imponência de um esquadrão especial, tipo Bope. Cinco homens com peito estufado postaram-se diante da fila, transmitindo uma hostilidade ressaltada pelos cassetetes, maiores que o normal. Primeiro abordaram o velho mal-humorado, pegaram todas as cervejas, puseram tudo no porta-malas do camburão. Ei, isso é roubo!, gritou a Marina Falcão, e o resto da fila concordou com vaias tão intensas que abafavam o italo disco. Aquilo não constrangeu os policiais, ao contrário, estimulou um considerável aumento de tom, e eles foram avançando sobre Darlene com violência. Seu material de coquetelaria foi destruído, junto com as garrafas de cachaça, atiradas no chão. Darlene reagiu, gritando e tentando se desvencilhar do homem que segurava seu braço, e como retaliação recebeu uma porrada de cassetete. Alex tentou interferir, pôs seu corpo no meio deles, com seus brincos, unhas pintadas, sombra roxa no olho, e também recebeu uma pancada, na perna, no braço e, quando tentava voltar pra perto de nós, na costela. Não foi o único dos frequentadores da festa a se posicionar de forma mais enfática, mesmo assim a porrada foi direcionada apenas a ele. No meio da confusão, uma bomba de gás lacrimogêneo foi lançada aos pés de quem estava na fila, a 1 metro de distância da Guarda Municipal.
Os seguranças da festa puseram todos para dentro, às pressas. Só os vendedores ficaram do lado de fora. Talvez os policiais se intimidassem de entrar numa festa de elite, podia ser um mecanismo de proteção. Não passou pela cabeça de nenhum de nós que os ambulantes podiam estar naquele espaço como frequentadores. Em tese, era uma festa gratuita, e não havia motivo para que eles ficassem de fora, principalmente porque, àquela altura, estavam sem as bebidas, já confiscadas. Mas havia um entendimento mútuo, silencioso e unânime de que eles não pertenciam àquele ambiente, e isso era tudo.
Alex foi para casa, levemente ferido, mas bem, e o resto de nós continuou na festa até o amanhecer, o ácido começando a fazer efeito. Esquece, Vivian, disse minha amiga Marina Falcão. Mas assim que entrei, percebi que algo grave continuava acontecendo do lado de fora. Sem sucesso, tentei abrir espaço entre as pessoas que se amontoavam na porta. As grades de proteção e minha visão de natureza fragilizada, e prejudicada ainda mais pelo gás lacrimogêneo, ofuscavam qualquer clareza. Um vulto se contorcia, com dificuldade de locomoção, quase na outra esquina, a um quarteirão de distância. Fiquei com a impressão de que podia ser Darlene. Ela teria apanhado com violência extra naqueles dez minutos de confusão quando todos entraram na praça, quer dizer, todos nós, os frequentadores de sempre? Ou era um mendigo, um pivete, um viciado em crack? Talvez. Dez minutos é tempo suficiente para uma série de porradas. Mas se fosse Darlene alguém na fila com certeza teria vaiado, feito um protesto, e não apenas repetido meus passos a caminho das batidas do italo disco.
Éramos um grupo de vinte amigos, até mais que isso, alguns com talento de verdade, outros com profissões vagamente criativas, todos bem-sucedidos, todos fotogênicos, todos meio bonitos, ou muito bonitos, o que é importante para mim. Entre eles, os mais significativos, ao menos na minha vida, eram João Silva, Alex, Marina Falcão e, agora, Rodrigo. Talvez eu não seja a melhor curadora de arte, mas com certeza sou a melhor curadora de pessoas. É o trabalho do qual mais me orgulho. Por meio dele, consegui criar a trajetória de vida que sempre quis. Quando estamos todos juntos, de vez em quando tenho a sensação de que sou a protagonista de um filme imaginário que se desenrola no decorrer de uma única noite. As luzes azuis e vermelhas da pista de dança, que não raro reproduzimos em nossas casas, atenuam nossos defeitos físicos e realçam as qualidades, e assim podemos fingir que somos perfeitos. Às vezes, a memória do dia seguinte edita os acontecimentos deixando apenas as cenas que gostaríamos de descartar: transparece o excesso do meu esforço, como uma atriz que não desaparece no papel, tão preocupada com o reconhecimento da sua performance, o que é patético. Eu queria muito ser naturalmente a pessoa que pareço ser.
Outro dia, no fim de um after, acho que era segunda-feira, eu estava conversando com um desses amigos, terminando as poucas linhas restantes na mesa de jantar enquanto via o Sol da manhã ficar cada vez mais forte. Os dois de óculos escuros, fumando na janela, meu batom vermelho ainda firme, o sutiã preto de renda servindo de biquíni, a camisa de seda pendurada na estante de livros, a calça de cintura alta escondendo a gordurinha da barriga, pouco fotogênica para aquela claridade. Ao longo da noite, descemos mais de três vezes para comprar cerveja, dessa vez do outro lado da rua. É muito chique after em dia de semana, acho subversivo, anticapitalista. Ou um hábito aristocrático, coisa de rico, não sei dizer, talvez algo no meio do caminho. Alex estava no escritório, imerso numa seção de spanking com a porta escancaradamente aberta, eu nem sequer podia ir ao banheiro no corredor, com medo de ver sua bundinha arrebitada. É possível que fosse algum amigo artista do João Silva, não sei. Eu não conseguia desenvolver nem ao menos uma conversa qualquer com o convidado remanescente que ainda tinha metade de um saco de cocaína, porque a cada frase ouvíamos um pah pah pah como se alguém pontuasse as nossas vírgulas. Naqueles dias, era frequente alguma variação desse cenário, na despensa, na área de serviço, no quarto de empregada, no sofá da sala, a ponto de começar a me irritar, tinha acabado de mudar, eu nem tinha estreado a cama com alguém, e Alex ali, com mais parceiros sexuais do que eu.
Durante os dois primeiros anos eu me mantive ocupada exclusivamente com o Luiz Felipe: engenheiro, maconheiro, surfista, vegano. Um garoto de Copacabana, rosto de anjo, que medita todas as manhãs, pensa em dar a volta ao mundo, vender o carro, se locomover apenas de bicicleta, no máximo transporte público. Não é o homem mais atraente com quem já fiz sexo, é meio bobo, falta charme. Sua beleza é bem padrão, o clássico carioca, desses que você encontra aos montes pelas praias, bronzeado, cabelos loiros cacheados, olhos azuis, e uma autoconfiança ingênua, de quem já foi o menino mais bonito da escola mas não soube ou não quis capitalizar em cima disso. Luiz Felipe é despretensioso, cita livros de autoajuda com inclinação oriental, às vezes me dá um ou outro de presente, acredita quando eu falo que gostei muito, enquanto na verdade ridicularizo seu repertório literário pelas costas, leio trechos em voz alta para entreter meus convidados, rimos a madrugada inteira de suas crendices, e em seguida cheiramos cocaína na capa do Deepak Chopra. De qualquer forma, essa filosofia deve surtir algum efeito, porque existe naquele menino algum tipo de sabedoria que não sei identificar.
No sofá da minha casa, antes que eu desabotoasse sua calça, durante nossa conversa padrão de cinco minutos, ele manifestava a consciência pesada, queria contribuir com o mundo, fazer qualquer coisa benéfica. Se partisse para uma empreitada mais altruísta, sem o salário da construtora, não poderia realizar seu sonho de surfar na Austrália. Eu o beijava, segurava seu pau, calava sua boca. É o corpo mais lindo do mundo, definido na medida, forte mas seco. A primeira mensagem que escrevi depois do nosso primeiro encontro foi: Aqui é a Vivian, do último sábado. Eu tenho uma garrafa de vinho em casa e quatro horas para trepar. Luiz Felipe respondeu que sim, perguntou o endereço, o horário, tudo isso de imediato. Ele é diferente dos outros, não me chama de bonita, só de gostosa, às vezes putinha. Eu gosto, acho meigo na medida, até mesmo carinhoso, com alguma ternura, meio fofo. Será que eu estava apaixonada por um sujeito com perfil tão desinteressante só porque ele me estapeava, cuspia em mim durante a foda e tinha algum talento especial para fisting? Eu sempre disse que meu maior medo era me casar com um investment banker, mas talvez um engenheiro civil seja pior, é tão genérico. Na primeira vez que transamos, chorei no táxi ao voltar para casa, às cinco da madrugada, depois de sete horas de sexo ininterruptas. Foi quase romântico, as luzes da cidade à noite, o banco de trás do carro, as lembranças recentes, o senso de ineditismo, como se tivesse acontecido algo especial que talvez não se repetisse, e tocava Roxette, ou era outra música, mas vamos fingir que era Roxette. As estatísticas mostram que é normal que uma mulher só experimente o orgasmo aos 30 anos, fico tranquila com isso, não sou frígida, reprimida, mal comida. Luiz Felipe diz que eu sou a única que não se escandaliza com suas fantasias, não sei se acredito. Eu o aguardava toda semana, como uma boa menina monogâmica, enquanto ele devia estar dançando forró, beijando umas garotas básicas, sem personalidade, papo qualquer coisa, com suas blusinhas cafonas, feminilidade padrão, provavelmente caretas na cama, tão convencionais quanto sua aparência comum, ou ao menos prefiro pensar assim.
Diz o Luiz Felipe que certa vez convidou um amigo para acompanhá-lo na transa com sua então namorada e juntos fizeram dupla penetração. Fiquei excitada com a ideia, mas ele não se sentia confortável em transar outra vez com um homem junto. Precisei então me contentar com um vibrador no papel de elemento extra. Não era tão emocionante quanto eu imaginava. Mesmo assim, ao longo dos encontros, continuamos repetindo, talvez na esperança de que aquilo, em algum momento, se tornasse espetacular. Um dia, no lugar de um orgasmo precisei lidar com o vibrador preso no meu ânus. A minha primeira tentativa de recuperá-lo acabou piorando a situação, e pensei, fodeu, vai para o intestino. Eu só pensava na Sylvia Plath. A personagem do meu livro preferido tem uma hemorragia quando perde a virgindade. Precisa ir ao hospital com o garoto, um desconhecido. Eram os anos 1950, eu expliquei, com medo de ter o mesmo destino, mas ele não sabia quem era Sylvia Plath. No final, depois de um contorcionismo que durou cerca de quinze minutos, eu tentando alcançar o vibrador pelo cu, enquanto ele empurrava através da vagina, deu tudo certo, não precisei ir ao hospital e voltamos a transar.
Depois desse dia eu tinha certeza de que nunca mais ia ver o Luiz Felipe. Três semanas de hiato entre o incidente da dupla penetração e o nosso contato seguinte, foi horrível, fiquei ansiosa, me senti culpada. Foi a única vez que ele não me escreveu perguntando se eu tinha chegado bem em casa. Talvez a coisa mais importante num relacionamento seja tesão, respeito e carinho, com uma comunicação clara, leve e sem esforço. Acho que a opinião dos outros é secundária perto do que acontece a dois. Senti até saudade do chão de porcelanato branco do apartamentinho dele na Rua Constante Ramos. Mas Luiz Felipe tinha apenas viajado para visitar os avós no interior de Minas Gerais. Quando contei da minha paranoia, ele riu e disse qualquer coisa como: que besteira!
Os encontros semanais cada vez mais surpreendentes e exuberantes conseguiram a façanha de afrouxar meu julgamento normalmente rígido e fazer com que eu prestasse atenção no que ele falava. Luiz Felipe não emitia nenhum signo para que eu o identificasse como inteligente. Por isso, era uma surpresa quando eu o via como um rapaz bastante sensível e observador. Nossas trocas, mesmo as mais existenciais, em certo sentido até filosóficas, eram mais fluidas que aquelas com o fotógrafo cujo trabalho eu admirava, ou com o roteirista do meu filme preferido, ambas relações fracassadas, tanto em termos sexuais como afetivos. Eu gostava da ideia de estar com aqueles homens, era o casal que eu imaginava. No entanto, quando acontecia, não era tão legal, eu era maltratada. Com Luiz Felipe, tudo era bom, a conversa, o beijo, o sexo, a conchinha. Até a manhã seguinte, sempre um momento constrangedor com os outros, era uma delícia, ele preparava o café da manhã, o melhor suco verde do mundo, e então saía para surfar e eu dormia mais algumas horas.
Luiz Felipe sabe que é o melhor sexo da minha vida, que eu nunca tinha gozado com aquela intensidade, que meus ex-namorados eram egoístas na cama e na vida, e não entende direito por que fiquei com eles. Luiz Felipe dizia que, se a melhor coisa a respeito daqueles caras eram suas fotografias ou seus filmes, era mais inteligente que eu ficasse só com isso, como acontece com outros artistas que estão mortos, ou em outro país. Eu me senti tão adolescente quando ele disse isso, boba, boba, boba. Esse não é o melhor sexo da minha vida porque você me chama de putinha, nem por causa dos orgasmos, eu disse a ele. Esse é o melhor sexo da minha vida porque é como se eu voltasse pra casa, mas não a casa onde cresci, com regras rígidas, e sim outra casa, além do meu inconsciente, é como se eu voltasse pra um lugar ao qual eu realmente pertenço, um lugar onde estive antes de ter nascido. Luiz Felipe me abraçou, beijou, voltamos a fazer sexo, e experimentei de novo aquela sensação, ainda mais forte.
Talvez meu deslumbre sexual estivesse afetando meu julgamento cognitivo, até porque todas as conversas ocorriam em intervalos sexuais, os dois pelados na cama, com os corpos entrelaçados. Marina Falcão dizia que eu estava apaixonada, mas tinha um ar de deboche no diagnóstico, o que me deixava na defensiva, então eu respondia, impossível, ele nem sequer tem livros de verdade em casa, e assiste a filmes comerciais. Luiz Felipe não teria assunto com meus amigos, imagina, se falassem de Antropoceno, ele ia responder com ecobag, canudo, bicicleta. Você não para de sorrir, insistiu a Marina Falcão. Talvez eu estivesse mesmo entregue a ponto de não me importar com os comentários do Alex: Então ele é tipo um ambientalista de direita? Amiga, isso consegue ser pior que gay de direita. Alex está certo, não sei que função esse boy teria na minha vida, talvez não seja suficiente ser bem comida por um rapaz de bom coração. Eu sou muito insegura para não ser superficial, preciso me agarrar em qualquer coisa material, que me sirva como ponto de referência, essa sou eu, esse é meu mundo, essas são as leis que guiam a mim e àqueles ao meu redor. Se eu pensar sobre sentimentos e sensações e propósitos imateriais, estarei perdida, à deriva. A vida sem corrimão me parece tão misteriosa e inconcebível como a vida no espaço sideral, ou a vida após a morte, ou aquilo que éramos antes de nascer. Luiz Felipe e eu chegamos a um ponto que o mero contato entre nossas peles gerava um pequeno êxtase, e eu me lembro dos meus amores adolescentes, quando tudo de erótico era esse contato fortuito, pele na pele ao entregar um livro, um lápis, um caderno, uma echarpe, e todo um universo sensorial se abria; a lembrança do último orgasmo, na semana anterior, se misturava a essa lembrança de adolescência, meio rejeição, meio descoberta, meio paixão. Mesmo depois de semanas, meses, quase um ano, ele me toca, e eu guio sua mão para onde eu quero, de imediato sinto prazer, e acredito que tem algo mais além do físico. No dia seguinte, afasto esse fluxo de memória, digo para mim mesma, é só sexo. O amor não acontece no vácuo, num quarto, não é apenas aqueles momentos a dois, na intimidade da casa, que no início parecem preciosos, com forte carga emocional, e depois se tornam mais raros, afogados na banalidade ou, na melhor das hipóteses, meramente nostálgicos. O amor também está no mundo, e Luiz Felipe não pertence ao meu mundo, logo, isso não deve ser amor.
Trecho do livro Os Coadjuvantes, que a Companhia das Letras vai lançar no início de abril.
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