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    Quem recebe likes se satisfaz de imediato. Talvez isso ajude a explicar por que tanta gente continuou compartilhando e curtindo postagens sobre uma droga que, mesmo não existindo, alimentou o vício da desinformação nas redes sociais. Ilustração: Carvall

anais da desinformação

Chapados de likes

Como um boato sobre falsas drogas digitais se espalhou pelas redes

Thallys Braga | 19 maio 2022_15h48
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Johnathan Bastos baixou o TikTok em 2019, quando tinha 16 anos. Ele morava em Montes Claros, no interior de Minas Gerais, onde parte dos seus colegas de escola estava migrando do Instagram para a rede social chinesa, que só exibe vídeos. Rapidamente, os algoritmos do novo app descobriram os temas que mais agradavam ao jovem: viagens pela Europa e dancinhas. Bastos nunca havia sonhado em ser influenciador digital. Mesmo assim, costumava publicar vídeos bem-humorados, que rendiam poucas visualizações e curtidas. Isso mudou em fevereiro de 2021, quando o adolescente gravou um post de 55 segundos em que explicava como se drogar com “substâncias” peculiares: áudios que estão no YouTube e podem ser localizados ao se digitar o termo I-Doser. “Você vai ficar loucão!”, alardeava o rapaz na postagem. “Usei frases chamativas, perfeitas para dar mais engajamento”, relembra. Os áudios de que Bastos falava trazem músicas instrumentais, parecidas com as do gênero new age e salpicadas de efeitos eletrônicos. O garoto não reproduziu nenhuma delas no TikTok. Apenas deu o caminho para quem desejasse encontrá-las.

I-Doser é um site norte-americano que comercializa sons desse tipo. Criado em 2005 por Nick Ashton, promete que os áudios à venda causarão nos ouvintes sensações iguais às geradas por drogas como cocaína, maconha, LSD e ecstasy. A plataforma também oferece músicas que proporcionariam uma “boa noite de sono” ou um “despertar maravilhoso”. Todos os efeitos ocorreriam porque os sons são emitidos em frequências binaurais, captadas de um jeito pelo ouvido direito e de outro pelo esquerdo, o que dá ao cérebro a percepção de um terceiro som. O físico alemão Heinrich Wilhelm Dove descobriu essas frequências em 1839 e analisou o impacto delas no corpo humano. 

As “doses digitais” vendidas no site custam pelo menos 8 dólares e têm duração mínima de quinze minutos. Alguns sons estão disponíveis de graça no YouTube. O áudio que Bastos escutou antes de fazer o post garantia o mesmo barato da Cannabis sativa (uma das espécies de maconha), mas “sem a fumaça”. 

Logo que chegou à rede, o vídeo foi acessado quase 100 mil vezes. Um ano depois, já acumulava 762 mil curtidas, 3,3 milhões de visualizações e 22,7 mil comentários, a maioria de pessoas que afirmavam não ter sentido nada enquanto ouviam os sons. “Encontrei aquele áudio por acaso, no YouTube, e o escutei uma ou duas vezes. Como o tema me pareceu bom para um post, gravei o vídeo e publiquei. Eu sabia que ia viralizar. Mas até hoje não faço ideia se droga digital funciona. Em mim, não funcionou. Causou apenas um leve relaxamento”, conta Bastos, que agora tem 19 anos. 

O neurocientista Sandro Kanzler, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina que estuda as frequências binaurais, não encontrou evidências na literatura científica de que sons como os do I-Doser provoquem efeitos alucinógenos ou viciem. “Em tese, estímulos recebidos pelas vias auditivas podem alterar o nosso estado mental. Nos próximos anos, é provável que a medicina consiga usar as frequências binaurais de maneira proveitosa. Elas ajudarão a prevenir doenças psiquiátricas, como depressão e ansiedade. Mas não existe esse negócio de efeito idêntico ao de uma droga. Não há nada que comprove essa hipótese ”, explica Kanzler.

A médica Evelyn Eisenstein, da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), assina embaixo. “O que sabemos é que o uso exagerado de redes sociais tem impacto no comportamento infantil e dos adolescentes. Isso, com certeza, gera dependência.” Em abril, a SBP divulgou uma nota alertando para os danos que os áudios do I-Doser e outros do gênero podem causar. “Se os sons forem muito altos, há o risco de comprometerem não só a audição como a neuroplasticidade e o desenvolvimento cerebral das crianças. Os pais precisam ficar atentos”, adverte Eisenstein. No vídeo que publicou, Bastos ensina: “Você tem que escutar ele [o áudio] com um fone de ouvido bom e num volume consideravelmente alto (…). Aí vai sentir o [mesmo] efeito da marijuana, que é a maconha.”

 

Com a repercussão do post, o perfil do jovem no TikTok (@johnbastt) alcançou 500 mil seguidores. Ele conta que, atualmente, duas agências brasileiras e uma europeia o ajudam a produzir conteúdos para a rede chinesa e o Instagram, onde ainda mantém uma conta. Seus vídeos tratam de moda, beleza e turismo. “Hoje sobrevivo principalmente do dinheiro que ganho no TikTok.” Embora não revele quanto fatura por mês, Bastos diz que já fez publicidade em troca de produtos da Prada, Gucci, Dolce & Gabbana, Chanel e Dior. Estudante de administração em Minas, o influencer está morando temporariamente na Bélgica. “Se eu fosse assessorado por alguma agência aos 16 anos, nunca me deixariam publicar nada sobre os áudios alucinógenos. Teria sido ótimo para a minha saúde mental.”

O post de 2019 lhe trouxe benefícios por um bom tempo, mas a partir de dezembro de 2021 os ventos mudaram. O rapaz começou a receber uma enxurrada de mensagens raivosas no Instagram, que mencionavam o vídeo do TikTok. “Ensinar jovens e adolescentes a usar drogas musicais que viciam e causam danos ao cérebro não é ser responsável… É ser desumano”, escreveu um dos detratores. O caso acabou chegando até a mãe e o padrasto de Bastos – uma bancária e um empresário que não acompanham o filho nas redes. Eles souberam da história pelos vizinhos e se assustaram. “Foi triste. As pessoas não paravam de me xingar e ameaçar no Instagram. Tive de tomar calmantes para controlar a ansiedade. Meu maior medo era o TikTok descobrir o que estava rolando e me punir. Aquilo é o meu emprego!” Enquanto tentava lidar com a situação, o influencer se perguntava: “Por que só agora o vídeo causou tanto alarde?”

Tudo começou no sétimo andar de um prédio comercial na Rua Pamplona, em São Paulo. Pelo menos cinquenta corretores de imóveis compareceram ao auditório do edifício para assistir a uma conferência sobre “neuroliderança”. A palestrante, Sandra Regina da Luz Inácio, se dispunha a ensinar “maneiras eficientes de usar o cérebro a seu favor”. “Alguém aqui já ouviu falar do I-Doser?”, perguntou aos 35 minutos de conversa. A plateia, formada basicamente por homens de meia-idade, sacudiu a cabeça de forma negativa. “Não? Pois prestem bastante atenção. Pensei muito se devia falar isso, mas achei que tenho o dever de orientar os pais. Eu quero uma dose de cocaína, LSD, seja o que for. Eu vou na internet e compro por meio de uma neuromúsica chamada I-Doser. São vários tipos de músicas para vários tipos de drogas.” Ela explicou que os áudios ativam áreas do cérebro capazes de deixar o ouvinte totalmente chapado, “como se estivesse consumindo co-ca-í-na. É igualzinho!”. A palestrante também disse que os sons causam danos psicológicos similares aos de qualquer outro entorpecente, apesar de não provocarem dependência física. “Você está na sala e seu filho está no quarto. Você fala: ‘Graças a Deus, ele está no quarto ouvindo música.’ Mas ele está se drogando, e você não sabe. Todo jovem hoje sabe [o que é I-Doser].”

O evento aconteceu em maio de 2018. Durou uma hora e cinco minutos. A TV Creci, do  Conselho Regional de Corretores de Imóveis de São Paulo, divulgou uma gravação da palestra, que ficou perdida na internet por três anos. No fim de 2021, sabe-se lá quem garimpou o arquivo e extraiu dele o trecho de dois minutos e 37 segundos em que Sandra Inácio menciona as supostas drogas digitais. O fragmento foi parar nas redes sociais e se alastrou por grupos de WhatsApp. Provavelmente, parte dos que receberam o trecho decidiram pesquisar sobre o assunto e se depararam com o vídeo de Johnathan Bastos no TikTok. Como é mais fácil entrar em contato com alguém pelo Instagram, as manifestações furiosas contra o influencer vieram por lá (no aplicativo chinês, somente usuários que se seguem podem trocar mensagens privadas).

Em seu currículo, Sandra Inácio se diz PhD em psicologia clínica e administração de empresas por uma universidade da Flórida, nos Estados Unidos. Também se define como  especialista em estratégias de marketing. Nunca estudou ondas binaurais ou drogas. Então por que afirmou publicamente que jovens poderiam se chapar pelo fone de ouvido? “Escutei isso de pais cujos filhos acessaram os áudios. A ciência é lenta. Fazer uma pesquisa para comprovar uma coisa dessas demoraria anos. Com a experiência que tenho, acho óbvio que as pessoas realmente se sintam drogadas ao consumirem esses sons.” A palestrante é dona de uma empresa que ajuda corretores a tornar os imóveis mais agradáveis para eventuais clientes.

“Quer ver um negócio que pouca gente conhece? Todas as músicas que escutamos têm uma mensagem subliminar baixinha. Você entra numa loja, num elevador, e ouve uma canção. Ali, no meio do instrumental, existe uma mensagem subliminar.  Ninguém percebe, mas a mensagem está lá”, continua. “Estamos sendo manipulados o tempo todo. Por que não poderíamos estar sendo drogados também?” Ela não apontou nenhum trabalho científico que comprove a afirmação.   

 

A relações-públicas Isabella Costa, de 24 anos, já se encontrava na cama em março de 2021, quando encontrou o post de Johnathan Bastos. Gostou do conteúdo e decidiu gravar um “dueto” – recurso do TikTok que permite fazer vídeos a partir de outros já publicados. A gravação se inicia com o trecho em que o influencer diz: “Vou ensinar para vocês como ficar loucão, sem droga e sem nada entorpecente.” O rapaz sai de cena e a moça aparece, com piercing no nariz e moletom. “Então basicamente essa pessoa está dizendo que consigo ficar chapadona sem um beck [cigarro de maconha]?” A câmera dá um zoom no rosto dela. “Caralho, velho, vou testar isso agora!”

Em seguida, a relações-públicas ressurge com a expressão relaxada e voz de veludo. “Não é a mesma experiência que fumar, mas dá um bagulho de verdade.” Sete segundos depois, a jovem afirma que está se sentindo “minimamente alcoolizada”. “Se você tem problema de insônia, é ideal para você”, recomenda. A gravação dura 57 segundos. Foi publicada com a legenda “GENTE A EXPERIÊNCIA É REAL #chapado #idoser #emchoque”. Hoje, totaliza mais de 174 mil visualizações.

Em 2019, o TikTok era um refúgio para Costa. Ela começou a usar o aplicativo numa fase depressiva. Em 2020 e 2021, ao longo da pandemia, isolada em casa, conheceu muitas pessoas pela rede social e fez amigos. Agora, sente-se frustrada. “Virou um ambiente tóxico. Depois que comecei a produzir conteúdos sobre cultura LGBTQIA+, bolsonaristas vieram me atacar em lives e na caixa de comentários. Isso desmotiva. Estou tentando sair do app, mas às vezes acabo entrando para publicar alguma coisa. Vicia, né?”

No livro Dopamine Nation, Anna Lembke – professora de psiquiatria e ciências do comportamento na Universidade Stanford – escreve que as mídias sociais podem viciar tanto quanto jogos de azar. Quem recebe likes no TikTok, Instagram ou Facebook se satisfaz de imediato. Caso a aprovação diminua, o usuário toma a derrocada não como um desestímulo e, sim, como um impulso para seguir buscando visualizações, curtidas, comentários e compartilhamentos. É semelhante a alguém que sempre perde no jogo do bicho ou na Mega-Sena, mas continua apostando semanalmente, na esperança de ganhar. Talvez isso ajude a explicar por que tanta gente continuou compartilhando e curtindo postagens sobre uma droga que, mesmo não existindo, alimentou o vício da desinformação nas redes sociais.

Em abril, quando a Sociedade Brasileira de Pediatria publicou a nota de alerta, o vídeo da jovem atingiu a maior audiência. “Acho que a repercussão voltou por causa daquela pastora que falou do I-Doser. Não vejo outra explicação.” A pastora é Sandra Inácio. A relações-públicas não sabia que se tratava de uma palestrante. 

 

Hoje, o único vídeo disponível no TikTok em que Johnathan Bastos divulga o áudio alucinógeno está no perfil de Isabella Costa. Ele decidiu tirar a gravação original do ar no final de 2021, assim que os ataques se intensificaram. A história repercutiu até em Brasília. No dia 14 de dezembro, o deputado distrital Rodrigo Delmasso (Republicanos) entrou com um pedido de representação na Procuradoria-Geral de Justiça do Distrito Federal para obrigar o influencer a deletar o post. Bastos diz que nunca foi notificado pelo Ministério Público e que apagou o vídeo por decisão própria. 

“Eu vi a gravação e falei: ‘É criminoso o que está acontecendo aqui. É apologia de drogas virtuais’”, recorda o deputado. “Como agente público, não posso prevaricar. Por isso, comuniquei o caso à procuradoria.” O parlamentar afirma conhecer “vários artigos científicos” que comprovam “os efeitos alucinógenos, psicológicos e psiquiátricos das drogas digitais”. No entanto, não apresentou nenhum deles à piauí.   

Diferentemente do influencer de Montes Claros, Isabella Costa nunca recebeu ameaças ou comentários ofensivos por causa do vídeo. Ela admite que não se sentiu “minimamente alcoolizada” quando escutou o áudio do I-Doser. Também reconhece a inexistência de provas científicas acerca das drogas virtuais. Mesmo assim, não pretende tirar o vídeo de sua conta no TikTok. “Está dando tanto engajamento…”, diz, rindo.

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