Ilustração: Carvall
As polícias não mudaram, só pioraram
Eleição traz oportunidade de escolher candidatos empenhados em discutir papel das polícias na segurança pública – ou aguardar as próximas chacinas
O ano era 2010. Dilma Rousseff, do PT, e José Serra, do PSDB, disputavam o segundo turno das eleições. Os oito anos anteriores tinham sido marcados pela gestão de Luiz Inácio Lula da Silva, também do PT, à frente da Presidência do Brasil, gestão essa que, apesar dos escândalos e casos de corrupção, fora muito bem avaliada pela população, com aprovação recorde de 87% em 2010. O crescimento do PIB também registrara recordes, crescendo mais de 7% naquele mesmo ano. Nesse contexto, Dilma se elegeu com mais de 56% dos votos válidos e se tornou a primeira presidente mulher da história do Brasil.
O Brasil era outro. Havia uma esperança generalizada de que o país havia encontrado um caminho para superar seus problemas históricos. O mesmo acontecia no Rio de Janeiro. O estado testava com certo sucesso as Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs, que pretendiam mudar a lógica da atuação policial nas favelas e periferias fluminenses. A partir daquele momento, as polícias não seriam mais vistas pela população como forças que entravam nas favelas com blindados, helicópteros, atirando com seus fuzis e, muitas vezes, saindo desses espaços carregando corpos. A lógica das UPPs propunha a permanência das forças policiais no território, com o objetivo de estabelecer laços com a população local e evitar a utilização da força e do armamento letal.
Não foi apenas no Rio que houve experimentos nessa linha. Projetos como o Fica Vivo! em Minas Gerais, Ceará Pacífico e Pacto pela Vida em Pernambuco, são outros exemplos de políticas públicas de segurança que reposicionaram a atuação da polícia em sua relação com as periferias. Cada programa teve suas especificidades, mas, de forma geral, a profusão de iniciativas baseadas em prevenção da violência, mediação de conflitos, redução da letalidade policial, policiamento de proximidade e valorização dos agentes ganhou destaque nos anos 2000 e 2010. Os indicadores de mortes violentas cometidas por policiais caíram sucessivamente em vários desses estados, enquanto outros indicadores criminais também acompanhavam o movimento de queda, demonstrando de forma cristalina que o combate ao crime não precisa ser acompanhado de violência.
O Rio de Janeiro registrou em 2012 e 2013 os menores números de mortes cometidas por policiais desde o início da série, em 2003. Foram 419 e 416 mortes, respectivamente. Em um estado que se acostumou a contar mais de mil mortes cometidas por agentes do Estado todos os anos, os resultados registrados nos anos das UPPs mostraram que é possível reduzir a violência das polícias.
A mudança de rota só foi possível porque havia o comprometimento de governadores e secretários de Segurança com um reposicionamento na lógica das polícias. No caso do Rio de Janeiro, o governador à época, Sérgio Cabral, elegeu o projeto como prioridade, dando autonomia ao então secretário de segurança pública, José Mariano Beltrame. Algo parecido ocorreu no Ceará sob o comando de Camilo Santana, em Pernambuco com Eduardo Campos e em Minas com Aécio Neves. A participação de governadores na condução da pauta de segurança pública foi condição necessária para que esses projetos pudessem sair do papel.
Em 2022, falar sobre esses programas deixa um gosto meio amargo. Em 2013, o auxiliar de pedreiro Amarildo Dias de Souza desapareceu na favela da Rocinha após ser abordado por policiais. O caso gerou comoção nacional e internacional, além de deixar evidente que algo já não estava dando muito certo no projeto das UPPs. A rápida expansão das unidades guiada por interesses eleitorais colocou em xeque a sustentação do modelo, a degradação das condições de vida dos policiais foi minando nos agentes comprometidos com as ideias do programa a esperança de que ele poderia continuar sendo um sucesso. Outros casos de violência se somaram ao de Amarildo. Ao longo das investigações se soube que o pedreiro foi torturado e brutalmente assassinado. Seu corpo nunca foi encontrado.
As fraturas no projeto estavam expostas e com elas outros problemas começaram a aparecer para o público geral: o lado social das UPPs, com projetos de esportes e educação conduzidos por policiais, abalou o financiamento de organizações locais que ofereciam por anos essas atividades para crianças e jovens das favelas “pacificadas”. O progressivo controle das atividades de cultura, das associações de moradores e da economia local criou a imagem de que os policiais procuravam ser novos “donos do morro”, criando regras de regulação da vida social. O caldo foi engrossando até que, durante os Jogos Olímpicos de 2016, casos de violência, trocas de tiros e cenas de truculência policial demostraram de forma eloquente que as UPPs já tinham sido extintas há tempos e só o nome do projeto permanecia o mesmo.
De formas semelhantes, projetos de outros estados, mais cedo ou mais tarde, começaram a apresentar problemas. No Ceará, Juan Ferreira dos Santos, adolescente de 14 anos, foi morto por policiais militares no bairro Vicente Pinzón, um dos territórios do Ceará Pacífico. As polícias do estado também chamaram atenção nacional por sua politização, que levou a motins policiais, com um ataque a tiros ao senador Cid Gomes, em Sobral. Em Pernambuco, o bairro de Ibura, no Recife, registrou casos de violência ligados a repressão de bailes funk, incluindo mortes em ações policiais. Também na capital pernambucana, o bairro de Peixinhos assistiu a casos dramáticos de morte de adolescentes e jovens ao mesmo tempo em que o governo do estado passava a restringir o acesso a dados sobre as mortes violentas, levando a sociedade civil a construir e divulgar um banco de mortes próprio. Em Minas, o programa Fica Vivo! registrou queda de 70% no atendimento de jovens e não tem conseguido se adequar a novas dinâmicas de criminalidade e às mudanças na sociedade mineira.
As políticas integradas, focadas em inteligência e prevenção, foram paulatinamente sendo substituídas, em sua maioria, por políticas que, de um lado, davam total autonomia às polícias, desarticulando ações conjuntas entre agências e outras secretarias de estado; e, de outro, incentivavam o uso da violência como forma de combate ao crime. Os desafios centrais para a construção de uma segurança pública cidadã, que de fato promova direitos, também não foram encarados de maneira concreta. A ideia de que moradores de favelas e periferias formam uma “população carente” ou são “cidadãos de segunda classe” fundamentou a atuação paternalista das polícias e o controle da sociabilidade nesses territórios, com a disseminação de ideias como “eles não sabem do que precisam” e “eles precisam ser controlados”.
As polícias não mudaram. Na verdade, em quase todos os estados, elas se tornaram piores. A violência policial escalou em número de mortes, alimentada por discursos de incentivo à barbárie. Ações e declarações de cunho político proferidas por comandantes policiais e porta-vozes de governo se tornaram comuns nos noticiários. As chacinas do Jacarezinho e da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, se tornaram expressão bem acabada da gestão de Cláudio Castro, companheiro de chapa do ex-juiz que defendeu o “tiro na cabecinha” e comemorou morte de criminoso como um torcedor que vibra com o gol do time.
Nos últimos anos também temos visto aquisições de novas tecnologias para as polícias, como o reconhecimento facial, com o objetivo de mostrar certa modernização das instituições policiais. Na verdade, elas aprofundam a mesma lógica de encarceramento em massa já bem conhecida e trazem um gasto público desnecessário e ineficiente. Acreditar que o racismo que guia há séculos a atuação das polícias seria superado pela simples adoção de algoritmos de “seleção de suspeitos”, pretensamente objetivos, é não somente fantasioso, como também um subterfúgio para escamotear o problema central das políticas de segurança no Brasil.
As UPPs e os outros programas desenvolvidos sob linhas semelhantes não deram certo. Mas, ao menos, as políticas de segurança pública incluíam projetos e ações de prevenção e investiam na investigação qualificada do crime, além de combater esse que é o problema central: a violência das polícias. Em 2022 temos nova oportunidade de escolher candidatos a governador que estejam comprometidos em discutir o papel das polícias na segurança pública, com o controle de suas ações, mantendo a atuação sob bases democráticas, de promoção de direitos e defesa da vida. Se não for assim, poderemos aguardar as próximas chacinas, os novos recordes de letalidade policial e uma sociedade cada vez mais violenta.
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