minha conta a revista fazer logout faça seu login assinaturas a revista
piauí jogos

    A oficial de justiça Daniela Quintella na varanda de sua casa, na Barra da Tijuca Crédito: Tiago Coelho

questões do condomínio

A bandeira vermelha fica

Moradora batalha por direito de estender solitário pavilhão petista em condomínio repleto de bandeiras do Brasil

Tiago Coelho | 29 out 2022_07h00
A+ A- A

Na segunda quinzena de agosto, Daniela Quintella acordou, foi até a sacada de seu apartamento e viu que os prédios do bloco da frente ostentavam bandeiras do Brasil. Com o início oficial da campanha política, cerca de quinze apartamentos puseram a flâmula verde e amarela pendurada na fachada. “Eu pensei: vocês são muitos, mas nem todo mundo pensa igual a vocês por aqui. E pendurei a minha bandeira do PT no vidro do parapeito da varanda”, disse a oficial de justiça. 

Quintella mora na Barra da Tijuca, na Zona Oeste, região majoritariamente bolsonarista e onde reside o presidente Jair Bolsonaro. Ela vive num apartamento no Rio 2, um condomínio fechado do tamanho de um bairro, cercado por muros e com infraestrutura própria com escola, igreja e mini-shopping, além de áreas de esporte e lazer. O condomínio reúne vários prédios residenciais onde vivem cerca de 15 mil pessoas, resguardadas por guaritas de segurança. Um estilo de moradia que caracteriza a Barra da Tijuca. No primeiro turno, Bolsonaro venceu Lula no bairro. Teve 50% dos votos, contra 37% de Lula.

No dia 27 de agosto, a moradora da cobertura colocou uma bandeira vermelha com uma estrela branca escrito PT na varanda. Quintella achou que a disputa pararia por aí. Mas no mesmo dia, teve que enfrentar a burocracia predial. Recebeu em seu WhatsApp a seguinte mensagem: “Gostaríamos que a senhora fizesse a gentileza de retirar a bandeira que está em seu vidro, porque de acordo com o regulamento é proibido colocar anúncio, inscrições ou letreiros, inclusive de propaganda eleitoral.” A apoiadora de Lula respondeu: “Os outros moradores com suas bandeiras também estão sendo notificados?” A administração disse que bandeiras do Brasil eram permitidas por serem um símbolo nacional. O condomínio não poderia pedir para retirá-las.

Quintella estava diante de um impasse. Ela respondeu ao condomínio: “Vou dar outro jeito. Até chegar a uma solução que a bandeira permaneça. Porque se os fascistas podem…” O condomínio rebateu que o pedido não era por causa de sua opção partidária, apenas cumprimento da norma.

A moradora sabia que aquelas bandeiras do Brasil penduradas nas outras fachadas não estavam ali apenas como um símbolo nacional, mas como apoio político a um candidato. Ela pensou em comprar uma briga com o condomínio e dizer: “Se eu retirar a minha bandeira, todo mundo vai ter que fazer o mesmo.” Mas como provar que aquelas bandeiras não estavam ali como símbolo nacional, mas como apoio político a Jair Bolsonaro?

No dia seguinte, Quintella despregou a bandeira do vidro conforme a advertência da administração. Mas teve uma ideia. Colocou um varal de armar no chão, pendurou a bandeira como uma roupa estendida e aproximou o varal do parapeito de vidro. Desceu até a rua e ficou satisfeita com o resultado. A bandeira era visível lá de baixo. E ela não estava disposta a tirar.

A varanda de Quintella fica num lugar estratégico para a exibição da bandeira. Ao mesmo tempo que fica de frente para outros dois blocos, tem ampla visibilidade para quem frequenta o shopping do condomínio e para a avenida Coronel Pedro Correia. 

Pelo regulamento do prédio, também não se pode colocar varal na sacada. Mas o utensílio é comumente visto nas varandas dos apartamentos. “A proibição de colocar varal na varanda é uma norma que todo mundo descumpre e todo mundo faz vista grossa. Eu moro na cobertura. Tenho espaço para estender roupa. Mas se implicassem com meu varal, eu compraria a briga com todos que usam varal na varanda”, disse Quintella.

No mesmo dia em que colocou o varal, o porteiro interfonou questionando a permanência da bandeira. A oficial de justiça mandou uma foto para o WhatsApp da administração mostrando que sua bandeira não estava mais pendurada no vidro. Apenas estendida no varal perto do vidro. “Tenho o direito de pendurar o que eu quiser no varal. Se o regulamento não permitir varal de chão na varanda, então a administração vai gastar papel para notificar todos os apartamentos, acho que vai criar um problema, mas vou fiscalizar”, dizia a mensagem de Quintella enviada à administração.

Para finalizar a questão, Quintella decidiu colocar um fio no teto com cerca de dez centímetros de distância do parapeito de vidro onde pendurou a bandeira e, de quebra, estendeu uma toalha com o rosto de Lula. Distante da fachada de vidro, mas o suficiente para que vizinhos e as pessoas na rua pudessem ver com clareza sua opção política. “Se vier alguma reclamação, eu falo que é a minha decoração e que ninguém vai se meter na minha decoração interna. E a bandeira e a toalha ficaram até mais esticadinha.”

A oficial de justiça percebeu que, assim que colocava a bandeira, rapidamente a administração predial ligava ou mandava mensagem reclamando. Ela suspeita que algum vizinho a esteja monitorando. Nas últimas semanas, tomou uma decisão: tirou o interfone do gancho. A medida, ela disse, não é para não ser importunada pela administração do prédio, mas para descobrir quem é o autor da denúncia. “Enquanto o vizinho fica monitorando minha bandeira e pedindo anonimamente para a administração que eu a retire, não tenho como enfrentá-lo. Se deixo meu interfone fora do gancho, a administração terá que emitir uma notificação por escrito. E nessas notificações, o vizinho denunciante precisa se identificar. E aí saberei quem está vigiando minha varanda.”

 

Para José-Ricardo Lira, da Comissão de Direito Urbanístico e Imobiliário da OAB, a convenção do condomínio deve ser respeitada e reger o que pode ou não no condomínio. Mas ele faz uma ressalva: “A convenção é a república do condomínio. Mas não faz sentido proibir a bandeira do PT e não a do Brasil. É mais do que claro que, no atual contexto, as bandeiras do Brasil representam apoio a Jair Bolsonaro. Ele se apropriou politicamente desse símbolo. É preciso analisar a situação de acordo com o atual contexto. Permitir a do Brasil e proibir a do PT é também prestigiar um partido. E criar uma relação de desigualdade entre os moradores”, disse Lira.

A síndica Lígia Moura foi ouvida pela piauí e reiterou que o pedido para a retirada da bandeira do PT da sacada nada tinha a ver com perseguição política, mas com o cumprimento das normas do residencial. E reafirmou que não pode pedir que os outros moradores retirem as bandeiras pregadas nos vidros da fachada dos apartamentos por ser um símbolo nacional.

Lira disse desconhecer qualquer lei que diga ser ilegal pedir para retirar uma bandeira do Brasil da fachada. “É a convenção do condomínio que determina a regra do que pode e o que não pode. A lei diz apenas que não pode haver alteração na fachada do condomínio.” 

De qualquer forma, a síndica deu o caso da bandeira do PT por encerrado. E finalizou: “Se a moradora retirou a bandeira dela do vidro e colocou fora da fachada, não há problema.” 

No dia 14 de outubro, Jair Bolsonaro estendeu uma bandeira do Brasil gigantesca no Palácio do Planalto. O prédio desenhado por Oscar Niemayer é tombado como patrimônio histórico e não pode receber interferência em sua fachada. A coligação partidária que apoia Lula pediu que o TSE determine a retirada da bandeira. Bolsonaro desafiou: “Ninguém vai ter coragem de falar ‘retira daí’”. A bandeira permanece no mesmo lugar.

Daniela Quintella se mudou para o Rio 2 em 2018. Foi um período eleitoral tenso, mas que nem de longe se compara com este. Naquela ocasião, não colocou nenhuma bandeira na janela, tampouco seus vizinhos. Ela se mudou de Copacabana para a Barra para ter mais espaço para os cães e gatos que cria e ficar mais próxima de seu trabalho. Diz que aprendeu com os pais, desde pequena, os valores de esquerda, lendo livros da biblioteca que a mãe cultivava em casa. Seu avô, um médico do exército, era considerado na caserna um “melancia”: verde por fora e vermelho por dentro.

Mesmo sabendo que a Barra da Tijuca tem um eleitorado conservador, sempre gostou e se deu bem com os vizinhos. Sempre os considerou cordiais. Ainda hoje, anda pelo condomínio com camisas vermelhas de apoio à Lula, adesivos na roupa e no carro, brincos de estrela, e disse nunca ter sofrido qualquer hostilidade por parte dos vizinhos.

Mas a ideia de que possa estar sendo monitorada a preocupa. “Eu não sei quem é o vizinho que monitora minha bandeira e avisa à administração. Tem tanta bandeira do Brasil no entorno. A gente já viu muita coisa preocupante. A janela de um apartamento em Recife já foi alvejada. Então por um tempinho eu fiquei com um certo receio de chegar até a varanda. A ideia de ser vigiada me preocupa”, ela disse.

Quintella espera que venham tempos mais tranquilos. Mas, por hora, evita grupos de amigos e familiares que endossem falas e ações de Jair Bolsonaro que ela considera inadmissível. Quintella participa de grupos de WhatsApp do condomínio, como grupos de compra e venda, informes e de defesa dos animais – nos quais os administradores pedem que não se discuta política. Mas o clima de disputa é inevitável. Um dos motivos que fizeram Quintella colocar a bandeira na varanda foi encorajar outras pessoas que pensam como ela. Por um tempo, achou que estava praticamente sozinha, mas uma confusão sobre política num grupo de WhatsApp de moradores do condomínio tirou alguns apoiadores de Lula do armário.

“Ficou uma guerrinha de memes e figurinhas de lulistas e bolsonaristas. Eu ia convidando no privado as pessoas que se metiam na briga apoiando Lula para participar do grupo Rio 2 Antifascista”, disse Quintella. O grupo que tinha meia dúzia de pessoas cresceu para 25 integrantes.

O morador Daniel Ferreira, um engenheiro de 45 anos, entrou para o grupo. Ele acredita que tenha muito mais apoiadores de Lula no condomínio do que os presentes no grupo. Mas acredita que os ânimos inflamados por parte de eleitores de Jair Bolsonaro inibam a manifestação pública deles no bairro e no condomínio. “Conversei com minha mulher e disse que a gente não poderia ter medo nem se acovardar. Penduramos nossa toalha do Lula. Acho que é um ato que pode encorajar outras pessoas.”

Nos últimos dias e até amanhã, o grupo vai se reunir para virar voto no bairro.