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    Priscilla Formigari gravou um vídeo em lágrimas contando que foi coagida a tirar a bandeira do arco-íris da janela de sua casa. "Não é uma bandeira de um partido político. Aquela bandeira é quem a gente é", ela diz. CRÉDITO: ACERVO PESSOAL

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Duas bandeiras, duas medidas

Mulher é obrigada a tirar bandeira do arco-íris da varanda em edifício cujas sacadas exibem bandeira do Brasil

Felippe Aníbal | 22 set 2022_16h02
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Ointerfone do apartamento da nutricionista Priscilla Formigari, de 26 anos, tocou por volta das 14h30 de segunda-feira (19), no Portão, bairro de classe média em Curitiba. Do outro lado da linha, a síndica do condomínio, Luciana Algouver, pedia que a moradora recolhesse a bandeira do arco-íris que mantinha pendurada na sacada desde o Sete de Setembro. A síndica argumentou que ao longo do fim de semana anterior tinha recebido reclamações recorrentes de outros condôminos – entre as quais a de uma moradora que disse que “sentia nojo” de ver o símbolo do movimento LGBTQIA+ afixado em um apartamento do condomínio. Atônita, Formigari mal pôde acreditar no que ouviu. Pela sacada, ela via três bandeiras do Brasil estendidas em janelas de apartamentos do bloco da frente. Apesar de considerar o pedido incoerente, a nutricionista acabou cedendo.

Com o celular, Formigari gravou um vídeo recolhendo sua bandeira. Em seguida, às lágrimas, gravou um depoimento relatando o caso e postou o conteúdo em suas redes sociais. Em entrevista à piauí, ela disse que chegou a dizer à síndica que aceitaria recolher sua bandeira se os vizinhos da frente fizessem o mesmo, mas a responsável pelo condomínio argumentou que não ordenaria a remoção das bandeiras do Brasil em razão da Copa do Mundo – que começa em 20 de novembro, daqui a quase dois meses. Formigari, que se define como bissexual, colocou o estandarte do arco-íris do lado de dentro da sala de casa, mas não se conformou.

“A gente sabe que a bandeira do Brasil virou símbolo de um grupo político. Não tem nada a ver com Copa do Mundo. A minha bandeira também tem um símbolo político. Mas eles podem se expressar e nós não?” questionou ela. “Eu sempre sinto olhares de moradores quando ando de mãos dadas com a minha namorada, que é uma mulher preta. Quando a síndica disse que sentem nojo da nossa bandeira, eu fiquei muito abalada: me senti errada, culpada, envergonhada e revoltada. Tudo ao mesmo tempo. Não é uma bandeira de um partido político. Aquela bandeira é quem a gente é”, acrescentou.

Não foi o único caso de intolerância ocorrido no Condomínio Habitacional Vila Romana ao longo de setembro. Moradoras de outro bloco, a animadora Camila de Melo, de 32 anos, e a analista Ana Paula Verdan, de 27, tinham colocado diante da porta de entrada de seu apartamento um capacho estampado com as cores do arco-íris e a frase “Sejam bem viados”. No Sete de Setembro – no mesmo dia em que Formigari pendurou sua bandeira na sacada –, o tapete de Melo e Verdan amanheceu manchado com gotas de tinta vermelha exclusivamente sobre a palavra “viados”.

“A gente sempre percebeu olhares diferentes no condomínio e estava até com medo de colocar o tapete. Um dia decidimos colocar. No dia do ataque, eu tinha me levantado feliz, porque tinha visto a bandeira [do arco-íris] na janela da Priscilla, que eu nem conhecia. Pensei: ‘Puxa, não estamos sozinhas.’ Aí, quando abri a porta, vi o tapete desse jeito, todo manchado. É muito agressivo”, contou Verdan.

Publicada em 15 de setembro pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e pela Rede de Ação Política Pela Sustentabilidade (Raps), a pesquisa Violência e Democracia: Panorama Brasileiro Pré-Eleições de 2022 traz indicadores que ajudam a entender o avanço da intolerância relacionada à população LGBTQIA+. Entre os 2,1 mil entrevistados, 16% concordaram com a afirmação que “os homossexuais são quase criminosos e deveriam receber um castigo severo”. Na edição da pesquisa de 2017, o índice era menor: 13%.

Nas eleições presidenciais de 2018, o Brasil já tinha observado números alarmantes no que diz respeito à violência contra gays, lésbicas, travestis, transgêneros e afins. Uma pesquisa da organização Gênero e Número, com apoio da Fundação Ford, apontou que 51% da população LGBTQIA+ relataram ter sofrido algum tipo de violência ao longo daquele período eleitoral. As mulheres lésbicas foram as que mais disseram ter sido alvo de violência (57%), seguidas por pessoas trans e travestis (56%), gays (49%) e pessoas bissexuais (44,5%).

Representante da organização não governamentais #VoteLGBT, Evorah Cardoso elaborou um levantamento informal a partir da análise de redes sociais de candidatos e candidatas LGBTQIA+. Ela identificou 54 ataques ocorridos ao longo deste processo eleitoral, que vão desde injúrias ou ameaças de morte, como a relatada na segunda-feira (19) pela deputada estadual e candidata a deputada federal Isa Penna (PCdoB-SP), após ela ter pedido a cassação do deputado bolsonarista Douglas Garcia (Republicanos-SP).

“Eu me surpreendi, porque o levantamento nos mostra algo sistemático. São diferentes níveis de violência: de ataques nas ruas durante panfletagem, passando por dificuldades de candidaturas em acessar verbas do fundo partidário, chegando a ameaças e agressões, racismo, misoginia e intolerância”, disse Cardoso, doutora em sociologia jurídica. “Por outro lado, quando a gente olha os ataques, fica muito claro quem são as candidaturas atacadas e quem ataca. As vítimas são majoritariamente candidaturas de esquerda. Quem ataca são sempre partidos de direita, que usam essa violência como marketing político, como modus operandi. Elas têm seu capital político na lgbtfobia e na transfobia”, acrescentou.

Pesquisa realizada pela #VoteLGBT durante a Parada do Orgulho LGBT+ em São Paulo – e que ouviu 930 pessoas – apontou que 88,9% dos entrevistados têm intenção de votar em candidaturas LGBTQIA+. Apesar disso, apenas 47% conheciam pessoas gays, lésbicas, trans ou afins, candidatas a algum cargo eletivo. Reportagem da piauí mostrou os episódios seguidos de violência enfrentados por mulheres trans que lutam por uma inédita cadeira na Câmara dos Deputados. Por outro lado, pesquisa da Escola de Gêneros listou 247 projetos de lei em tramitação no Congresso considerados contrários a direitos da população LGBTQIA+: 245 na Câmara e 12 no Senado. A tônica é a mesma nos estados: levantamento realizado pelo portal Agência Diadorim identificou, em tramitação em assembleias legislativas, 120 projetos de lei que retiram direitos básicos de gays, lésbicas, transgêneros e afins – ou dificultam o acesso a eles.

Para Cardoso, a votação maciça em candidaturas LGBTQIA+ é importante, mas a conjuntura de violência vai além das urnas. Ela aponta como determinante a necessidade de uma resposta institucional, que coíba o que ela classifica de “máquina do ódio”. Segundo a especialista, tudo isso passa, necessariamente, pela criação de mecanismos mais eficientes de controle e distribuição igualitária de verbas do fundo partidário.

“Se colocamos o voto como única saída, levamos à falsa sensação de que o eleitor está escolhendo mal seus representantes. Como se as regras do jogo não levassem essas pessoas que proliferam esse discurso de ódio a ocupar os cargos que estão ocupando”, disse Evorah. “O fundo eleitoral é distribuído com base no número de cadeiras que um partido tem. Se o discurso de ódio é eficiente para ganhar eleições, ele gera mais recursos públicos para a próxima campanha, fazendo com que esse discurso de ódio se perpetue. O dinheiro público não pode alimentar essa máquina do ódio. As regras estão permitindo que sejamos representados por homens brancos, cis e héteros”, avaliou.

No Condomínio Habitacional Vila Romana, a síndica Luciana Algouver disse ter sido surpreendida pelos recentes casos de intolerância. Responsável pelo condomínio ao longo dos últimos cinco anos, ela afirma que nunca tinha tido problemas dessa natureza com nenhum dos moradores dos 216 apartamentos do conjunto. A síndica afirmou que tem tentado “pôr panos quentes” nos incidentes, para que os casos não tomem dimensões maiores. Ela acrescentou que as “reclamações” partiram de um grupo reduzido – de moradores de três apartamentos –, que não representam a maioria dos condôminos.

“As pessoas me ligaram enfurecidas, perguntando o porquê da bandeira, o porquê do tapete. Eu explico que homofobia é crime, que eles não podem ter esse tipo de conduta. Pra eles, é homem com homem e mulher com mulher. Mas eu fico no meio dessa discussão. Estou tentando entender, pôr panos quentes, para não ir para um lado, nem para o outro, senão inflama mais do que já está e vira um auê do cão”, disse a síndica.

Algouver informou que o regimento interno do condomínio proíbe que os moradores afixem artigos, como bandeiras, nas janelas ou nas sacadas. Questionada sobre o fato de as bandeiras do Brasil terem continuado em janelas de condôminos, ela justificou alegando que a permissão foi dada em razão da Copa do Mundo. Formigari e Melo, no entanto, dizem que as bandeiras verde-amarelas – mais de dez – já estão expostas há meses.

“Eu marquei uma reunião com uma advogada para me informar. Como isso nunca aconteceu no condomínio, eu não sei bem como proceder. Mas vou buscar essa orientação”, afirmou a síndica. “Em princípio, eu vou permitir as bandeiras do Brasil até o fim da Copa. Depois, todo mundo vai ter que tirar”, acrescentou a síndica.

Em seu apartamento, Formigari decidiu esperar o parecer da advogada que será consultada pela síndica. Enquanto isso, o episódio parece ter servido para aproximá-la de outros moradores LGBTQIA+ do condomínio. “Eu não conhecia a Camila. Também tem um outro casal de meninos no outro bloco. É bom saber que não estamos sozinhas”, enumerou. Além disso, a nutricionista tem recebido bastante apoio por meio das redes sociais. Na manhã de quarta-feira (21), por exemplo, chegou ao seu celular uma mensagem pedindo que ela não recue: “A gente não pode mudar o mundo, mas a gente pode mudar as coisas ao nosso redor”, diz trecho da mensagem. “Eu quero ter segurança para poder colocar minha bandeira novamente na varanda, porque ela tem muito significado para mim. E ela nos une”, afirmou a nutricionista.

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