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A FLORESTA DIFÍCIL

Leia (e veja) trecho inicial da reportagem que abre a série Arrabalde, escrita por João Moreira Salles e publicada na edição 170 da piauí

Gota do Sol

Um grau de latitude separa Belém da linha do Equador.

De dia, o sol fustiga a cabeça, os ombros, o rosto, os postes, as casas, os prédios, as calçadas, os carros, os ônibus.

O sol fustiga tudo.

 Numa manhã de dezembro de 2019, no bairro Castanheira, um segurança da Igreja Universal do Reino de Deus olhava os carros passarem pela via expressa. No alto da escadaria que leva ao templo, em meio às buzinas, à fumaça e à feiura, lá estava o homem em seu posto, sem nenhuma sombra a protegê-lo. Eram oito da manhã, fazia 36ºC e ele vestia camisa, gravata e terno pretos, o paletó fechado até o último botão.
  Temos visto isso, esse empréstimo de protocolos criados para outras culturas e outros climas. A incongruência da cena, contudo, não é apenas um verbete a mais no rol das nossas imitações malfeitas. Aquilo é impraticável. O segurança de terno preto debaixo do sol equatorial é viável por muito pouco tempo. Se permanecer ali toda a manhã, desmaia; se não for acudido, morre. O que significa duas coisas: que a paisagem natural, eliminada no fio das décadas, já não é capaz de protegê-lo e que a paisagem que a substituiu, construída à custa de muito trabalho, não é aliada da vida.

  Em 1848, dois naturalistas ingleses, Henry Walter Bates e Alfred Russel Wallace, desembarcaram em Belém. No livro que Bates publicaria sobre os seus onze anos na região, Um Naturalista no Rio Amazonas — considerado por Darwin a melhor obra de história natural até então surgida na Inglaterra —, ele anota: “Na manhã do dia 28 de maio chegamos ao nosso destino. O aspecto da cidade ao amanhecer era extremamente aprazível.” Pela primeira vez tinha os trópicos diante de si, mas, para surpresa do leitor contemporâneo, Bates não reclama do calor, pelo contrário: “O clima nunca se mostra seco demais, pois jamais decorrem três semanas consecutivas sem algumas pancadas de chuva.” Ele elogia o viço das folhagens e a atmosfera amena da cidade, qualidades que atribui “ao frescor e à sombra proporcionada por sua exuberante vegetação”.

Bates e Wallace logo deram com borboletas.

  Amarelas, azuis, multicolores, “em quantidades nunca vistas por nós”. Era impossível percorrer os caminhos à beira-rio sem que bandos delas levantassem voo, num espetáculo tão espantoso que Bates achou necessário informar: “O leitor terá uma ideia da diversidade das borboletas se eu disser que podem ser encontradas cerca de setecentas espécies delas numa caminhada de uma hora nos arredores da cidade, ao passo que nas Ilhas Britânicas o número total conhecido não excede 66, e em toda a Europa, não vai além de 321.”

 Oitenta anos depois, o escritor Mário de Andrade também esteve na cidade. Em 20 de maio de 1927, ele escreveu em seu diário de viagem: “O calor aqui está fantástico, porém o paraense me falou que embora faça mesmo bastante calor no Pará o dia de hoje está excepcional”, obrigando-o a entrar no banho “de cinco em cinco minutos”. Apesar do calorão que lhe batia na cabeça “que nem um remo”, Mário gostou da cidade e foi se entusiasmando à medida que andava pelas ruas e provava as comidas nos mercados populares. Ficou até “lustroso de felicidade”.

A Belém de Mário é muito mais urbana que a de Bates. Ali pouco se fala de flora e ainda menos de fauna, salvo a aprisionada no zoológico do Museu Goeldi. Mário admite ter mais prazer em admirar a natureza do que em descrevê-la, o que ajuda a compreender o sabor essencialmente citadino de suas anotações. Mas é possível que essa sua Belém de sol, calor e tumulto não seja fruto apenas da sensibilidade de um modernista mais à vontade no burburinho das cidades. Em parte, a explicação para que a capital paraense tenha se descolado de seu meio natural pode ser encontrada não no diário do escritor paulista, mas nas observações do viajante inglês de meados do século XIX que o precedeu.

Bacuri

Henry Bates deixou registrado o processo acelerado de eliminação da natureza. Onze anos depois de chegar a Belém e a poucos dias de retornar à Inglaterra, ele escreveu: “Ao andar pelas matas das redondezas — minhas velhas conhecidas —, notei que tinham sofrido muitas mudanças […] O espesso tapete de plantas rasteiras, arbustos e trepadeiras que em outros tempos — quando os arredores da cidade ainda não tinham sido mutilados pelo machado e a enxada […] — havia sido quase todo arrancado […] As majestosas árvores da floresta tinham sido cortadas, e os restos de seus troncos semicarbonizados projetavam-se do meio das cinzas, das poças de lama e dos montes de galhos partidos.” Desolado, Bates concluiu: “Os naturalistas, a partir de agora, terão de ir muito mais longe da cidade para encontrar o soberbo cenário da selva virgem, que ficava tão perto em 1848; precisarão também trabalhar muito mais arduamente para reunir as grandes coleções que o sr. Wallace e eu conseguimos obter nos arredores do Pará.”

O sol que hoje nasce em Belém bate numa cidade separada de sua paisagem. Segundo dados de 2012 do IBGE, Manaus e ela são as duas capitais menos arborizadas do país. De manhã cedo, a vista do alto de um prédio é de uma bola de fogo que fustiga o concreto e o ferro. Por trás das ondas de calor que o asfalto refrata, surge a silhueta incerta dos espigões, centenas deles, espalhados por toda parte sem ordenamento urbanístico aparente. A cena é monocromática, baça, e nela os trópicos foram eliminados. Calhou de a cidade estar ali, mas poderia estar em outro lugar. A impressão é de que Belém já não sabe onde está.

Gota de Água Suja

“Uma cidade com cara de nada”, na expressão do fotógrafo Luiz Braga, que vem documentando sua terra natal há décadas. No passado, Braga fotografou a vida nos bairros ribeirinhos, com seus bares coloridos e paredes em que artistas populares pintavam a floresta. A cidade empurrou várias dessas comunidades para as periferias e muitas sucumbiram ao processo de degradação que marca a vida urbana brasileira. “Voltei a esses lugares e eles estavam bege.” Sumiram as cenas da mata.

Ainda assim, Belém é uma cidade amazônica, e pelas manhãs, no Mercado Ver-o-Peso, é possível assistir ao espetáculo da floresta que chega pela Baía do Guajará, trazido por embarcações que despejam suas mercadorias no cais: cupuaçu, uxi, taperebá, açaí, bacuri, murici, andiroba, tucunaré, pirarucu.

Não muito longe dali, num dos maiores supermercados da cidade, não seria fácil encontrar a maioria desses produtos. As gôndolas centrais da seção de frutas terão maçãs, peras, morangos, tamarindos, romãs e pitaias, todas espécies exóticas; as amazônicas, com exceção da papaia e do abacaxi, não estão à vista. Dentre as muitas geleias, apenas duas de fruta nativa, a de goiaba e a de abacaxi. Para alcançar a castanha-do-pará, é preciso esticar o braço e, dependendo da altura do interessado, ficar na ponta dos pés — o produto é estocado na prateleira mais alta da gôndola; à altura dos olhos, Fandangos, Ruffles, Cheetos e fileiras de amendoim japonês. Rente à boca do caixa, além de chicletes e aparelhos de barbear, amêndoas importadas dos Estados Unidos, nas variedades honey roasted e wasabi and soy sauce.

Ao abrir o frigobar de um dos maiores hotéis da cidade, o hóspede poderá encontrar suco de uva, Nescau, Coca- Cola, Red Bull, cerveja, vinho. Para não dizer que a floresta está ausente, haverá uma lata de guaraná Antarctica, embora ela não esteja ali para celebrar a maior biodiversidade do planeta, um complexo ecológico cuja abundância ainda ignorada começa a poucos quilômetros dali, nas ilhas florestadas do Guamá, rio que banha Belém.

Produtos Produtos

O problema, claro, não é a Coca-Cola, a geleia de framboesa ou as peras trazidas do Chile, mas a ausência conspícua dos produtos nativos. É um sintoma de descompasso das pessoas em relação a seu entorno e da dificuldade que uma economia florestal enfrenta para superar o consumo de nicho e a produção de subsistência. Num encontro de jovens empreendedores ocorrido em novembro de 2019 no Sebrae de Belém, Hortência Maria Osaqui Floriano, proprietária de uma indústria de processamento de frutas nativas em Augusto Corrêa, município paraense com um dos menores IDHs do Brasil, falou dos obstáculos que precisa vencer para escoar sua produção de geleias de bacuri, cupuaçu, açaí e buriti: “Quando você coloca no armazém, é vendido como suvenir. Só turista compra. Não consigo vender pra supermercado porque não tem público. Tentei e o produto perdia a validade na prateleira. Escoo alguma coisa para os empórios frequentados por um público AA.” A empresária desistiu do esforço de vender localmente para se concentrar na prospecção de mercados no Sudeste do Brasil e no exterior — Suíça, Reino Unido, Canadá e Estados Unidos.

“O outro lado do rio” — o lado dos ribeirinhos — “tem uma inteligência que não chega aqui, que não se incorpora ao conhecimento”, diz Luiz Braga. A floresta sumiu da vida das pessoas. Quando era menino, conta, toda casa burguesa na cidade tinha um quadro de Arthur Frazão. Eles “traziam a floresta para dentro das residências da elite. Na década de 1960, eu me lembro de ver esses quadros na casa dos amigos dos meus pais”. Naquelas imagens acadêmicas e muitas vezes ingênuas, o elemento essencial era a conexão ao menos simbólica com o entorno, um sentimento de lugar. “Hoje essas cenas desapareceram. Existe um deslocamento das pessoas que têm dinheiro em relação ao lugar onde elas estão.”

Não que representações da mata nas paredes de casa fossem uma garantia de relação mais harmoniosa com a floresta. A ausência de vínculos com o mundo natural é um fenômeno de séculos que Henry Walter Bates já identificara na elite local. Ao voltar para Belém depois de anos embrenhado na mata, foi cumulado de atenções por seus amigos: “Fiquei bastante surpreso com o grande apreço que as pessoas mais importantes da cidade deram aos trabalhos que eu havia realizado”, registrou. “A verdade é que o interior do país ainda é considerado 'sertão' — uma terra incógnita para a maior parte dos habitantes da orla marítima — e um homem que havia passado sete anos e meio explorando esse sertão com objetivos exclusivamente científicos não deixava de ser uma curiosidade.”

Transcorridos 160 anos desde essas observações, um ex- governador do Pará, Simão Jatene, não acha que muita coisa tenha mudado: “A Amazônia é periferia não só econômica, mas também de pensamento. O Brasil não se preocupou em produzir uma ideia sobre a floresta.” Nas palavras de Luiz Braga, a Amazônia é “o que se esquece do Brasil”. “É resto”, resume Jatene.

Resto também para boa parte de quem planta nela, cria boi nela, tira minério dela, mora nela. O homem de terno preto sob o sol do Equador é o retrato desse desconcerto, a figura de um impasse. Ele é o boi, a soja, o garimpo, o machado, a serraria, o modo como essas coisas ocuparam a floresta e substituíram uma paisagem por outra sem nunca pôr em questão a viabilidade da troca.

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