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Em sua biografia do naturalista alemão Alexander von Humboldt, A Invenção da Natureza, a historiadora Andrea Wulf observa que no século XVIII ideias de perfectibilidade da natureza dominavam o pensamento ocidental. Era preciso aperfeiçoá-la, expurgá-la do que fosse confusão. Campos cultivados refletiam a civilização, enquanto matas densas representavam o que ainda escapava à empresa humana. Nada encarnava tão bem esse descontrole quanto as florestas do Novo Mundo, “uma ‘selva desolada’ que tinha de ser conquistada”, escreve Wulf.

Euclides da Cunha viajou pela Amazônia no início do século XX, chefiando a missão incumbida de demarcar os limites territoriais entre o Brasil e o Peru na região do Rio Purus. O título do livro que escreveu sobre o ano que passou na região — À Margem da História, publicado postumamente — sugere que as ideias setecentistas permaneciam vivas em 1905: a floresta continuava a ser um lugar sem passado, virgem de acontecimentos e à espera de quem lhe desse destino.

Nas três primeiras páginas de seu relato, Euclides emprega palavras como desapontamento (o Rio Amazonas), monotonia (a paisagem), vazios (os horizontes), desordem (a natureza), imperfeita (a flora), monstruosa (a fauna), paleozoicos (os anfíbios), desprezível (um pássaro), incompleta (a natureza). “A impressão dominante que tive”, escreveu, “é esta: o homem, ali, é ainda um intruso impertinente.” Não apenas impertinente, mas também indesejado, que é a sina de todos os intrusos: “Aquela natureza soberana e brutal, em pleno expandir das suas energias, é uma adversária do homem.”

A floresta não é mesmo hospitaleira ao homem que chega de fora. Até os naturalistas reconhecem a dificuldade. Henry Bates, tão à vontade nas matas a ponto de andar descalço por elas, escreve sobre a “medonha solidão” da selva. Tudo soa primitivo, tudo assusta. “Pela manhã e ao entardecer, os uivos dos macacos compõem uma arrepiante algazarra, tornando difícil para quem os escuta conservar a animação do espírito”, diz ele. “A sensação de inóspita solitude que a selva forçosamente dá é decuplicada por essa horrenda gritaria.”

Humboldt, talvez o mais extraordinário explorador da Amazônia, exemplo para todos os que vieram depois dele, maravilhou-se desde o primeiro instante em que pôs os pés na floresta. Esse prussiano festejado por todas as cortes europeias e recebido com honras na Casa Branca de Thomas Jefferson nunca foi tão feliz quanto em seus anos nos trópicos. Viera para a atual Venezuela na companhia de um botânico francês e, em carta ao irmão, escreveu sobre o primeiro contato dos dois com a flora e a fauna locais: “Corremos de um lado para o outro feito bobos.” Era tanta vida, contou, que seu amigo, geralmente circunspecto, declarara que “enlouqueceria se as maravilhas não acabassem logo”.

Tudo crescia, se espichava, alçava voo, deglutia, procriava, apodrecia, dava bote, mordia, grudava, picava, feria, fundia. Nesse mundo de potência vital, “o homem não é nada” — a mesma ideia que será explorada por Euclides cem anos depois, embora para Humboldt não se trate de um lamento, mas de um espanto admirado.

O relato inaugural do desajuste entre a floresta e os forasteiros foi escrito por um dominicano, frei Gaspar de Carvajal, integrante do que a história reconhece como a primeira travessia do Rio Amazonas por europeus. Sob o comando do explorador Francisco de Orellana, o grupo consistia no padre e 57 soldados. Iniciada em 1541, a viagem desde a nascente peruana até o deságue no Atlântico levaria oito meses. Foi um inferno.

A cada dobra dos rios, os espanhóis eram atacados por indígenas que apareciam “por água e por terra” para lhes fazer a “crua guerra”, a ponto de os bergantins em que navegavam ganharem um aspecto de “porco-espinho”. Por mais que matassem os inimigos e destruíssem impiedosamente suas aldeias, “todos os dias os índios se reformavam e refaziam”, tornando a atacar. A guerra, contudo, era apenas um dos problemas, e talvez não o maior deles. Como dizem as passagens mais marcantes do relato de Carvajal, os piores tormentos da expedição foram obra de outro inimigo: a fome.

Lá estavam eles, em meio à maior concentração de vida do planeta — uma em cada dez espécies conhecidas no mundo vive na Floresta Amazônica —, mas incapazes de ler a floresta. Numa transecção de 150 metros de um pequeno igarapé são encontradas cinquenta espécies de peixe, o equivalente a todas as espécies da Dinamarca. Aproximadamente 20% da fauna planetária está na Amazônia, e são tantas e tão variadas as espécies de árvores que, segundo estudo publicado no periódico Scientific Reports, três séculos de trabalho não foram suficientes para catalogá-las todas. Para azar de Carvajal e seus companheiros, nada dessa abundância de nutrientes se oferecia — nem se oferece — à vista destreinada. Não estamos nas savanas africanas nem nos prados da Europa ou da América do Norte.

Apenas iniciada a viagem e os espanhóis se viram numa encruzilhada, sem saber se deviam seguir adiante ou voltar atrás. Decidiram avançar, certos de que logo poderiam pilhar alguma aldeia indígena a jusante do rio. Erraram no cálculo. Nem naquele dia nem no seguinte encontraram comida ou sinal de povoado. Carvajal anota que, àquela altura, estavam verdadeiramente em perigo de morrer da “grande fome” que padeciam, tanto que, diante da tripulação reunida no convés, ele houve por bem rezar uma missa para encomendar a Deus “nossas pessoas e vidas”, embora suplicando que Ele os “tirasse de tal perdição”.

Frei Carvajal detalha os esforços para enganar o estômago: “À falta de outros mantimentos […] chegamos a tal extremo que só comíamos couros, cintas e solas de sapatos cozidos com algumas ervas, de maneira que era tal a nossa fraqueza, que não nos podíamos ter em pé. Uns de gatinhas, outros arrimados a bordões, meteram-se pelas montanhas em busca de raízes comestíveis, e houve alguns que comeram algumas ervas desconhecidas, ficando às portas da morte, pois estavam como loucos e não tinham miolo; mas como Nosso Senhor era servido que continuássemos a nossa viagem, nenhum morreu.” (Sete morreriam mais adiante, vítimas da “fome passada”.)

Foi na altura do Rio Nhamundá, na divisa dos atuais estados do Amazonas e do Pará, que frei Carvajal entrou para a história. O nome do maior rio do mundo teria origem no que ele escreveu em seguida: “[…] e foi servido Deus que, dobrando uma ponta que o rio fazia, víssemos alvejando muitas e grandes aldeias ribeirinhas. Aqui demos de chofre na boa terra e senhorio das amazonas.”

Os nativos, como de hábito, saíram no encalço dos europeus, os quais logo notaram que os novos adversários se mostravam especialmente ferozes e encarniçados. “Quero que saibam qual o motivo de se defenderem os índios de tal maneira”, explica Carvajal. “Hão de saber que eles são súditos e tributários das amazonas, e conhecida a nossa vinda, foram pedir-lhes socorro e vieram dez ou doze. A estas nós as vimos, que andavam combatendo diante de todos os índios como capitãs, e lutavam tão corajosamente que os índios não ousavam mostrar as espáduas, e ao que fugia diante de nós, o matavam a pauladas. Eis a razão por que os índios tanto se defendiam.”

Cada amazona guerreava como dez índios. Muito altas e alvas, tinham cabelos compridos que enrolavam em tranças na cabeça. “São muito membrudas e andam nuas em pelo, tapadas as suas vergonhas, com os seus arcos e flechas nas mãos.” O dominicano não afirma que essas adversárias destemidas eram as amazonas da mitologia grega. Pode ter empregado o vocábulo apenas como analogia — não se sabe ao certo o que ele viu nas margens do Nhamundá. Os espanhóis haviam sido advertidos da existência de uma tribo de índias guerreiras antes mesmo da refrega famosa, e talvez estivessem impressionados pela sugestão de que poderiam encontrar mulheres parecidas com aquelas de que fala Homero. Não se descarta a hipótese de que, no fragor da batalha e condicionado por seu repertório de europeu, o dominicano tenha tomado homens amazônidas por mulheres mitológicas.

Não é implausível que tenha sido assim, uma projeção a mais dentre tantas outras ocorridas no período. O arqueólogo norte-americano Michael J. Heckenberger descreve o fenômeno: “Imagens desses ameríndios” – amazônidas ou descendentes de amazônidas – “se espalharam por meio de boca-a-boca e de documentos oficiais muito antes de Cortes deitar os olhos na capital asteca de Tenochtitlan ou de Pizarro desembarcar no norte do Peru e lançar sua campanha contra o poderoso império inca de Tahuantinsuyu. As crônicas de Colombo e de outros navegadores pioneiros contavam de várias raças estranhas, de canibais, de “homens com um só olho e homens com focinhos de cachorro”, além de, claro, tratarem de guerreiras Amazonas. Ainda que exóticas, tais imagens não eram desconhecidas da mente ocidental. Eram as mesmas raças selvagens, a hoi barbaroi, que animara a mitologia e a geografia europeias desde antes de Homero – o arquetipo do “Outro” europeu. Assim sendo, a região onde se encontra a maior floresta tropical do mundo foi batizada com um nome que, tudo indica, resultou de uma ilusão de ótica ou de um erro de interpretação— não importa se de Carvajal ou dos que tomaram pelo valor de face suas referências a supostas amazonas. Essencial é que, desde o primeiro momento, esteve aí a dificuldade que iria amaldiçoar a floresta, nessa incapacidade do forasteiro de vê-la em termos próprios, tal como ela é, não como ele queria que fosse.

Há algo de irônico, de metáfora cruel, no que aconteceu na batalha seguinte à das amazonas, em que nenhum espanhol se feriu salvo o próprio Carvajal. “E de toda essa gente só a mim feriram, que me deram um flechaço num olho, que passou a flecha para o outro lado. Desta ferida perdi um olho.” Na última perna da viagem, não propriamente cego, mas reduzido a uma só vista, o dominicano de Estremadura olha para as margens do atual Rio Amazonas e vê o próprio mundo: “É terra temperada, onde se colherá muito trigo e se darão todas as árvores frutíferas. Além disso, está aparelhada para criar todo gado, porque há nelas muitas ervas como em nossa Espanha, tais como o orégão e cardos pintados e rajados, e outras muitas ervas boas. Os montes destas terras são azinhais e soverais com bolotas, porque nós as vimos, e carvalhais. O orégano é uma planta do Mediterrâneo, não existe na Amazônia, onde tampouco existem cardos europeus — há somente certos parentes distantes deles — e muito menos azinhais ou soverais. Como tantos outros depois dele, Carvajal viu o que queria ver. Mais precisamente, viu o que já conhecia.

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