Antonia Moreria na Universidade Columbia Foto: acervo pessoal
“Bolsonaro nos colocou no radar internacional de direitos humanos”
Jovem que atua em defesa da comunidade LGBTIAQ+ conta como se tornou a primeira travesti brasileira a participar de um programa de capacitação de ativistas em Nova York
Desde 1989, a Universidade Columbia, em Nova York, realiza um programa anual de capacitação para pessoas que se destacam por defender os direitos humanos em seus países. O Human Rights Advocates Program oferece aos participantes uma bolsa de estudos e diálogo com líderes internacionais e instituições interessadas em financiar projetos sociais. Entre 1991 e 1998, quatro brasileiros foram selecionados. Em 2023, depois de 25 anos, o Brasil voltou ao programa, representado pela publicitária Antonia Moreira, de 27 anos. Travesti, Moreira é uma das diretoras do Ateliê TRANSmoras, um projeto social que promove educação e assistência à comunidade LGBTIAQ+ através da moda.
Em depoimento a Thallys Braga
O meu primeiro contato com o movimento LGBTIQA+ aconteceu na faculdade, mas a inquietação de gênero começou bem antes. Sou filha de imigrantes nordestinos nascida em Lins, uma cidade de 79 mil habitantes no centro-oeste de São Paulo. Tive uma infância segura, com a sorte de estudar numa escola pública razoavelmente boa. Como toda criança, eu adorava brincar, mas até certo ponto. Quando as brincadeiras eram muito voltadas para meninos ou para meninas, eu fugia para ficar estudando com a galera nerd e evitar ser colocada dentro dos limites de gênero. Na adolescência, a coisa ficou mais difícil. Todo mundo me olhava esperando alguma definição, mas eu não sabia a resposta.
Lins logo ficou pequena para mim. Com 17 anos, prestei vestibular para jornalismo na Unesp (Universidade Estadual Paulista), mas não fui aprovada. Passei para a Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais, mas a distância me desmotivou. Como tirei uma nota boa o suficiente para conseguir uma bolsa de estudos do Prouni, decidi ingressar no curso de Publicidade da PUC de Campinas. Me matriculei sem pensar muito na decisão. Era a opção possível. Queria deixar a casa dos meus pais e começar logo minha vida.
A graduação abriu, para mim, as portas de um mundo novo, mas também foi na PUC que eu descobri o que é racismo. Os professores desconheciam a minha realidade social, alguns seguranças me seguiam pelos corredores. A experiência no mercado de trabalho não foi muito diferente. Tentei vários caminhos, mas as agências de publicidade nunca abriram as portas para mim. Só consegui me manter por conta própria graças a uma bolsa da universidade.
Eu estava muito incomodada com a minha identidade, mas ainda não sabia nomear o que sentia. Em 2018, no final da graduação, um amigo me contou de um coletivo montado por pessoas transexuais no alojamento estudantil da Unicamp. Era o Ateliê TRANSmoras, que começou como uma ocupação na moradia universitária e um estúdio de criação de roupas da Vicenta Perrotta. O lugar, com o tempo, acabou virando também um ponto de acolhimento e convívio de pessoas trans que não tinham onde dormir, conversar ou tomar uma cerveja.
A Perrotta logo começou a ministrar oficinas de corte e costura. As pessoas se interessaram e passaram a procurá-la em busca de ajuda para aprender a trabalhar com moda. O que era uma ocupação virou um projeto social. Eu cheguei ao TRANSmoras no momento em que o ateliê começava a se expandir. O objetivo do nosso grupo passou a ser transformar aquele coletivo informal numa associação sem fins lucrativos reconhecida pelo Estado.
Passei cinco anos ajudando a transformar o Ateliê em uma rede de fomento a ativistas e artistas. Nesse meio tempo, eu mesma me entendi como uma travesti. Parte do trabalho consistia em nos inscrever para concorrer a editais de empresas privadas e organizações sem fins lucrativos. Ganhamos dois programas de financiamento que ajudaram a dar segurança financeira para o projeto e para as travestis que fazem tudo acontecer.
Acompanhar as oportunidades de financiamento virou minha rotina como diretora estratégica do TRANSmoras. No ano passado, entraram em contato conosco para avisar que as inscrições do programa Human Rights Advocates, da Universidade de Columbia, estavam abertas. A cada ano, a instituição seleciona ativistas do mundo todo que trabalham em causas urgentes de direitos humanos para passar quatro meses em Nova York, com aulas regulares na pós-graduação da universidade, oficinas com ONGs sediadas na cidade, mentoria, sessões de fala pública e networking.
Nós não pensávamos que o nosso trabalho estava no campo da luta por direitos humanos. Só a partir dessa oportunidade em Columbia entendemos que o TRANSmoras existe para dar garantias de vida e sustentação a uma parcela da população que tem os seus direitos negligenciados. Se isso não é lutar por direitos humanos, o que é?
Com isso em mente, me inscrevi despretensiosamente para participar do projeto em Nova York. Tinha poucas esperanças de ser aprovada. O Brasil não era convocado para esse programa desde 1998 – e os brasileiros que já tinham participado eram brancos, cisgênero, na faixa etária de 35 a 40 anos. Mas, para minha surpresa, fui convocada. Sou a primeira brasileira negra e travesti a participar do Human Rights Advocates.
O governo Bolsonaro e sua turma fascista puseram o Brasil no radar internacional dos defensores de direitos humanos. O genocídio da população indígena, a eliminação dos fóruns de participação da sociedade civil no governo, o retrocesso no acesso da população trans à saúde, o capacitismo na educação pública, a destruição da Amazônia, dentre tantos outros problemas, chamaram a atenção de outros países. Não é como se não tivéssemos problemas de direitos humanos antes de Bolsonaro. Mas até então, a comunidade internacional ao menos reconhecia o esforço do governo brasileiro em tentar resolver esses problemas. Vejo que, desde 2017, a situação mudou. Devo parte da minha vinda para Nova York a esse senso de urgência das organizações internacionais sobre a necessidade de discutir as violações de direitos no Brasil.
Também atribuo o ineditismo de ser a primeira travesti e pessoa negra no programa da Columbia às mudanças que vêm ocorrendo na sociedade brasileira. Por mais que seja a passos lentos, um movimento de reconhecimento da importância da diversidade está tomando conta das universidades e das empresas. Além de um impacto direto na vida de pessoas trans, programas como o que eu acessei também causam um impacto subjetivo: toda vez que nós acessamos um novo espaço, o ambiente muda junto. Todo mundo aprende. É difícil, às vezes irritante e doloroso fazer as pessoas perceberem isso, mas nós continuamos insistindo. Me recuso a cair numa lógica de representatividade em que se considera satisfatório ter apenas uma de nós em cada espaço.
Aqui em Nova York eu tenho aulas, workshops e reuniões com outros estudantes, além de reuniões para fazer contatos com pessoas e instituições que apoiam projetos sociais. Meu esforço tem sido garantir que eles olhem para o que estamos fazendo no Brasil e reconheçam a necessidade de valorizar as ideias de jovens travestis que estão em busca de mudança. Quando eu explico como é perigoso ser uma pessoa trans no nosso país, eles ficam assustados. É uma realidade que desconhecem completamente.
A atenção internacional voltada ao Brasil é grande. O que escuto aqui é que os direitos humanos nunca estiveram tão ameaçados desde a ditadura. Quando vejo o ministro [dos Direitos Humanos] Silvio Almeida falando sobre pessoas trans, travestis e não binárias em seu discurso de posse, é óbvio que fico feliz. É um reconhecimento que não existia no último governo. Nós, pessoas trans, estamos nos infiltrando no Parlamento. Isso é fruto do ativismo de travestis e pessoas trans que lutaram para borrar os limites do lugar que nos é reservado: a violência, a prostituição compulsória, o abuso de drogas. São boas notícias, mas não deixo de me preocupar com os orçamentos reduzidos que foram anunciados para a área dos direitos humanos. O que a minha geração está fazendo é muito forte. Mas garantir Direitos Humanos também custa dinheiro. Torço para que as instituições estejam mais dispostas a entender o preço que pagamos por tentar mudar as estruturas.
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