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    A jornalista e vice-prefeita de Paris, Audrey Pulvar Foto: Stephane de Sakutin/AFP

depoimento

“Eu era filha ou era alvo?”

Como descobri, tardiamente, as acusações de pedofilia contra meu pai

Audrey Pulvar | 13 out 2023_11h32
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Famosa na França, a jornalista Audrey Pulvar estava no auge da carreira quando soube que seu pai, Marc Pulvar, abusara sexualmente de suas primas quando eram crianças. Isso foi vinte anos atrás. A família nunca divulgou a história. Até que, em 2021, as primas decidiram tornar públicas as acusações contra Marc, uma das principais lideranças políticas da Martinica, ilha francesa no Caribe. Ele morreu em 2008. Nesta semana, Audrey vem ao Brasil para participar da Flup, a Festa Literária das Periferias. Em depoimento inédito para a piauí, ela contou como os relatos de suas primas fizeram-na revisitar o passado. “Quando era vivo, meu pai destruiu nossas vidas. Agora, que está morto, a destruição continua. Sinto como se eu tivesse que pagar pelas falhas dele.”

Em depoimento a Lara Machado

 

Morei com meu pai até completar 5 anos de idade. Foi quando ele e minha mãe se divorciaram. Eu lembro muito vividamente de quando meu pai foi embora. Passei anos achando que a culpa da separação era minha. Meus pais brigavam toda hora, e, naquele dia, ele estava gritando muito com minha mãe. Meu cachorro latia sem parar, por causa do barulho, então meu pai atirou um sapato nele. Quando vi que o cãozinho tinha se machucado, comecei a chorar. Minha mãe disse para o meu pai: “Olha o que você fez.” Ele respondeu: “Se é esse o problema, vou embora.” Entendi naquele instante que ele ia embora para sempre. Daí em diante passei a vê-lo só nos finais de semana, feriados ou em almoços ocasionais.

Só mais tarde entendi que ele era um homem muito complicado. Era agressivo com minha mãe, embora eu não tenha presenciado nenhuma violência física. Aos 5 anos, eu não entendia nada do que estava acontecendo. Mas já percebia que havia algo estranho no ar. Acho que meu cérebro enterrou todas as memórias dessa época. Tenho apenas flashes.

Uma cena ficou gravada na minha mente. Eu tinha uns 6 anos e estava acampando com meu pai. Reunimos parentes e amigos para passar três ou quatro semanas na praia. Minha prima materna, um ano mais velha do que eu, estava com minha avó trocando de roupa. Eu estava ao lado do meu pai – não lembro exatamente o que estávamos fazendo, talvez cozinhando. Elas estavam a uma distância que lhes dava privacidade, mas ainda era possível vê-las. De repente, bateu um vento, levantando a toalha que cobria a nossa visão. Minha prima estava lá, nua. Eu virei o rosto para não olhar, mas reparei que meu pai continuou olhando. Quando eu recoloquei a toalha no lugar, meu pai tentou tirá-la novamente. Ele queria ver minha prima nua. Fiquei completamente chocada. Não conseguia entender. Pra que fazer aquilo? Esse momento foi tão desconfortável, tão estranho, que ficou registrado em mim.

Outras cenas de quando eu era pequena moravam no meu subconsciente, mas eu não conseguia tecer um link entre elas. Além dessas memórias curtas, não há mais nada. Como se tivesse ocorrido um apagão. É tudo vazio. Tenho muitas memórias com minha mãe, minhas irmãs, a família da minha mãe, minhas primas e avós, mas eu mal tenho memórias do meu pai entre os meus 7 e 12 anos de idade. Eu sei, factualmente, que o vi várias vezes nesse período. Mas, se me lembro de cinco desses encontros, já é muito – e eu não quero lembrar. Eu realmente não quero saber de tudo. Não me lembro e deve haver um motivo para isso. 

A maior parte das memórias que guardo do meu pai são de quando eu já tinha 12 anos ou mais. Tivemos uma relação comum de pai e filha. Por ser um homem muito engajado no bem comum, ele era visto como um herói na Martinica. Fez coisas boas para a comunidade, dedicou sua vida aos outros. Nós gostávamos de passar bastante tempo na praia, em trilhas, acampando. Tudo isso rendia horas de conversas sobre política, ciência e questões ambientais. Quando, muito tempo depois, minhas primas me contaram o que viveram com ele, mais memórias voltaram, e eu não consegui parar de me perguntar: o que ele fez comigo? O que ele fez com minhas irmãs? Quando eu era uma menina e sentava no seu colo, eu era filha ou alvo?

Em busca dessas respostas, conversei com meu pai. Ele estava no hospital, nessa época. Nos últimos cinco anos de vida, ele passou boa parte do tempo tratando uma leucemia. Eu morava na França, ele na Martinica. Até morrer, em 2008, ele negou tudo. Dizia que não tinha feito nada de errado, que todos aqueles relatos não passavam de mentiras. Ele não queria reconhecer o que fez. E qual era o ponto de confrontá-lo? Ele estava morrendo. Eu continuei fazendo visitas ao hospital, mas algo de real na nossa relação se perdeu. 

 

Uma das minhas primas, ainda criança, tentou denunciar o que estava acontecendo. Ela falou com seus pais, mas eles não ouviam. Um dia – eu soube mais tarde – ela contou tudo para um grande amigo da família. Mas ele, um adulto, mandou minha prima calar a boca e esquecer. Não acreditou nela. Ela se sentiu traída, sentiu que não valia a pena falar com mais nenhum adulto, então guardou segredo até que pudesse usar sua própria voz. Quando minhas primas me contaram, por volta de 2002, elas não queriam levar o caso a público. Temiam a repercussão da história. E eu não podia falar por elas. Tive que esperar. 

Acho que, por causa de tudo o que aconteceu, tenho até hoje um problema profundo com a fé nas pessoas. Fico completamente arrasada quando uma pessoa quebra minha confiança, mesmo que se trate de um assunto pouco relevante. Exagero nas reações a pequenas mentiras. Sei que não é normal eu me sentir tão devastada por coisas insignificantes. Mas tenho uma ligação real e muito estranha com a verdade. É como uma doença. Talvez seja uma das razões pelas quais escolhi ser jornalista: eu queria saber a verdade sobre tudo. 

Durante muitos anos, quando eu já era uma jornalista famosa, as pessoas me perguntavam sobre meu pai em entrevistas. “Seu pai é um homem incrível. O que você aprendeu com ele?” Às vezes, eu me recusava a falar. Outras vezes, dava o braço a torcer, porque, sim, ele me ensinou muito e fez coisas relevantes. Minha filha, hoje com 26 anos, tinha 10 anos quando meu pai morreu. Eles conviveram pouco. Deixei que ela aproveitasse as memórias que tinha do avô como um bom homem. Ela cresceu com a imagem de um avô que era herói. Eu também o vi como herói por muitos anos. Ele era isso, em parte. Mas era também um monstro. Eu só contei a verdade para minha filha quando ela já era uma jovem adulta. Ela ficou devastada, obviamente, e não conseguia parar de me perguntar: “Ele te machucou?” Essa não é uma lembrança que você gostaria de compartilhar com seus filhos.

Outras tantas perguntas não saem da minha cabeça. Sempre me pergunto o que posso fazer diante dessa situação. E o que eu poderia ter feito? Quando uma de minhas primas foi abusada pelo meu pai, eu estava lá. É muito perturbador lembrar que eu estava dormindo na mesma cama que ela. E éramos duas meninas. Sim, são memórias nebulosas, mas eu me lembro dessa sensação na atmosfera, esse estranho de meu pai estar no mesmo quarto que nós. Lembro de acordar durante a noite e ver meu pai na cama ao lado da minha prima. Sinto que tenho um tipo de dívida. Quando ele estava vivo, destruiu nossas vidas. Agora, que está morto, a destruição continua. É como se eu tivesse que pagar pelas falhas do meu pai.

Talvez o Dia da Escuta tenha sido criado como uma forma de lidar com essa sensação. A ideia surgiu ainda em 2017, na época do movimento #MeToo, mas só colocamos em prática em 2022 e agora estamos trazendo para a Flup. O projeto consiste em dar espaço a pessoas que sofreram assédio e abuso sexual para que elas contem suas histórias. O importante é obrigar a sociedade a ouvir essas mulheres. Não basta que elas falem – elas precisam ser ouvidas. Eu, apesar do que vivi, tive a sorte de ter uma boa vida: sou uma profissional reconhecida na França, tive muitas oportunidades. Quando minhas primas fizeram a denúncia, eu estava concorrendo nas eleições regionais da França. Nossa ideia, agora, é voltar os holofotes para as pessoas que sofrem esses traumas caladas, sem que ninguém saiba. Queremos ajudá-las.

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