CRÉDITO: ANDRÉS SANDOVAL_2023
Sushi antimachista
Brasileira luta por inclusão na gastronomia japonesa
Felippe Aníbal | Edição 198, Março 2023
Logo no primeiro dia de aula, em julho de 2016, a brasileira Sandra Mari Saito percebeu que todos os olhares se voltavam para ela. Ao se aproximar da bancada onde faria suas tarefas, ouviu risos abafados. Entre os murmúrios, distinguiu uma frase: “O que uma mulher faz aqui?”
Na turma de dezenove alunos na All Japan Sushi Academy – renomada escola em Nagoya, Japão, que ensina imigrantes a dominar os segredos culinários do país –, Saito era a única mulher. Os balcões de sushi ainda são um território dominado por homens, e o machismo dos colegas incomodou a brasileira. “Aqueles olhares tortos, as risadinhas, os comentários infelizes”, ela recorda. Mas Saito também se sentiu desafiada. “Não me encolhi. Fiquei determinada a ser melhor que eles.”
De segunda a sexta-feira, Saito trabalhava no departamento de recursos humanos de uma subsidiária da Denso Air Systems, que fabrica componentes de ar-condicionado para automóveis. No fim de semana, nada de folga: era a primeira a chegar à escola.
Quando os colegas apareciam, ela já estava de kimono happi, a postos em sua bancada. Depois das aulas, permanecia na escola, tirando dúvidas com o professor Yamada Masamitsu, a quem passou a considerar seu grande mestre. Começou a se destacar já nas tarefas mais básicas, como executar cortes tradicionais e higienizar os peixes, e logo se tornou referência para os colegas. Vencera a resistência masculina.
Em agosto de 2017, Saito tomou coragem para se pôr à prova: inscreveu-se no World Sushi Cup, a Copa do Mundo do Sushi promovida com pompa pelo governo do Japão no mercado municipal de Tóquio. De 130 candidatos, apenas 40 passaram pelo teste de proficiência – uma prova teórica –, que os habilitava às próximas etapas. No dia seguinte, os competidores tinham que preparar uma tábua de edomae sushi – o tradicional. Depois, vinha o sushi criativo, que admite ingredientes e molhos diversos. O tempo era cronometrado – quarenta minutos por prato –, em uma dinâmica que lembra reality shows culinários, como o MasterChef.
Saito era a única mulher concorrendo. Tal como ocorrera na escola, ela percebeu o estranhamento dos adversários. “Eu via os olhares, sentia a energia. Quanto mais falavam, mais eu pensava: vou provar que uma mulher pode fazer melhor que vocês”, conta. Ao fim da disputa, a brasileira ganhou o Prêmio Conselho Norueguês da Pesca, uma espécie de menção honrosa, que a motivou a voltar no ano seguinte.
Mais confiante em 2018, Saito conquistou o segundo lugar na categoria Edomae Sushi, tornando-se a primeira mulher a figurar no pódio da competição. Em 2020, tornou a disputar a copa. Mais uma vez, ficou com o vice-campeonato, agora na categoria Sushi Criativo.
Antes do sucesso nas competições, Saito se sentia “sozinha no mundo do sushi”. Premiada em duas categorias, ela ficou feliz sobretudo por inspirar outras mulheres. “Depois do campeonato, várias começaram a me procurar”, diz. O número de alunas na escola também aumentou. “Era raro ter três ou quatro mulheres, somando todas as turmas. Agora, as mulheres passaram a ser maioria. Foi bonito.”
Saito concluiu o master (grau máximo da academia) duas vezes, pois achou que aprenderia mais repetindo o curso. Com o fim dos estudos, decidiu que tinha chegado a hora de deixar a fábrica de ar-condicionado e voltar ao Brasil. Seu sonho era trabalhar como sushi shokunin – em português, uma artesã do sushi (os japoneses consideram imprecisos os termos em inglês sushiman e sushiwoman).
Assim que a pandemia do coronavírus arrefeceu, no ano passado, ela desembarcou em São Paulo. Nos primeiros dias, foi visitar a Nagoya Sushi School, do amigo André Kawai, no bairro da Liberdade. O professor postou uma foto do encontro em suas redes sociais, listando as conquistas de Saito no Japão. O resultado veio rápido: no dia seguinte, o chef Wdson Vaz viu a postagem e a chamou para conversar. “Nem precisei levar currículo. Saí de lá contratada”, conta Saito. “Só pedi três meses de férias antes de começar, para descansar da mudança.”
Desde setembro de 2022, Saito exibe seus talentos no Sushi Vaz, um salão intimista localizado na Alameda Santos, no bairro dos Jardins. Diante dos sete clientes que se acomodam no balcão, ela e um colega preparam as opções do omakase – cardápio do dia, oferecido pelos chefs e feito com os melhores peixes frescos da ocasião.
Também no Brasil ela encontrou uns poucos fregueses que torcem o nariz ao verem uma mulher preparando o sushi. Há até quem diga gotisōsama (obrigado pela refeição) somente para o chef homem. “Falavam só para ele, viravam as costas e iam embora, como se eu não estivesse ali”, diz Saito.
Nos 27 anos em que morou no Japão, Saito conheceu só uma sushi shokunin: a festejada Yumi Chiba. Se é difícil para as japonesas, imagine para uma brasileira que cresceu em um sítio na pequena Piedade, interior de São Paulo. Com paciência, quase todos os dias, ela busca desfazer mitos machistas. Um exemplo é a lenda, muito propalada, de que as mulheres não estariam aptas a fazer sushi porque teriam a temperatura corporal mais elevada que os homens – as mãos mais quentes alterariam o sabor dos ingredientes. “Isso é besteira. Não tem nada na tradição japonesa que diga isso”, afirma Saito.
Aos 45 anos, ela acredita que as mudanças ocorrem lentamente. Aos poucos, a implicância de alguns clientes do Vaz Sushi com a chef começa a ser superada. No disputado restaurante, é até mais comum que os clientes se surpreendam positivamente ao ver uma mulher elaborando, compenetrada, um linguado prensado na alga ou uma vieira japonesa com ovas de peixe-voador.
Vez ou outra, alguém pede para ficar perto de seu posto de trabalho, para vê-la em ação. Alguns até querem ser servidos exclusivamente pela sushi shokunin. “Eu me sinto ajudando a quebrar essa ideia de que mulher não pode fazer certas coisas. Bacana contribuir para mudar isso a partir do sushi”, celebra Saito.